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Perspetivas ontologizantes e psicanalíticas: Teixeira de Pascoaes, Antó nio Quadros, Francisco da Cunha Leão e Eduardo Lourenço

No documento Teses 10 Identidade nacional completo (páginas 37-47)

O CASO PORTUGUÊS: DIFERENTES VISÕES SOBRE O CARÁTER NACIONAL

2.1. Perspetivas ontologizantes e psicanalíticas: Teixeira de Pascoaes, Antó nio Quadros, Francisco da Cunha Leão e Eduardo Lourenço

No caso português, o pensamento de teor essencialista assume contornos ontologizantes e até psicanalíticos. Autores como Teixeira de Pascoaes, António Quadros e Francisco da Cunha Leão veem a nação portuguesa como um ser cuja delimitação psicológica é fundamental, nas suas qualidades e defeitos. Eduardo Lourenço antropomorfiza a nação com objetivos psicanalíticos: faz-lhe o diag- nóstico dos traumas, dos seus complexos (simultaneamente de superioridade e de inferioridade), da sua esquizofrenia e até paranóia, para eventualmente chegar à cura psicanalítica almejada. António Quadros define a essência da pátria como ‹‹uma vida essencial e mais profunda›› (Quadros, [1992]: 238), para além dos acidentes históricos, meramente circunstanciais:

a essência de qualquer coisa é ao mesmo tempo o que nós compreendemos que ela é, a sua ideia, independentemente e para além das formas da sua existência no tempo e no espaço; e o conjunto de elementos que a constituem como substância, independentemente dos seus acidentes. Podemos pois discernir a essência da pátria, como o cerne, interior e transcendente ao seu curso existencial; como uma substância anterior e superior aos acidentes que se lhe subordinam, mas que não o caracterizam profundamente (ibidem).

Comum a estes autores é também o facto de considerarem o ente na- cional como um segredo esfíngico a ser desvendado, uma incógnita ocultada desde tempos imemoriais32, o que é atestado, logo à partida, pelos títulos das suas

obras: O enigma português (Cunha Leão), Portugal, razão e mistério (Quadros),

32 ‹‹A razão de Portugal, a razão de ser deste país antigo, encontra-se envolta na mais densa bruma. Tornou-se um mistério ou é um mistério?›› (Quadros, 1988: 13).

O labirinto da saudade (Lourenço), este último evocando ainda um percurso ár-

duo, moroso e de difícil conclusão na procura da essência portuguesa. Os autores colocam-se numa posição de hiperconsciência face ao mistério a ser decifrado para que a nação se encontre a si própria e possa assim objetivar o seu futuro. Por conseguinte, une-os também um intuito regeneracionista com vista à recuperação do destino nacional. Podemos considerar que – exceto Eduardo Lourenço – Pas- coaes, Quadros e Cunha Leão partem de uma base mais intuitiva e emocional do que racionalista e constroem o seu pensamento recorrendo a mitos, arquétipos e símbolos, em vez de factos históricos concretos: ‹‹Por vezes é difícil definir o que sejam, fora dos quadros do pensamento positivo ou científico, tais essência, pessoa, espírito. Mas é o que o povo sabe, de modo espontâneo e intuitivo; e é o que muitos escritores ou pensadores com a consciência do que está em jogo pro- curam incansavelmente, em obras que se vão actualizando ao sabor da evolução das ideias›› (Quadros, [1992]: 239).

Toda a obra literária, poética e filosófica de Teixeira de Pascoaes tem como fim último devolver aos portugueses a sua alma original, perdida nas teias da história devido à tendência nacional para a cópia de tudo quanto é oriundo do es- trangeiro. Este é o projeto da Renascença Portuguesa que, como o próprio título indica, visa restaurar o espírito nacional através de uma intensa ação pedagógica junto das populações. Numa época em que Portugal ensaia o novo regime repu- blicano, Pascoaes procura evitar a desnacionalização do sistema, lutando contra o espírito imitativo tão recorrente no país, de que são exemplo na história nacional a Inquisição, o Jesuitismo e o Constitucionalismo, qualquer deles exemplo da in- vasão do estrangeiro, a qual é responsável pela decadência do espírito português (Pascoaes, 1988: 44).

