• Nenhum resultado encontrado

1. ANCORAGEM TEÓRICA: A PERSPECTIVA DISCURSIVA

1.4. A (re)emergência da identidade

Os tempos (pós)-modernos evidenciaram a temática da identidade a partir do mesmo momento em que passaram a questioná-la. Obviamente, tal questionamento não se deu de forma instantânea, mas começou a ser gestado no bojo de posicionamentos assumidos por uma série de estudiosos que a tomaram como passível de ser problematizada. De acordo com Souza Santos (2003, p.

136), em uma referência a Descartes, “o primeiro nome moderno da identidade é a subcjetividade”.

Por essa razão, começamos, com Descartes, nossa discussão no capítulo precedente, para articular, como fizemos com a perspectiva discursiva, críticas em torno da sua concepção de sujeito autoconsciente, que, pelo exercício da razão, preconizaria uma identidade estável, originária e resolvida consigo mesma. Entretanto, as consequências do ponto de vista cartesiano não se restringem à questão individual.

É importante dizer que, além de engendrar a lógica da filosofia iluminista – e, mais ainda, do logos ocidental, centrado na razão do indivíduo –, essa visão atemporal e descontextualizada de sujeito terá efeitos na vida coletiva com o surgimento do dito Estado-Nação e da noção política de soberania, cujos pressupostos se assentam numa visão essencialista e naturalizada da realidade. Chauí (2000), ao questionar as origens da sociedade autoritária no Brasil, observa que nação era um conceito biológico que, significando primeiramente parto de

uma ninhada, já no século XIX, sendo utilizada como elemento unificador perante

as lutas para circunscrever os limites territoriais, “a nação passou a ser vista como algo que sempre teria existido, desde tempos imemoriais, porque suas raízes deitam-se no próprio povo que a constitui” (CHAUI, 2006, p. 14 e 19).

Desse posicionamento, deriva a noção de nacionalismo, que, moldado no âmbito do pensamento europeu e de sua auto-imagem frente às conquistas e colonização de novos territórios, adquiriu sentidos de superioridade racial e cultural, sobretudo se levarmos em conta outros dois conceitos: desenvolvimento e evolução, ambos extraídos do quadro teórico de uma sociologia de vocação positivista combinada com certo darwinismo social que, atribuídos às relações sociais, tenderiam a considerá-las naturalizadas, dadas de antemão.

Com base em Chauí (2000, p. 14-29), podemos dizer que, transformada em nacionalismo, a ideia de nação organiza-se por elementos que visam a criar a unidade de um povo, tais como mesma língua, mesma pátria, mesma cor, mesmo território; enfim, são elementos que procuram construir, ou melhor, estabelecer

(tornar estável) um idem, uma identidade que, em relação aos indivíduos de um país, sustentam o que se chama de identidade nacional, produzindo um efeito de unidade a partir de consensos e lealdades que justificam um “nós” em oposição a um “eles”. Em face disso, outros epítetos facilmente se somam à identidade, deslizando para identidade de grupo, identidade étnica, identidade de gênero, identidade linguística etc., mas que, acreditamos, são possíveis de serem resumidos no hiperônimo amplamente conhecido como identidade cultural.

Nessa busca de pertencimento, operando por classificação, pressupõe- se a exclusão do que teria o sentido oposto e, por isso, menos ou nada valorizado. Por exemplo: superior é valorizado em relação a inferior; igual em relação a

diferente, civilizado x selvagem, familiar x estranho etc. São elementos que

impõem maneiras de pensar dicotomizadas, que constroem visões de mundo, portanto, hierarquizadas e excludentes. Essas características do pensamento ocidental, calcado no logocentrismo, são fortemente questionadas por perspectivas teóricas que se posicionam contra a visão logocêntrica, especialmente a desconstrução derridiana, como precisaremos mais adiante.

Souza Santos (2003), de uma perspectiva sócio-política (sob o binômio regulação e emancipação social), discute o problema da identidade cultural nos moldes do que ele chamou de revisões dos discursos e das práticas identitárias ocorridas no período pós-moderno, fazendo com que, dessas revisões, houvesse um regresso das identidades. Tendo em vista que a modernidade muda de acordo com as transformações do capitalismo, esse sociólogo localiza o pós-moderno num terceiro período16 do capitalismo. Os anos 1960 são o marco desse

momento, cuja complexidade é atribuída, sobretudo, à desorganização do capitalismo: “[...] só pode ser desorganizado na medida em que colapsaram no

16 De acordo com Souza Santos (2003, p. 79-86), o primeiro período recobre todo o século XIX

com o dito capitalismo liberal. Nele, preconiza-se o desenvolvimento do mercado atrelado à industrialização, justificado pelo princípio do “laissez faire”. O segundo período, no qual o capitalismo estaria organizado, é marcado pelo positivismo de Comte, que, pregando o progresso, fortalece o capital industrial, financeiro e comercial, provocando o crescimento das cidades industriais. É nesse período que há o estabelecimento da relação produção/capital, a emergência da classe operária e a criação dos sindicatos e associações patronais.

terceiro período muitas das formas de organização que tinham vigorado no período anterior” (SOUZA SANTOS, 2003).

