• Nenhum resultado encontrado

Entre a ciência, a educação e o rádio

1.3 Pioneiros do rádio

1.3.5 A Rádio Sociedade operando em estúdio

Antes da inauguração do estúdio, a Rádio Sociedade tinha uma programação regular diária e apresentações especiais. A análise da grade de programas nos ajuda a compreender a construção do projeto de radiofonia da geração pioneira. Para o dia 26 de junho de 1924, ainda com o uso do equipamento da PRA1, estavam previstas as seguintes irradiações:

1-Notícias de interesse geral.

2- Massenet, Pensée d’automne, Sr João Athos.

3- A. Thomaz, Connais tu le pays, Mignon, Profa Heloísa Bloem. 4- Rubinstein, Romanza, Violino, Sr. George Marinuzzi.

5- Puccini, Vissi d’arte. Tosca, Profa Marietta Bezerra. 6- N. N., Cuore ingrato, Sr Machado Del Negri.

7- F. Halevy, La juivre, cavatina, Sr João Athos. 8- Puccini, Aria de Butterfly, Porfa Marietta Bezerra. 9- Brahms, Serenade inutile, Prof Heloisa Bloem. 10- Giordano, Andrea Chenier, Sr Machado Del Negri.

O anúncio apenas informava o início destas irradiações às 20:30h, sem maiores detalhes sobre cada atração específica, indicando uma estrutura bem frágil. Este tipo de

grade, composta basicamente de um noticiário e execução de músicas foi constante durante o primeiro ano de funcionamento da PRA2.

Nesse mesmo período, o chefe de broadcasting, Dulcídio Pereira, antevendo a breve inauguração do estúdio requisita, por meio de uma pesquisa, a participação dos ouvintes, com o propósito de elaborar novas programações a partir das preferências do público:

ESCOLHAS DOS PROGRAMMAS A IRRADIAR DIARIAMENTE

A opinião dos amadores sobre a natureza dos assumptos que lhes são transmittidos pelas sociedades de Radio-cultura deve evidentemente ser conhecida pelos Directores dessas associações afim de ficar satisfeita pela melhor forma possível. A maioria dos ouvintes prefere a musica, mas sim qual música? Pois há tamanha diferença entre a complicada musica ultra-moderna e barulhento Jazz-band, que é necessário conhecer o numero relativo de amadores de cada gênero. Alem disto, são de considerável utilidade, a numerosas pessoas, o conhecimento rápido e seguro, de cambio, do curso da bolsa, da entrada e sahida dos navios e de certos productos agrícolas de grande consumo, das previsões metereologicas, etc., etc. Por isso, a redacção de nosso conceituado confrade parisiense, Radio-Magazine, acaba de realisar uma consulta a seus leitores, mediante o enchimento e a remessa, até certa data, de um boletim, em que é definida a preferência pessoal de cada amador.

Devendo começar em breve entre nós as irradiações da Radio Sociedade, cuja estação, está sendo installada, pareceu-nos também acertado consultar pelos mesmos processos os numerosos leitores afim dos futuros programmas podem ser constituídos, o mais que for possível, de acordo com o desejo geral (Radio, abril de 1924, p.38)

Esta chamada publicada em Radio nos dá pistas sobre algumas perspectivas que os dirigentes da PRA2 nutriam sobre o perfil destes amadores. A programação, composta de informações sobre bolsa de valores, desvalorização da moeda, da importação e da exportação de produtos, tinham a intenção de agradar diferentes classes sociais. As supostas estratégias utilizadas pela emissora para aproximação do povo eram bastante criticadas. Ao analisar o formulário da pesquisa, é possível notar a intenção em orientar as convicções do futuro ouvinte, ao qualificar o jazz-band como barulhento e a música moderna como complicada. Essa tendência, que mais se aproxima do exercício do convencimento e, torna duvidoso o propósito da pesquisa de opinião, foi reforçada com a observação da ficha a ser preenchida e enviada pelo correio.