A originalidade da teoria de Pascoaes radica no facto de elevar a saudade à categoria de elemento primordial da alma portuguesa, transformando-a num movimento nacional: o Saudosismo. O caráter português ganha assim uma espe- cificidade própria que o posiciona num nível superior ao das outras nações, pois Portugal inaugurará uma ‹‹Nova Civilização››, baseada não no material, mas no espírito. A uma sociedade que entroniza o progresso científico e tecnológico, Pas- coaes contrapõe uma civilização de plenitude espiritual, mais consentânea com a insatisfação existencial do homem contemporâneo:

Nós somos um povo ainda barbado, rural, dominado por vagos sentimentos… / Alma de antemanhã, sonhamos um novo Sol espiritual. E é muito possível que os povos cultos da Europa, a certa altura do seu vertiginoso avanço industrial e científico, descansem um pouco e volvam os olhos para nós. Pois toda a sua vida se resume em duas palavras: ciência e indústria. São um corpo esplendoroso em movimento. / Mas a

vida será toda condensável em matéria? A ciência e a indústria respondem precisamente a todo o anseio humano? […] E, enfim, esta civilização científico-industrial satisfaz realmente a alma? A alma moderna está, na verdade, satisfeita? (idem; 176)33.

Conjugando etnia e geografia, Pascoaes atribui à ‹‹terra›› e ao ‹‹sangue›› a origem da alma lusíada (Pascoaes, 1993: 53). Defende a influência da paisagem no homem, dando como exemplo o facto de na ‹‹paisagem dolorosa›› de Trás- -os-Montes haver mais crimes do que na ‹‹paisagem alegre e feliz›› do Minho (idem; 55). Assim, a alma nacional conjuga tristeza e alegria, as quais provêm, respetivamente, da ‹‹dor múmura dos pinheirais sombrios, [d]a mágoa silenciosa dos ermos calvados›› e do ‹‹verde riso das campinas›› (idem; 61). Desenha-se o caráter português como uma confluência de contrários, a qual é corroborada pelo elemento étnico: ao ramo ariano (naturalista, pagão, terrestre) associa-se o ramo semita (espiritualista, cristão, moral) e desta conjugação resulta o génio lusía- da, uma nova religião: o ‹‹sentimento saudoso das Coisas, da Vida e de Deus›› (idem; 62).

Esta fusão de contrastes revela-se igualmente na definição que Pascoaes faz da saudade ao longo de toda a sua obra. A Duarte Nunes de Leão vai o autor buscar a ‹‹lembrança›› (virada para o passado) e o ‹‹desejo›› (virado para o futu- ro) como fulcros da saudade (idem; 75). Num dos textos da célebre polémica que travou com António Sérgio, Pascoaes condensa assim o teor antitético da sauda- de: ‹‹Consideramos a Saudade um sentimento-síntese, um sentimento-símbolo, resultante da fusão harmoniosa dos dois princípios do Universo e da Vida que, desde a Origem, se degladiam: Espírito e Matéria, Desejo e Lembrança, Dor e Alegria, Treva e Luz, Vida e Morte›› (Pascoaes, 1988: 105). A saudade transfor- ma-se assim numa ‹‹concepção da vida e da existência›› (idem; 243) para a nação portuguesa; ela é o núcleo da vivência lusíada, especificidade que se torna patente na sua intraduzibilidade para outra língua. Aliás, a existência de vocábulos intra- duzíveis numa língua é, para Pascoaes, uma prova da energia vital de um povo, pois demonstra que ‹‹ele tem uma alma própria, o dom de conceber e sentir o mundo e a vida por virtude própria›› (Pascoaes, 1993: 18).

