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Fatores políticos: estado, território e constituição

No documento Teses 10 Identidade nacional completo (páginas 69-74)

A IDENTIDADE NACIONAL PORTUGUESA ESBOÇO DE UMA DEFINIÇÃO

3.1. Fatores políticos: estado, território e constituição

Portugal define-se como um Estado-nação, ou seja, uma nação gerida por um Estado que institui uma Constituição nacional em que se estabelecem os di- reitos e deveres legais dos cidadãos. Este Estado tem autonomia política em rela- ção às outras nações, estabelecendo-se segundo o princípio da autodeterminação e confinado a um território delimitado por fronteiras políticas que ignoram as continuidades geográficas entre os dois países ibéricos, como é o caso das planí- cies do sul ou do sistema montanhoso nortenho.

O aspeto territorial é particularmente importante para a identidade portuguesa, uma vez que, segundo alguns estudiosos, o espaço geográfico português apresenta

uma individualidade que se torna o propulsor do nascimento da nação. Na primeira metade do século XX este foi um assunto polémico que desencadeou argumentos apaixonados e, por vezes, não consentâneos com a evidência da geografia nacional – é o caso de Silva Teles, que afirma na sua Introdução geográfica, de 1908:

Portugal constitui, na Península, uma individualidade geomorfológica. A sua forma rectangular, a distribuição dos seus degraus continentais, os caracteres das suas redes hidrográficas, os aspectos climáticos do norte ao sul do Tejo, imprimem ao nosso país uma feição especial que o torna diferente do resto da Península. Exceptuando a Galiza, que é um prolongamento geográfico do Norte de Portugal e com este tem maior semelhança do que as outras províncias espanholas, o continente português, embora geologicamente deva ser considerado como uma parte da Península Ibérica, é, no ponto de vista dos seus caracteres geomorfológicos, bem diverso do reino vizinho. Foi, justamente, esta autonomia geográfica que mais influiu na sua formação política…70.

António Sardinha quase dá vontade anímica ao relevo, apresentando-o como sujeito ativo no processo da formação nacional: ‹‹a acidentada linha da cordilheira hercínica traçou do fundo das noites geológicas os futuros limites geográficos de Portugal›› (Sardinha, 1974: 71).

A estes argumentos algo fantasistas, que forçam uma visão nacionalista do espaço português, respondem Amorim Girão71 e Ferraz de Carvalho; confiramos

o rigor geográfico da descrição deste último no capítulo dedicado a Portugal na obra Geografia universal:

as diferenças entre a Andaluzia e a província portuguesa do Algarve são diminutas, e a maior parte do território português pertence à Meseta Ibérica, que Portugal partilha com a Espanha […] não foi por alinhamentos montanhosos que se fixaram as fronteiras entre Portugal e Espanha, nem são troços de rios importantes que separam as duas nações irmãs; pelo contrário as principais cordilheiras espanholas, e os maiores rios portugueses, descendo de Espanha, só numa diminuta parte do seu curso servem de limites72.

Afigura-se, portanto, não haver carateres geográficos distintivos que per- mitam neles alicerçar o fundamento da nacionalidade. A fronteira entre Portugal e Espanha quase nunca é natural, antes surge algo arbitrariamente, tendo sido

70 Apud Peres, 1992: 19-20.

71 Na obra Geografia física de Portugal, de 1915. 72 Apud Peres, 1992: 21-22.

delimitada ao longo de séculos de conflitos e conquistas entre os reinos ibéricos73.

Porém, um aspeto geográfico é primordial para a identidade do país: os ‹‹848 qui- lómetros de fronteira marítima››74, os quais tornam inevitável que o seu destino

e a sua história passem por eles, estabelecendo-se com o mar uma forte relação identitária, que permitiu resistir à voracidade dominadora de Castela75. O mar,