BOLETIM DE VOTAÇÃO PARA A ESCOLHA DOS ASSUMPTOS A IRRADIAR DESIGNACAO DOS ASSUMPTOS

A - MUSICA SERIA, CLASSICA E DE OPERA B – MUSICA LEVE, JAZZ-BAND

C – INFORMAÇÕES COMMERCIAES, E BANCARIAS, CURSO DA BOLSA D – PREVISOES METEREOLOGICAS E INFORMAÇÕES CONNEXAS E – ALLOCUÇÕES PATRIÓTICAS – HISTÓRIA DO BRASIL

F – CONFERENCIAS SCIENTIFICAS E LITERRARIAS G – INFORMAÇÕES UTEIS RELATIVAS Á AGRICULTURA H – NOTÍCIAS DA IMPRENSA UNIVERSAL

I – HISTORIAS MORAES PARA CRIANÇAS J – PALESTRAS PARA SENHORAS

L – CONSELHOS DE HYGIENE E CUIDADOS MEDICOS M – OUTROS ASSUMPTOS SUGERIDOS

(Radio, abril de 1924, p.39)

As opções propostas por Dulcídio Pereira nos fornecem indícios do conteúdo que os diretores da PRA2 consideravam adequado a ser irradiado. Os temas são bem definidos, de forma a não suscitarem dúvidas quanto ao tipo de informação. Ao mesmo tempo, os assuntos continuam recebendo adjetivos como forma de convencer o amador, tais como: informações úteis, histórias morais, música leve... A resposta ao inquérito, publicada em Rádio corrobora a noção de que parte da programação idealizada pela Rádio Sociedade não tinha como foco principal as camadas populares.

Entendo que as allocuções, patrióticas e a História do Brasil, não devem ser irradiadas desde já, porque estando ainda a radiotelephonia entre nós na sua primeira phase de desenvolvimento as pessoas que possuem apparelhos receptores são em sua totalidade pessoas cultas cujo o patriotismo não pode ser posta em dúvida, e que conhecem perfeitamente a História do Brasil (Radio, fevereiro de 1924, p.24).

Ao iniciar os trabalhos de estúdio, é possível perceber que a programação escolhida seguiu os temas aconselhados pela chamada que acompanhava a pesquisa de opinião.

PROGRAMMA PARA HOJE

Ás 17 horas – musica leve pela orchestra da Radio Sociedade – “Quarto de hora infantil” pelo Vovô (Prof João Kopke); Notícias ás 20:30 – Lição de inglez pelo prof. Moraes Costa, pratica de telegraphia, notícias, Catullo Cearense; Orchestra do Hotel Glória; ás 23h 15min – Transmissão radiotelegraphica das letras “R” e “8”, repetidas

vezes, em onda de 70 metros; antes dessas letras serão transmittidos os signaes de attenção e de “chamada geral” e o comprimento de onda em algarismos (transmissão destinada aos amadores que estão dedicando ao estudo das ondas curtas).

Em outros anúncios, observa-se a opção por programas literários, conferências científicas, aulas de diversas disciplinas Português por José Oiticica, Física por Francisco Venâncio Filho, Química por Mário Saraiva, Francês por Maria Veloso, Silvicultura prática por Alberto J. de Sampaio, História do Brasil por João Ribeiro e Radiotelelefonia e Radiotelegrafia por Victoriano Borges. As matérias, em formato de cursos, eram ministradas por diversos professores que aderiam à causa do rádio como transmissor de informação e cultura e que, imbuídos dessa convicção, se dispunham a cooperar. Os mestres convidados a dar sua colaboração à cultura popular eram escolhidos por serem autoridades reconhecidas no tema. Ao final do curso, a revista

Electron, que funcionava como apoio aos ouvintes, dispondo os resumos das aulas e a

programação em detalhes, publicava uma nota de agradecimento, onde os critérios de seleção para os colaboradores da PRA2 são evidenciados:

Prof. João Ribeiro

Encarregou-se do curso de História do Brasil organisado pela Radio Sociedade do Rio de Janeiro, o illustre Prof João Ribeiro, glória das nossas letras e um dos mais autorisados conhecedores do nosso passado. As encantadoras palestras de João Ribeiro começaram a ser irradiadas na terça-feira, 19 de janeiro p.p. O concurso do notável humanista representa mais um brilhante serviço da Rádio Sociedade á nossa cultura popular (Electron, 1/2/1926, p.6).

