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Migração e trabalho: os (res)sentimentos da territorialidade

2. TERRITÓRIO E (I)MIGRAÇÃO

3.2. Migração e trabalho: os (res)sentimentos da territorialidade

Vimos, até aqui, discutindo a representação que autóctones e migrantes gaúchos fazem acerca de si e do outro a partir da sua relação com o território enquanto espaço físico e também simbólico; um espaço que é relembrado, trazido à memória, e ressignificado por ambos os grupos, sendo, portanto, constitutivos de sua formação identitária.

Nos próximos recortes, seguimos problematizando a temática territorial, na medida em que ela irrompe nas narrativas dos entrevistados a partir de questões sobre o trabalho e a migração, evidenciando a relação com a terra e os efeitos do desmatamento, cujos sentidos são inscritos, como queixa, no corpo do mato-grossense, como podemos ver em S5.

S5

C4: no geral eles são assim/ têm uma mania de limpeza que é inacreditável// eles veem diferente/ acham que aqui tudo é sujo// deve ser por isso que querem limpar tudo/ inclusive a natureza// o pessoal que mexe com agricultura/ bom a maioria/ o que eles fazem com a terra é um pecado// imagina que eles derrubam a mata com corrente puxada por dois tratores/ vai levando tudo/ rasgam a terra// aquilo é como se estivesse me rasgando também!// a visão de cerrado também/ mudaram tudo em nome da civilização com agrotóxicos// pra você ver até a árvore que é linda eles chamam de lixeira// depois dizem que vieram pra trabalhar/ isso me mata!

Chamamos a atenção para o incômodo que nossa entrevistada, C4, apresenta com relação ao comportamento dos gaúchos, cuja preocupação é apresentada pela primeira dicotomia: limpeza x sujeira. A partir daí, podemos visualizar uma segunda dicotomia, a saber, natureza x civilização que vai compondo sua representação de território. Marcado textualmente, C4 acredita que os gaúchos veem a natureza como suja; mas, o fio do dizer traz sentidos que remontam a tempos de derrubadas da mata, à abertura de picadas no mato, na selva, a fim de limpar o caminho, abrir lugares de passagens, para, posteriormente, construir instalações68.

O verbo limpar, acrescido da expressão “mania de limpeza”, traz efeitos de sentido negativos à ação do migrante, deslizando, metonimicamente, para

derrubar, rasgar, destruir, (des)matar. Assim, a ação dos gaúchos é representada

como pecado e a terra como indefesa/inocente, que sofre com a ação

depredatória de desmatamento. Antes de avançarmos esta análise, vejamos o dizer do gaúcho que parece dialogar, num movimento de defesa, com S5:

S6

G4: e hoje/ isso [o desmatamento] é visto de uma forma/ é::/ as pessoas são condenadas por terem derrubado a floresta// mas essas pessoas são pessoas boas/ trabalhadoras/ que não tinham consciência dessa questão ecológica [...] então/ hoje eu noto/ assim/ que há esse/ esse ressentimento né/ de parte da sociedade em relação aos sulistas// e eles na época/ achavam que tavam fazendo uma grande coisa/ que tavam contribuindo pro desenvolvimento do país// então eu noto assim/ hoje [...] há uma formação de uma nova consciência ambiental que não existia há uns anos atrás.

Pesq.: era uma visão de... derrubar pra...

G4: pra desenvolver/ eles achavam que tavam fazendo uma grande coisa// tavam/ assim/ atendendo a um apelo político que era de desenvolver essa região/ de tornar essa região próspera/ rica né// o modelo de desenvolvimento/ ter asfalto era o grande sonho das pessoas e tal/ eu vejo assim.