ao mesmo tempo que nos isola, é também fonte de riqueza e de abertura para o mundo e constituiu um elemento aglutinador da nação portuguesa, pelo que a sua importância ultrapassa o fator geográfico: ‹‹O mar não é pois um elemento mate- rial e natural, é o espaço simbólico que para os portugueses significa a superação da sua condição telúrica e agrária e, a um nível mais profundo, a sublimação da própria condição humana›› (Quadros, 1987-1988, I: 41). Segundo Jorge Dias, é ‹‹a grande força atractiva do Atlântico›› (Dias, [1990]: 139) uma das garantias da unidade nacional, apesar de se poder considerar a divisão do país em três grandes áreas – o norte atlântico, o norte transmontano e o sul – conforme defende Or- lando Ribeiro na sua obra lapidar Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (1998: 144-164). Este ilustre geógrafo apresenta claramente os critérios para a divisão proposta, aliando aspetos físicos ao fator humano: ‹‹Uma região geográfica ca- racteriza-se por uma certa identidade de aspectos comuns a toda ela. Não apenas as condições gerais de clima e posição, mas ainda as particularidades da natureza e do relevo do solo, o manto vegetal e as marcas da presença humana, nos darão o sentimento de não sairmos da mesma terra›› (idem; 140).

A variedade regional não é – ao contrário do que se poderia pensar – uma ameaça à unidade nacional: a ‹‹heterogeneidade de culturas›› regionais (Dias, [1990]: 161) subsume-se numa homogeneidade da cultura portuguesa, uma ‹‹superstrutura cultural assente como uma cúpula em pilares regionais›› (idem; 126) por um ‹‹processo especial de sublimação›› (idem; 161):

Esta cúpula não é o somatório de todas as culturas locais, mas uma nova realidade, que, embora contendo-as a todas, é diferente. Assim como um composto químico, formado por uma reacção de elementos simples, repre- senta um elemento novo, também na cultura superior se nos depara uma nova realidade, que, embora seja o produto de várias culturas, é distinta delas (idem; 126).

73 ‹‹O rectângulo continental português foi cosido a golpes de espada, de lança e a tiros de ca- nhão. Em boa parte, a fronteira não chega a ser um muro de quintal. Só pela vontade dos homens a fron- teira construída divide e os rios, que servem para unir, ficaram estéreis a separar›› (cf. artigo «A iden- tidade portuguesa no dealbar do 3.º milénio» de António Borges Coelho in Rosas e Rollo, 1998b: 69).

74 Idem; 71.

75 António Sérgio apresenta a pobreza e esterilidade do solo como uma das causas desta viragem para o mar (Sérgio, 1976: 60).

Portugal apresenta uma coesão que ofusca quaisquer exigências regiona- listas autonómicas, que, a existirem, se revelam episódicas e sem consequências intitucionais76. As reivindicações independentistas que têm surgido têm-se reve- lado inócuas para a integridade do país77, não constituindo uma ameaça como se

verifica nos movimentos regionais independentistas em Espanha ou na Bélgica, por exemplo. Acresce ainda o facto de, aquando da consolidação do país, não haver hegemonia de nenhuma das regiões que o constituem, como acontece em Espanha, em que a força política de Castela se sobrepõe ao resto do país. No caso português, não há uma relação de domínio mas uma confluência no estuário do Tejo: ‹‹Não houve o domínio de uma região sobre outras, antes se encontraram todas num ponto natural de convergência›› (idem; 139).

Situado no extremo ocidental da Europa e da Península Ibérica, Portugal é marcado por uma dupla periferia – face ao resto da Europa e face à Espanha – que, de modo paradoxal, funciona simultaneamente como argumento de superio- ridade e de inferioridade nacional. A relação com Espanha oscila historicamente entre o afastamento e o iberismo, a repulsa e a atração, fenómeno que se acentua com o domínio filipino, em que uma forte resistência anticastelhana coexiste com o desejo de algumas facções da sociedade de ver realizada uma união ibérica. O iberismo é, aliás, um tema que surge de forma recorrente em autores portugue- ses – como Antero, Oliveira Martins, António Sardinha, Miguel Torga, Natália Correia, entre outros – com um teor político ou cultural, unitarista ou federalista, cristão ou republicano e socializante (Santos, 1994: 65).

