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Sá de Miranda: a anti-épica

No documento Teses 10 Identidade nacional completo (páginas 122-124)

DO PORTUGAL-NAÇÃO AO PORTUGAL-IMPÉRIO: MITIFICAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL

5.1. A consagração do nacionalismo segundo os códigos clássicos

5.1.2. Sá de Miranda: a anti-épica

A leitura da obra de Sá de Miranda deixa-nos uma imagem de um Portu- gal assolado pelos ‹‹males do tempo››: enfeitiçada pelo vil metal, a sociedade portuguesa – sobretudo a urbana – aparece como uma nova Babilónia, com o pecado à espreita em cada esquina. Sá de Miranda verbera violentamente todos os quadrantes sociais, em que reinam a injustiça, a corrupção, o vício, a dissolução moral, a cobiça pelas riquezas ultramarinas. Testemunha de grandes mudanças sociais e políticas causadas pelos Descobrimentos, Sá de Miranda manifesta na sua obra uma preocupação moral que advém da lição da Arte poética de Horácio herdada pelo Classicismo: o escritor tem uma missão social de formar cívica e moralmente os cidadãos, ou seja, ao prazer estético acrescenta-se a função peda- gógica e ética da literatura – o utile et dulce horacianos.

É sobretudo nas éclogas e nas cartas que se revela esta pedagogia social mirandina, nomeadamente numa antítese estrutural vinda dos clássicos gregos e latinos: a cidade e o seu oposto, o campo. O ideal bucólico da vida no campo é uma convenção literária, inserindo-se na tradição pastoril que contrapõe o sos- sego, a paz, a liberdade e a justiça do campo ao bulício vicioso da grande urbe. No entanto, Sá de Miranda suplanta a mera imitação dos Antigos e atualiza os géneros clássicos, refletindo neles a nova conjuntura social que as riquezas das Descobertas trouxeram a Portugal. De tal modo que vários dos seus textos alu- dem diretamente a situações sociais concretas, a problemas específicos da socie- dade portuguesa. Em carta a António Pereira, Senhor do Basto, ‹‹quando se partiu para a Côrte co a casa tôda››, Sá de Miranda tenta convencer o seu destinatário a preferir o campo, referindo os excessos e malefícios de Lisboa: a cobiça, que leva ao afluxo às cidades, deixando o reino deserto142, as mudanças de hábitos, que

o fazem recordar melancolicamente as raízes dos portugueses no chefe lusitano Viriato143, o abandono da produção agrícola144.

Na écloga «Montano» o pastor faz a caracterização da sociedade portu- guesa, realçando a crise de valores que se contrapõe ao passado: prevalecem a hipocrisia, a mentira, o roubo e a impunidade, sobre a honra, a verdade e a razão; penalizam-se os virtuosos em detrimento dos prevaricadores145; os trabalhadores

142 ‹‹mas temo-me de Lisboa,/ que, ao cheiro desta canela,/ O Reino nos despovoa›› (Mi- randa, 1942: 81).

143 ‹‹Ouves, Viriato, o estrago/ que cá vai dos teus costumes?›› (ibidem).

144 ‹‹Oh! Vida dos lavradores!/ Se êles conhecessem bem/ as avantages que tem,/ co aqueles santos suores/ que a si e ò mundo mantem,/ Tratando co a madre antiga/ que, de quanto em si recebe,/ (não entre engano, ou má liga)/ singelamente se obriga/ a pagar mais do que deve!›› (idem; 89-90).

são explorados pelos patrões 146. Na voz de Montano ecoa o próprio destino de

Sá de Miranda, ou seja, a fuga para o campo de modo a não presenciar a disso- lução social: ‹‹porque êste mundo é tal/ que é milhor cá nos desertos/ sofrer e calar o mal/ que descobrir os secretos/ dêste nosso Portugal›› (Miranda, 1942: 291). Também Sá de Miranda, a dada altura da sua vida, se retira de Lisboa para a Quinta da Tapada no Minho; mas a sua voz continua a ouvir-se através da sua obra. Para ele, a poesia não se limita a um divertimento ligeiro; ela é uma propos- ta de vida, um conselho a que se procure na áurea mediania – a aurea mediocritas clássica – uma vida equilibrada, sem grandes ambições, e esta só está acessível longe da cidade e da farsa que, segundo ele, é a vida cortesã.