A grade de programas elaborada se insere na proposta maior da emissora: a radiocultura. Tal concepção, já citada por Gilioli (2008) é fundamental à compreensão do trabalho realizado pela Rádio Sociedade. Um dos pontos que merece destaque consiste no fato de que ela não se confunde com a rádio escola, esta sim destinada a oferecer atividades coordenadas com o sistema de ensino, a utilizar o receptor em salas de aula, e a treinar professores de acordo com os conteúdos ministrados na rede e com uma metodologia própria. Acima de tudo, a radiocultura se inseria no ideário gerado na ABC. Num âmbito maior, a missão civilizatória: Nosso programma é pois todo de

cultura popular. Estamos convencidos de maneira definita e absoluta, de que todos os grandes problemas a resolver no Brasil são facetas de um grande núcleo que esta quase todo por construir: a cultura espiritual, a educação e instrução. Para esses

homens de ciência, os males do Brasil não haviam sido curados com inovações republicanas: voto secreto, uma nova Constituição, protecionismo às indústrias ou reformas de ensino. Tudo havia fracassado pela incapacidade do povo em compreender essas linguagens. O contexto só seria revertido por meio de um trabalho de desbravamento moral e intelectual. O termo desbravamento se associa à idéia do sertão desconhecido, ou seja, das pessoas abandonadas pelo poder público no interior. A importância do rádio reside em ser o único caminho para atingir essa população, em um projeto de integração nacional por meio da cultura.

Em seus estudos Abreu (2010) destaca que o início da República fora marcado pelo desafio da construção de um pensamento social que transformasse a visão da maldição racial, da condenação ao atraso, e da existência de doenças que degeneraram o povo, tão presentes no período monárquico. A partir do contato de intelectuais com os sertões, em expedições com as mais variadas finalidades tais como abrir estradas, mapear o território e introduzir telégrafos, edificou-se um novo olhar para as populações do interior, que passaram a ser vistas como elementos que necessitavam do processo educacional, para se integrarem a nação. Os estudos de Euclides da Cunha eram uma inspiração para novas pesquisas.

Os povos interioranos passaram a ser analisados de acordo com princípios científicos. Para a realização de tais estudos, as viagens foram fundamentais. Para

servi-lo antes de mais nada, é preciso conhecê-lo (ROQUETTE-PINTO, 1927, p.49).

As experiências proporcionadas pelas expedições muito influenciaram o conceito de civilização como meta a ser alcançada, noção esta que será muito recorrente nos ideais da radiocultura. O isolamento de algumas regiões, o abandono das populações que lá viviam e o prejuízo que isto gerava ao processo de integração nacional foram fatores que impulsionaram a implantação da radiofonia com bases culturais, por sua capacidade de levar informação e conhecimento com rapidez a lugares distantes.

A concepção de radiofonia idealizada pelos intelectuais da Rádio Sociedade envolvia os campos da cultura, da educação e da instrução, mas é principalmente na transmissão da cultura que se traduz a meta maior da PRA2. Nesse aspecto a perspectiva não só de vulgarização como de transmissão do conhecimento desenvolvida por estudiosos ganha destaque. Apenas o acesso ao conhecimento seria capaz de libertar nosso povo, disperso pela imensidão do território nacional, das explicações lendárias e da ignorância. A radiocultura não teria a capacidade de substituir o sistema educacional, algo muito mais complexo, razão pela qual sua missão consistia em:

Pelo T.S.F. não haverá homem mais isolado, nem choupana perdida nas quebradas das serranias agrestes para as vozes tentadoras dos grandes centros, vozes da sciência, da arte, do progresso, sejam coisas que se escuta fallar aos recemvindos, mas que nunca se há de ouvir por si mesmo, coisas lendárias e quase mentirosas. (Rádio, n19, p.10) Os vários sócios efetivos da Rádio Sociedade, atuantes na ABE, como Álvaro Ozório de Almeida, Ferdinando Labouriau, Dulcídio Pereira, dentre outros defendiam publicamente a disseminação da radiocultura, sendo notória a participação da ABE nas campanhas. Dentre as realizações da primeira diretoria, estava a elaboração de um ofício aos governadores sobre a utilização do rádio e do cinema para fins educacionais:

Exmo snr. Presidente,

A ABE, no empenho de servir à maior das causas nacionaes, elaborou, por seu Conselho Director, as bases – que com este cabe-me a honra de apresentar a V.Ex. como aos presidentes de todos os demais estados do Brasil – de um plano de utilisação systematica do cinematographo e da radiophonia em proveito da educação dos nossos concidadãos.