Apesar de localizar o pós-moderno como no terceiro período, parece- nos que Souza Santos não o vê como continuidade ou como momento que sintetizaria os anteriores. Mais que momento de crise, ele problematiza o pós- moderno como momento de transição em que se contesta a concepção hegemônica e eurocêntrica de identidade. Assim,

o clima geral das revisões é que o processo histórico de descontextualização das identidades e de universalização das práticas sociais é muito menos homogêneo e inequívoco do que antes se pensou, já que com ele concorrem velhos e novos processos de recontextualização e de particularização das identidades e das práticas (SOUZA SANTOS, 2003, p. 144).

No período pós-moderno, vive-se a contestação de vínculos sejam eles de classe, político, religioso ou étnico. Interessando-nos, mais de perto, a contestação étnica tem a ver com o direito às raízes, que convive, contraditoriamente, com os efeitos do que se convencionou chamar de globalização; efeitos que tenderiam a esmaecer as fronteiras nacionais, interconectando indivíduos, comunidades, línguas e raças. Nesse direito às raízes, em que se fala de uma valorização da identidade cultural, os questionamentos se direcionam ao posicionamento do sujeito enquanto resultado de experiências tanto locais quanto globais, motivo por que abordamos a identidade deslocando-a para experiências de grupos, concebendo-as como práticas identitárias que põem em relevo o hibridismo cultural. Quanto a isso, Homi Bhabha (2007) aborda o tema da identidade, contextualizando-o naquilo que chama de pós-colonial. Para ele, estudar os embates culturais é lançar mão de perspectivas que “[...] intervêm naqueles discursos ideológicos da modernidade que tentam dar uma ‘normalidade’ hegemônica ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações,

raças, comunidades e povos” (BHABHA, 2007, p. 239), os quais são resultantes de experiências coloniais, sendo, portanto, híbridas, mestiças.

Nesse sentido, este autor relaciona a identidade cultural com o problema da multiculturalidade com a finalidade de pôr em xeque as noções estáveis, que envolvem, ou envolviam, as questões identitárias alocadas na chamada modernidade. Assim, procura trazer a importância da alteridade na constituição das identidades, marcando uma relação entre identidade e diferença, uma vez que é a partir do outro que o sujeito se percebe enquanto tal. Suas reflexões são articuladas tendo em vista uma tensão que permite pensar a identidade do sujeito num entre-lugares.

Bhabha, na introdução de O local da cultura (2007), esclarece que seu propósito é pensar a identidade como vidas na fronteira. O autor expõe que os dias atuais carregam uma espécie de sensação de sobrevivência que revela nossa preocupação com o imediatismo nos prefixos controvertidos do pós: pós-

modernismo, pós-colonialismo, pós-feminismo... No entanto, ele nos lembra que

isso não implica uma ruptura com o passado; mas que este se torna importante na medida em que ressignifica o presente e se ressignifica nele. Nesse sentido, o autor nos mostra que

[o] trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “novo” que não seja parte do continuum de passado e presente [...] Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, reconfigurando-o como um entre-lugar contingente que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver (BHABHA, 2007, p. 27).

Quando fala em pós-modernidade, Bhabha considera o intervalo entre passado e presente como necessário para se produzir sentidos outros em relação à construção identitária. Podemos pensar esse intervalo com Jacques Derrida (1973, p. 29), assumindo, com ele, uma postura no que concerne à sua noção de

ocidental, cujas características apontamos anteriormente. Em relação à noção de

différance, Coracini (2007) explicita da seguinte maneira:

[a différance] constitui a própria desconstrução das oposições duais [...] termo cunhado por Derrida, para exibir a multiplicidade de sentidos que não se excluem, mas se superpõem – significa, a um só tempo, a garantia das diferenças [...] que se (des)encontram na contradição e no conflito... (CORACINI, 2007, p. 53-54).

Esses estudos apontam que as certezas do período moderno, cujas características e críticas a elas expusemos também a partir de Freud e Lacan, passaram a ser questionadas e revistas. Se, por um lado, essas noções corroboram o descentramento do sujeito moderno, proposto já pela vertente psicanalítica, na outra mão, elas engendraram a discussão sobre as identidades culturais e o contato intercultural enquanto efeito da globalização. Assim, questiona-se a maneira como esse sujeito fragmentado reivindica uma identidade.