É importante observar, nesses excertos, o enlace de dois conceitos de território, o funcional/econômico e o afetivo/simbólico (HAESTABERT, 2006). Para o enunciador mato-grossense, C4, o território tem uma valorização mais afetiva do que funcional, o que se percebe, no enunciado, a partir de um sentimento de integração com a natureza: me rasgando também. Nesse sentido, pode-se dizer que o corpo do cuiabano é parte do corpo da terra, como se fosse uma extensão ou uma simbiose, o que aponta para um sentimento identitário que reclama união

com o território, com a natureza; em nome da civilização, mata-se a natureza, mata-se também o mato-grossense: isso me mata!

Por outro lado, no dizer de G4, há uma representação de território em que se ressalta o aspecto funcional/econômico com o qual se procura justificar a ação de desmatamento da natureza. Por estar des-re-territorializado, a afetividade maior do gaúcho em relação ao território estaria no solo de origem, no caso, o Rio Grande do Sul. Percebemos, assim, em S6, ecos do discurso desenvolvimentista propalado pelos projetos oficiais de colonização69 e ratificado no dizer desta entrevistada como um atendimento [do povo gaúcho] ao apelo político para tornar rica e próspera a região; e como desenvolver sem desmatar? Como ter asfalto sem desmatar? Assim, nem a condenação nem o ressentimento dos mato- grossenses (“de parte da sociedade em relação aos sulistas”) se justificaria, já que, de acordo com G4, não havia consciência ecológica e a culpa estaria, então, no modelo de desenvolvimento que funcionava à época da migração para o Mato Grosso.

Considerando que os efeitos de sentido de uma mesma palavra mudam, tornam-se outros, de acordo com quem enuncia, veja-se que a visão de

trabalho aponta para sentidos diametralmente opostos para ambos os

enunciadores. O trabalho, para o cuiabano, indica uma visão romantizada, quase idílica, derivada de sua integração afetiva com a terra (“como se estivesse me rasgando também”). Por isso, a narrativa de C4 parece denunciar a ação violenta/pecado (trabalho?) do gaúcho contra o corpo da terra: afinal, agrotóxico é veneno e destrói, mata. Além disso, pode-se depreender de S5 um sentimento de revolta do cuiabano que indicia certa ironia com relação ao excesso de limpeza do gaúcho.

Esses dizeres parecem indicar um apagamento dos sentidos da exploração territorial de outros momentos já conhecidos em nossa história (com os colonizadores portugueses e os bandeirantes). Entretanto, poderíamos dizer que eles sugerem mais continuidade do que apagamento, já que são efeitos de uma

memória de colonização. O dizer de G4, por sua vez, aponta para uma representação de trabalho como progresso enquanto ação necessária para o desenvolvimento econômico; o trabalho é visto como um ato de grandeza e de realizações: “ter asfalto, era o grande sonho das pessoas”. O papel do gaúcho era contribuir, ainda que não houvesse uma “consciência ecológica”; mas o seu papel, o seu trabalho é, antes de tudo, condição e justificativa de sua existência como migrante, como mostramos com Sayad (1998).

Outra questão que podemos ressaltar, em S5, é o jogo de linguagem que a cuiabana faz em relação ao termo lixeira, na tentativa de manter uma lógica apresentada na dicotomia limpeza x sujeira. Considerada como planta típica do cerrado brasileiro (da região Centro-Oeste), a lixeira é uma árvore que possui folhas grossas e ásperas que lembram uma lixa, de onde deriva seu nome. Sabendo disso, C4 joga com os sentidos da homofonia entre lixo e lixa e os (con)funde na palavra lixeira. Pode não ser deliberado, mas, ao dizer que o gaúcho chama a planta de lixeira, embora não seja ele o primeiro a nomear tal árvore, dessa maneira, esta entrevistada manifesta seu incômodo, sua hostilidade, frente à indesejável presença do estranho, do migrante gaúcho, que, apesar de dizer que trabalha, ele limpa, destrói a natureza em nome da civilização e do progresso. Além disso, outro possível efeito de sentido diz respeito à higienização racial, sugerido, assim, por uma cadeia metonímica: limpeza, lixeira,

desmatamento, agrotóxico e “isso me mata!”