Esses dois preciosos instrumentos vão sendo, em toda, em toda parte, aproveitado para fins análogos, com resultados maravilhosos. No Brasil, a enorme área territorial em que se dissemina a população escassa, e a grande percentagem de adultos destituídos de cultura, até mesmo analphabetos – aconselham, ainda mais, a adoção generalisada, systematica, intensiva, d’esses meios de difusão de ensinamentos.

Nem é preciso dizer a V. Ex. que, atravez dessa diffusão de ensinamemntos se há de conseguir, ao mesmo tempo, reaffirmar e revigorar a solidariedade nacional, estreitando os pensamentos comuns que unem todos os brasileiros.

A A.B.E. inspirou-se fundamentalmente na experiência de outros paizes civilisados, attendendo, porém, às peculiaridades das nossas condições. Evitou, no entanto, formular um projecto de lei uniforme, detalhado e completo, para que, em cada caso, em cada estado, seja possível estabelecer dispositivos atenentes às circunstancias locaes.

Rio, Outubro de 1925. Levi Carneiro, presidente. (Boletim da ABE, novembro de 1925, p.23)

As discussões realizadas nas sessões do Conselho Diretor da ABE sobre radiofonia, com a presença de diretores da emissora, são reveladoras, na medida que demonstram a forma como essas duas entidades interagiam. No ano de 1927, os debates sobre o rádio se intensificaram no seio da ABE com Ferdinando Labouriau, Amoroso Costa e Mario de Brito na Presidência e outros sócios efetivos da PRA2 e da ABC no Conselho Diretor, como, por exemplo, Francisco Venancio Filho, Othon Leonardos, Álvaro Ozório de Almeida e Dulcídio Pereira. Nesse período, o mesmo grupo

desenvolvia uma atuação consistente no Partido Democrático do Distrito Federal, intensificando o movimento de reestruturação de nossas instituições políticas e culturais, como nos lembra Carvalho (1998). O rádio era um veículo fundamental a esse processo, que exigia a influência intelectual da elite sobre o povo.

Na reunião de 1º de abril, Dulcídio Pereira, chefe da Seção de Broadcasting da PRA2, e Roquette-Pinto, diretor da PRA2, lançam a proposta de fusão da rádio com a ABE ou um acordo de colaboração , uma vez que a Rádio Sociedade tem por fim a

propagação da arte, da sciencia, tem personalidade jurídica, tem patrimônio e varios compromissos. Fica a idéia de que as instituições poderiam se complementar, pois

tinham perspectivas semelhantes. Como veículo de comunicação, a emissora poderia dispor de várias opções de divulgação da causa educacional e cultural. Venceriam a distância e o isolamento, fazendo tendo amplitude nacional. Fica acertada a constituição de uma comissão para assuntos de radiodifusão composta por Ferdinando Labouriau, Barbosa de Oliveira e Fernando de Magalhães.

Na semana seguinte, maiores detalhes da proposta de fusão seriam expostos: a ABE criaria uma seção de Radiocultura, que seria entregue a Radio Sociedade. Por sua vez, a PRA2 daria uma subvenção à ABE como forma de financiar o rádio educativo. Álvaro Ozório de Almeida assumiu a Presidência da Seção de Radiocultura da ABE.

Em uma das primeiras ações da seção de Radiocultura, define-se a opção pela transmissão das palestras científicas promovidas pela Seção de Ensino Technico e Superior. Em julho, a seção lança o programa Pilulas scientíficas, sob a responsabilidade de Ferdinando Labouriau e com o propósito de vulgarização científica. Em linhas gerais, a proposta de integração entre a PRA2 e a ABE indica o ideal compartilhado pelas duas associações: a reorganização da sociedade em torno da cultura e da ciência.