É ao passado que Pascoaes recorre para explanar as qualidades da alma pátria: ‹‹génio de aventura››, ‹‹espírito messiânico›› e ‹‹sentimento de indepen- dência e de liberdade›› (idem; 89-93). Estas são virtudes que permitiram aos por- tugueses a empresa das Descobertas, bem como o ressurgir depois do desastre de Alcácer Quibir. Mas para que Portugal renasça verdadeiramente é necessário

um diagnóstico imparcial, pelo que o autor não se coíbe de apresentar o reverso daqueles atributos positivos; assim, Pascoaes encontra nos portugueses do pre- sente os defeitos típicos de um povo em decadência, num estado abúlico que só lhe permite copiar do Outro aquilo que ele mesmo não consegue criar: ‹‹falta de persistência››, ‹‹vil tristeza››, ‹‹inveja››, ‹‹vaidade susceptível››, ‹‹intolerância›› e ‹‹espírito de imitação›› são o reverso das virtudes nacionais (idem; 99-104).

É por isso urgente para Pascoaes restaurar no povo o espírito saudoso, síntese do ser português, pelo que, a par da teorização filosófica, o autor propõe ações práticas que permitirão ‹‹reintegrar a alma da nossa Raça na sua pureza

essencial›› (Pascoaes, 1988: 32). Deste modo, preconiza a reforma da educação,

da Igreja e da organização administrativa do país (idem; 53-55): nas escolas de- vem criar-se portugueses autênticos, dando a conhecer às crianças a ‹‹alma da sua raça›› (idem; 53); o povo português, por nunca ter aderido a Roma, deve fundar a ‹‹Igreja Lusitana››, eliminando o alto clero, ‹‹uma nódoa estrangeira na nossa Pá- tria›› (idem; 55); por fim, defende a transformação do país numa ‹‹Confederação de Municípios›› (Pascoaes, 1993: 44), a qual permite uma melhor comunicação entre a família e a pátria, o que garante uma maior unidade nacional.

Herança de Pascoaes, a preocupação de consciencializar os portugueses da sua essência, da sua alma original, é também manifesta na obra de António Quadros. Neste autor, o combate à nefasta influência do estrangeiro passa pela reconstituição daquilo que ele denomina como a paideia portuguesa, conceito que transfere da filosofia grega para o panorama nacional e que define nos se- guintes termos: ‹‹uma convergência ou uma univocidade de factores formativos, culturais e éticos, assentes sobre um tecido de valores religiosos e patrióticos›› (Quadros, [1992]: 217). Ou seja, Portugal define-se por ter um ‹‹projecto teleo-

lógico›› (Quadros, 1987: 13) próprio, um projeto civilizacional, no qual todos

devem estar envolvidos. Segundo Quadros, só no reinado de D. Dinis ganha rea- lidade a paideia portuguesa, que o autor considera o ‹‹projecto áureo português›› (idem; 15), o que se torna patente em realizações concretas como a instituição das festas do Espírito Santo, a oficialização da língua portuguesa (que passa a substituir o latim nos documentos públicos), a fundação do Estudo Geral e a salvação e conservação da Ordem dos Templários, transformada em Ordem de Cristo. Constitui-se, assim, um projeto que conjuga várias áreas da vida nacio- nal – religião, ensino, língua, administração – num só ‹‹ideal português›› (idem; 16): à independência política, Portugal acrescenta agora a sua ‹‹independência

espiritual›› (Quadros, 1988: 23). No entanto, o facto de esta autonomia men-

tal só ser atingida mais de um século depois da fundação da nacionalidade não invalida a busca das raízes da nação num período remoto, a alguns milénios de distância. Nos seus ensaios, António Quadros argumenta perentoriamente em

defesa da ancestral individualização da identidade portuguesa, fazendo remon- tar à civilização dolménica os fundamentos de Portugal: identifica a existência de uma cultura megalítica na faixa galaico-portuguesa (entre 4000 e 3500 a. C.), individualizada em relação ao resto da Península Ibérica, sendo que esta última se encontrava ainda na ‹‹cultura de las cuevas›› (Quadros, 1989: 43). A prenunciar já o seu futuro caráter expansionista, Portugal teria sido o ber- ço da civilização megalítica, que se expandiu depois pelo resto da Europa34.