Para José Pina Martins, Sá de Miranda é considerado o ‹‹poeta anti-épico por excelência do século xvi›› (Martins, 1988: 151), sendo que a crítica social ‹‹é uma outra forma de épos›› (ibidem). De facto, a poesia mirandina está nos antípodas do canto exaltado camoniano; embora retratando uma época de auge económico, o que importa a este autor é chamar a atenção para a crise moral que vai tomando conta do país no século xvi147.

No entanto, a vertente crítica não invalida que Sá de Miranda elogie pon- tualmente os feitos portugueses. Os primeiros versos da «Fábula do Mondego» são dirigidos a D. João iii e têm um tom quase épico na exaltação da coragem e lealdade dos portugueses:

vuestra animosa gente,

los Portugueses, a que nada espanta, a vós, Señor, los ojos, y a la santa empresa e lealtad propria y d’ abuelos, contra amenaza tanta

gran denuedo venció tantos recelos (Miranda, 1942: 79).

A elegia «À morte do Príncipe Dom João» é, de acordo com a convenção do género, um elogio ao progenitor de D. Sebastião: ‹‹como pôde cair tanta grandeza››, ‹‹que no peito santo/ nunca pecado entrou, nunca entrou êrro›› (Miranda, 1942: 22). Não deixa, porém, o autor de evocar os reis da primeira dinastia, buscando no

146 ‹‹Isto fazem volvedores/ e muitos pecados feos/ e os suores alheos,/ que vês roubar roubadores/ sem justiça e sem bons meos›› (idem; 299).

147 É por esta decadência ser estritamente do plano da moral e dos valores que Helder Mace- do recusa ser Sá de Miranda o ‹‹exemplo pioneiro do discurso sobre a decadência nacional››, discurso este que, segundo H. Macedo, ‹‹só veio a definir-se no seu sentido moderno a partir da anexação de Portugal pela Espanha›› (Gil e Macedo, 1998: 215). Para este autor, o que Sá de Miranda critica como decadência é sintoma e consequência do poder político e económico de Portugal, que estava no apo- geu e não em crise. Parece-nos, porém, que a pujança económica não invalida uma decadência espiri- tual já patente nesta época, que se vai constituir mais tarde enquanto psicodrama do povo português.

berço da nação o émulo para o elogiado e reforçando a ideia de que só no regresso ao passado e aos valores perdidos está a solução para o reino (idem; 27-28).

Neste conjunto de apologias à realeza nacional é de referir também a «Ora- ção» dirigida a D. João iii e a D. Catarina, na qual o monarca português é apre- sentado como um enviado de Deus à nação para a guiar nas explorações marí- timas: ‹‹Mas quem poderia, Senhor, ser em vossos feitos tam descuidado e tam dormente que não visse que nos fostes dado pela mão de Deus?›› (idem; 284). Sá de Miranda manifesta deste modo encarar a história numa perspetiva provi- dencialista, à semelhança de Fernão Lopes e Zurara. Deus surge como o protetor dos portugueses, tendo ‹‹lembrança particular›› deste reino, sobretudo quando a nação se vê ameaçada na sua soberania: ‹‹por vezes que estes reinos estiveram pera se perder per guerras, ou para se mesturar com os outros reinos comarcãos per casamentos, sempre vimos que Deus aí meteu sua mão e se quis lembrar dos portugueses como de gente que traz sôbre si e debaixo de sua bandeira›› (Miran- da, 1942: 283).

5.1.3. A «questão da língua»: António Ferreira e os gramáticos portugueses

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