Observe-se que G4 elabora argumentos que tendem a justificar a gravidade do desmatamento ou amenizar os sentidos desta ação. Talvez por isso, numa atitude de defesa aos gaúchos, ela utilize o atributo sulista para generalizar a ação de desmatar e para compartilhar a culpa, já que também houve participação de paranaenses e catarinenses no processo migratório. Note-se a referência constante ao gaúcho com verbos na terceira pessoa do plural: não

tinham consciência, tavam fazendo, tavam contribuindo, provocando um efeito de

distanciamento temporal em relação à sua época. O seu tempo é o da “nova consciência ambiental”; G4 não desmata, mas justifica o desmatamento.

Veja-se que, neste contato ocasionado pelo processo migratório, as representações se contrastam entre si, os dizeres se digladiam. De um lado, o cuiabano enuncia a partir de uma posição de ser da terra, enquanto extensão da

natureza. Por outro lado, o gaúcho, pondo em relevo a representação de si como

povo bom e trabalhador, filia seu dizer ao discurso do desenvolvimento, do ato

civilizador. Apesar da pertença de ambos os grupos ser narrada como identidades

fixas, ou seja, como imagem de unidade de si e do outro (“no geral eles são

assim” [C4], “eu vejo assim” [G4]), é possível, como propusemos em nossa

hipótese, entrever nuanças que apontam para uma ressignificação de si que, muitas vezes, não é notada por nossos entrevistados.

O gaúcho enuncia a mudança de modo amenizado, justificando-se, parecendo querer se redimir da acusação de invasão. O cuiabano, por sua vez, formula a mudança de uma forma mais direta, sem, muitas vezes, aceitá-la ou concordar com ela; seus dizeres (re)velam um desejo de não haver mudança, de não aceitação do heterogêneo, fato que o faz simbolizar como ressentimento e

sentença: “Isso me mata!”

Nos recortes seguintes, continuamos discutindo acerca das representações de si e do outro em torno de questões sobre o trabalho. Em S7, o cuiabano relata fatos que remetem à relação patrão e empregado na região norte do Estado de Mato Grosso.

S7

C1: deles a gente já nota um preconceito maior ao mato- grossense/ o preconceito de chamar os cuiabanos que...// pra mim o cuiabano é o mato-grossense mesmo/ aquele de raiz/ de família/ de tudo/ né/ como eu sou// neles a gente já nota o preconceito de falar que o cuiabano é preguiçoso/ disso e tudo o mais/ porque eles vivem mais/ eu acho assim/ em contato// porque assim/ Sinop/ Sorriso/ Mutum/ é bem sulista/ se você andar lá/ você quase não encontra mato-

grossense// e quando encontra/ são pessoas que trabalham com eles/ mas/ assim// no trabalho mais pesado/ são os cha...// mais peão/ é bem difícil você achar mato-grossense lá dentro que ta bem sucedido e tudo o mais// tipo/ a minha mãe mora em Rosário, Rosário Oeste70// e lá de Rosário/ muita gente quando chega na idade de 18/ 19 anos/ que são cuiabanos/ que são mato-grossenses mesmo/ vão pra essas cidades pra trabalhar// porque o trabalho lá é maior/ eles oferecem maior/ um campo maior de trabalho// e aí é a hora que tem preconceito né// porque/ assim/ você pega um mato- grossense que quase não tem estudo/ que vem de cidade pequena, que vai pra lá pra trabalhar/ e aí tem o preconceito mesmo/ né.

Uma vez que a entrevista foi concedida em Cuiabá, C1 faz uma distinção entre os migrantes sulistas que moram na capital e os que estão na porção norte do Estado (Sorriso, Sinop, Mutum): o preconceito maior de chamar o cuiabano de preguiçoso vem “deles”; “neles a gente já nota o preconceito...” A relação das palavras “deles”, “neles” com o adjetivo “maior” produz o efeito de sentido de que se pode generalizar o preconceito entre os sulistas, estejam eles em qualquer lugar do Estado: na capital ou nas cidades “bem sulista”. As cidades exemplificadas por C1 indicam que o preconceito é maior entre os iguais, na medida em que, nelas, eles vivem mais em contato; diferentemente da capital, já que, aí, estando tais migrantes diluídos, o preconceito também existe; porém, seria menos evidenciado.