Convergindo com o diagnóstico pascoaesiano, Quadros caracteriza a con- temporaneidade portuguesa como uma paideia em desagregação, uma vez que Portugal deixa sucumbir a sua personalidade cultural (ainda que a política resista) sob a força normalizadora da invasão estrangeira. Esta debilidade ontológica na- cional é, segundo Quadros, fruto da mentalidade ‹‹heterognósica›› e ‹‹estrangei- rada›› da Geração de 70, a qual se enraizou de tal modo no espírito autóctone que veio a dar origem a um ‹‹complexo de inferioridade, o complexo dos «deserdados da glória»››, origem do ‹‹psicodrama português›› (Quadros, 1989: 62).

É, portanto, fundamental que o povo português seja reeducado no seu pro- jecto civilizacional, na sua paideia, a única via do ressurgimento nacional35. Esta

reeducação passa simultaneamente pela recuperação de um passado que garante o caráter único da alma nacional, imune ao passar do tempo – ‹‹substância di-

ferenciada, memória, tradição e fidelidade›› (Quadros, [1992]: 267) – e pela

afirmação no futuro através de uma ‹‹capacidade criativa e futurante›› (ibidem). A definição da identidade portuguesa passa assim por uma verdade profun- da, que se situa para além de realidades objetivas e positivas como a política, a economia, a sociologia, a técnica, a ciência. A essência do ser português radica no imaginário, nos mitos e arquétipos que constituem o inconsciente coletivo, os quais Quadros refere, por oposição aos do ser espanhol: ‹‹lenda de Pedro e Inês ou do amor para além da morte; o lirismo, a saudade e o fado; os mitos das Ilhas Afortunadas, do Preste João, de D. Sebastião ou do Encoberto, do Quinto Império como Império do Espírito Santo, o telos da aventura lusitana na história, épica de Camões e de Pessoa, Saudosismo de Pascoaes, Criacionismo de Leonardo Coim- bra›› (Quadros, 1989: 50-51). É por isso que só uma ‹‹arqueologia da tradição››

34 Com base em variadas fontes documentais, António Quadros apresenta algumas razões que atestam este pioneirismo português na cultura megalítica: é no território português que há mais densidade construtiva e em que os megálitos são mais antigos (Quadros, 1988: 111).

35 ‹‹A grandeza dos povos, pode dizer-se, depende da sua capacidade histórica para aproxi- mar-se de uma paideia nacional, a partir da qual se vivem e se interiorizam solidária e criativamente os valores universais. Ao invés, a sua decadência corresponde ao afastamento ou à destruição dessa

(Quadros, 1988: 176) garantirá a Portugal um futuro pleno36 e, segundo Quadros,

novamente grandioso: ‹‹É no entanto do conhecimento e da compreensão do ser profundo de Portugal, é do descobrimento ou da desocultação da sua realidade recôndita e recalcada, para além das visões sociológicas superficiais, que depen- de o seu futuro, o futuro de todos nós, não um futuro qualquer, em mediocridade complexa e imitativa, mas um futuro de renovada grandeza humana para a nossa pátria prometida›› (idem; 56). Como perpassa neste excerto, à teleologia portugue- sa desenhada pelo autor está subjacente uma visão providencialista da história, que coloca Portugal no início – a cultura megalítica – e no fim da história: o Império do Espírito Santo, o projeto áureo português37.