Após a perda da independência, Portugal passa a viver de costas volta- das para Espanha, considerada uma ameaça e alvo de sentimentos de repulsa. O território nacional converte-se numa espécie de ilha, como afirma Eduardo Lou- renço, e a Espanha torna-se-nos praticamente invisível: ‹‹tout se passe comme si l’endroit où se trouve l’immense masse de l’Espagne s’était converti symbolique- ment en un désert›› (Lourenço, [1994a]: 45).

A ligação entre Portugal e o resto da Europa começa a ter caráter de mar- ginalidade a partir da Contra-Reforma, revelando-se um maior conservadorismo nos países ibéricos, o que resultou num atraso científico e cultural de séculos (idem; 44). Portugal, ficando à margem da Reforma e da revolução da cultura eu- ropeia (o crescimento da ciência físico-matemática), transforma-se numa ‹‹espécie de gueto cultural›› a partir do século xvii (idem; 148). Perde progressivamente o

76 Esta homogeneidade leva António José Saraiva a considerar que ‹‹Portugal, culturalmente, é um país monolítico›› (Saraiva, 1981: 84).

77 Veja-se os casos dos movimentos pró-independência das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, motivados em grande parte por sentimentos de desigualdade económica e social causada pela sua condição ultraperiférica.

papel de precursor do experimentalismo renascentista ganho com os Descobri- mentos, para o que contribui em grande medida o fanatismo religioso da Inqui- sição. Os portugueses automarginalizam-se, colocam-se à parte da Europa, fora dela, fechados num casulo que é sentido como sinal de fraqueza e, ao mesmo tempo, como sinónimo de valorização: é o ‹‹cá dentro›› por oposição ao ‹‹lá fora››, tão típico do discurso nacional (Lourenço, 2004: 161-173).

O espírito nacional, a par desta fragilidade civilizacional geradora de um sentimento de inferioridade face ao contexto europeu, mantém um pólo oposto, de superioridade, fruto do seu pioneirismo expansionista: Portugal, mais do que ser a periferia da Europa, é o centro do seu império colonial, é o lugar de contac- to com culturas estranhas, diferentes; é, afinal, o intermediário entre a Europa e os outros continentes. Portugal espalha-se pelo mundo, alarga o seu território; o espaço nacional dilata, abarca quase todos os continentes e Portugal extravasa as suas limitadas fronteiras nacionais, construindo um extenso império.

No século XX, a descolonização constitui-se enquanto reconfiguração do espaço nacional, que volta a restringir-se ao ‹‹retângulo›› europeu e ilhas atlân- ticas. Este processo de ‹‹reterritorialização›› só volta a sofrer alterações aquando da entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, verificando-se um novo extravasar dos limites fronteiriços: uma nova ‹‹desterritorialização›› (San- tos, 1994: 57). Ao ‹‹entrar na Europa››, Portugal parece ultrapassar um ressen- timento cultural marcado por uma situação de marginalidade vivida como um drama desde a Geração de 70 – que via na Europa o mito do progresso e da civi- lização – e acentuado pela emigração (de raiz económica) de meados do século XX, sinal de subdesenvolvimento. O fenómeno migratório marca também nega- tivamente a consciência nacional, pois constrói da nação uma imagem ‹‹desvalo- rizante›› (Lourenço, 1999b: 52): ‹‹tornámo-nos emigrantes aos olhos de outros europeus›› (idem; 51), ou seja, passámos a ser vistos como europeus ‹‹de segunda categoria›› numa Europa a duas velocidades.

A adesão de Portugal à União Europeia não significa, porém, uma trans- formação imediata do seu estatuto marginal, mantendo-se um desequilíbrio no intercâmbio cultural, como nota Eduardo Lourenço: ‹‹Não é de um dia para o outro que se apaga uma longa herança de troca desigual, de desconhecimento ou de indiferença no plano das relações culturais, no sentido mais vasto do termo. Continuamos a consumir, em qualidade e quantidade, mais cultura inglesa, fran- cesa, italiana, alemã, etc., do que a Europa consome cultura ibérica›› (Lourenço, [1994a]: 53).

Periferia, atlantismo, isolamento e abertura ao mar são conceitos determi- nantes para a identidade nacional, que caracterizam a nação portuguesa na sua relação com a Europa e com o resto do mundo.

No documento Teses 10 Identidade nacional completo (páginas 69-74)