Menos mitificadora e mais psicologizante é a perspetiva de Francisco da Cunha Leão sobre o caráter nacional. Uma das suas obras, o Ensaio de psicologia

portuguesa (1971), cujo título aponta logo à partida para um estudo caracteriológi-

co, é um longo desfiar de variadas componentes mentais da alma nacional em que avulta como elemento fundamental a capacidade dos portugueses de harmonizar opostos38. Avatar deste espírito feito de contrastes é a coexistência no português de

um complexo de superioridade e, simultaneamente, de um complexo de inferiori- dade, tema aliás retomado por outros autores. Por um lado, o português sente-se predestinado pela Providência para uma missão, sente-se guiado e protegido por ela, o que gera uma ‹‹hipertrofia mítica›› (Leão, 1971: 174-175) que o afasta do mundo empírico. Por outro lado, o contacto com uma realidade de efetivo atraso técnico e científico provoca um inexorável complexo de inferioridade, segundo o autor só passível de ser ultrapassado quando os portugueses atingirem uma maior ‹‹consistência técnica e profissional›› (idem; 182). É da dialética entre o quimérico e o real e da incapacidade que o português tem de articular estes dois mundos e de os ajustar que surge esta situação quase esquizóide de haver dois complexos tão díspares num mesmo sujeito, tema retomado por Eduardo Lourenço.

36 ‹‹a verdadeira arqueologia é um prolegómeno insubstituível ao futuro necessário›› (Quadros, 1988: 85).

37 Quadros considera que a paideia portuguesa tem uma ‹‹dupla escatologia››: ‹‹em direção ao eterno e a Deus, nos sentidos cristãos da Salvação e da Redenção; em direção a um tempo futuro e terreno de fraternidade e de amor, no sentido do culto do Espírito Santo e (profecia anunciada pelo místico cisterciense Joaquim de Flora), do advento da Idade do Espírito Santo, depois das do Pai e do Filho›› (Quadros, 1989: 40).

38 Ao longo de trinta páginas, Cunha Leão cita, em vários quadros comparativos, inúmeras características antitéticas retiradas de vários autores, portugueses e estrangeiros. A extensão dos atributos que se opõem entre si é desde logo uma prova do caráter contraditório da alma nacional (Leão, 1971: 23-53).

Em O enigma português (1960), Cunha Leão trata também o tema da identidade portuguesa, mas considera-a por oposição ao vizinho espanhol39. E o

‹‹enigma›› que percorre toda a obra é precisamente a questão da forte individua- lidade portuguesa e o modo como esta resiste à ação centrípeta de Castela. Portu- gal dissemina-se no elemento marítimo e faz deste a sua fonte de resistência, ou seja, a sua condição periférica é justamente o argumento da sua independência. Isto não significa, no entanto, que Cunha Leão defenda a tese da individualidade geográfica de Portugal na Península Ibérica; pelo contrário, para o autor o fun- damento geográfico seria inútil sem outra individuação e uma forte vontade de existir à parte.

A especificidade do português advém primeiramente de fatores étnicos, já que ele é uma síntese de lusitano e galaico, reunindo características destes dois ramos: o lado sonhador, saudoso, inquieto, de brandos costumes e dominado pelo

pathos é uma herança galega; o espírito realista, independente, afirmativo e de

talento político é lusitano (Leão, 1998: 98). É no Sebastianismo que se manifesta a essência da portugalidade: acredita-se numa salvação por uma figura provi- dencial, um salvador que restituirá à nação o seu papel principal numa missão ecuménica. A esperança sebastiânica confere ao país ‹‹o nervo da resistência›› à atração centrípeta de Castela: ‹‹Teríamos a sorte da Catalunha, se não fora o Sebastianismo›› (idem; 194).

A saudade é também para este autor um traço distintivo da psicologia portuguesa, o que o aproxima de Pascoaes: uma saudade não só virada para o passado, mas também com ‹‹sentido futurante›› (idem; 98). Ela é também uma das componentes do Sebastianismo, à qual se acrescenta a esperança, ou seja, novamente passado e futuro. A saudade revela-se ela própria também dialética, uma conjugação de contrários, traço que já referimos como fundamental nesta perspetiva sobre a alma nacional. A saudade é, portanto, para Cunha Leão a base do pensamento português, da Filosofia Portuguesa. Apesar de reconhecer ser o português avesso ao pensamento filosófico, o autor defende que é a própria ação do povo que tem um ‹‹conteúdo pensante›› (idem; 235), pelo que é na poesia, nos escritos míticos e utópicos, nos mitos, no Direito, nas traduções de obras estran- geiras, que se deve procurar este tipo de pensamento (idem; 231-235).

Fugindo à entronização da excelência de Portugal feita por Pascoaes, Qua- dros e Cunha Leão, o autor de O labirinto da saudade ocupa-se da análise da ima- gem – sempre irrealista – que os portugueses fazem de si mesmos. Daí que, segun- do Eduardo Lourenço, Portugal necessite de uma ‹‹cura psicanalítica›› (Lourenço,

39 Basta verificar que grande parte desta obra é dedicada à caracterização do ser espanhol, quer geográfico, quer psicológico.

[1988]: 16) que o faça reencontrar-se consigo próprio, permitindo-lhe passar defi- nitivamente da infância para a idade adulta: ‹‹O que é necessário é uma autêntica psicanálise do nosso comportamento global, um exame sem complacências que nos devolva ao nosso ser profundo ou para ele nos encaminhe ao arrancar-nos as máscaras que nós confundimos com o rosto verdadeiro›› (ibidem). O ensaísta propõe-se levar a cabo um diagnóstico psicanalítico do ser português, no qual avultam patologias como a paranóia, a esquizofrenia, recalcamentos, complexos, de modo a desvelar a verdadeira essência nacional. Só este reencontro dos por- tugueses com a sua realidade lhes permitirá enfrentar os desafios do presente e construir um futuro consentâneo com os seus recursos.

Da leitura dos seus vários escritos fica uma ideia recorrente sobre a iden- tidade nacional: a do seu caráter paradoxal, nomeadamente na capacidade de conjugar complexos tão antitéticos como o sentimento de superioridade e o de inferioridade. Tendendo a isolar-se como se de uma ‹‹ilha›› se tratasse (Louren- ço, 2004: 163) em relação ao resto da Península Ibérica e ao resto da Europa, Portugal escamoteia a sua fragilidade presente com um excesso de passado, o que resulta numa paralisia congénita das energias nacionais: ‹‹Passamos a vida a comemorar-nos no que já não somos, descobridores de mares, senhores fictícios de oceanos onde outros imperam. Vamos ou estamos no futuro mas com um se- creto pânico de não estar à altura dele, emigrando sem cessar para o que já fomos ou imaginamos ter sido›› (Lourenço, 2001: 12)40. A vocação universal revelada

na Expansão ultramarina cria no português um complexo de superioridade que o faz sentir-se senhor do mundo, sem se aperceber que esse pioneirismo se perdeu nas teias do suceder histórico. É do embate com a realidade que surge o com- plexo de inferioridade, nomeadamente em relação à Europa, da qual Portugal se sente marginalizado devido ao seu atraso científico, tecnológico, económico. Este desfasamento entre Portugal e o restante continente europeu (nomeadamente a França, eterno modelo civilizacional) torna-se consciente, por exemplo, nos anos 60, aquando do grande fluxo de emigração nacional, o qual traduz uma desvalia nacional de raiz sobretudo económica: ‹‹tornámo-nos emigrantes aos olhos de outros europeus›› (Lourenço, 1999b: 51).

O complexo de inferioridade é, aliás, gerado por uma série de ‹‹traumatis- mos›› que Eduardo Lourenço identifica ao longo da história de Portugal e de que a emigração é um dos exemplos. Ao fazer a Psicanálise mítica do destino portu-

guês, Eduardo Lourenço identifica vários traumas que marcaram negativamente

a consciência nacional. Assim, logo no seu nascimento Portugal assiste à luta

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