Note-se que C1 enuncia com sentimentos de identidade relacionados aos locais, aos autóctones, trazendo em seu dizer termos que traduzem uma ideia de autenticidade: “pra mim o cuiabano é o mato-grossense mesmo71/ aquele de

70 Cidade que faz parte da chamada Baixada Cuiabana. 71 Cf. a discussão sobre o termo “mesmo” na seção anterior.

raiz/ de família/ de tudo/ né/ como eu sou”. Sendo um cuiabano, C1 mostra que

também se sente atingida pela visão preconceituosa dos sulistas; por isso, na relação de poder com o outro e como um gesto de resistência, tenta desfazer a imagem de preguiçoso atribuída a ela e a seus conterrâneos, começando por empregar o verbo chamar, talvez querendo dizer “não somos/sou”, eles, os sulistas, que “chamam o cuiabano de preguiçoso”.

Outro argumento que indica um afastamento desta representação ou uma discordância dela é o fato de esta entrevistada posicionar o cuiabano como trabalhador braçal, como um “peão”. C1 não especifica o tipo de trabalho, mas podemos supor que o peão é aquele que serve para qualquer tarefa, desde que seja com o “trabalho mais pesado”; como as referidas cidades “bem sulistas” estão em processo de crescimento e sua base econômica é fortemente calcada na agricultura – sobretudo na produção de soja (“eles oferecem um campo maior de trabalho”) –, o peão pode ser trabalhador de construção civil, boia-fria ou atuam em outras atividades que também não requerem maiores habilidades intelectuais. Assim, na visão de C1, o “mato-grossense mesmo” pode ser ignorante, “quase não tem estudo”, mas é trabalhador.

É justamente na relação estudo e trabalho que nossa entrevistada procura justificar certa exclusão de seus compatrícios (os mato-grossenses de Rosário Oeste) nas cidades cuja predominância é de migrantes sulistas: “é bem

difícil você achar mato-grossense lá dentro que ta bem sucedido e tudo o mais”;

“bem sucedido” é sinônimo de boa posição social econômica.

Numa primeira interpretação, notamos que a entrevistada relaciona essa falta de êxito à [quase] falta de estudo, o que faz com que, na defesa do cuiabano, ela construa argumentos circulares que evidenciam a mesma posição social do cuiabano: com a quase falta de estudo e pouco emprego (note-se que C1 diz: “lá o campo de trabalho é maior”), ele já não era “bem sucedido” na cidade de origem, pois esta é “cidade pequena”, o que implica sinônimo de atraso e poucas oportunidades. Nessas condições, quando o mesmo parte em busca de

fazendo com que seja “bem difícil”, para não dizer “impossível”, que o mato- grossense esteja “lá dentro”, inserido economicamente.

A partir dessa primeira leitura, é possível acrescentar que C1 atribui tal exclusão, o “trabalho mais pesado”, a condição de “peão”, ao preconceito dos sulistas: “aí é a hora que tem preconceito”, como se estivesse culpando-os por alocar os mato-grossenses, que “quase não tem estudo”, em subempregos. Assim, no dizer de C1, os efeitos de sentido de preconceito deslizam entre os significantes preguiçoso, [falta de] estudo, trabalho braçal e “não ta bem sucedido”, disseminando sentidos que já havia enunciado anteriormente na sequência “disso e tudo o mais”. Observe-se que são significantes com sentidos negativos e que organizam o dizer de C1 em torno de uma falta, que, uma vez não suprida, aponta para uma privação, característica de um discurso ressentido que se relaciona à memória do acesso à terra em Mato Grosso.

Como vimos, no capítulo anterior, os projetos oficiais de colonização e a política agrária foram excludentes com relação aos mato-grossenses, já que estes, diferentemente dos sulistas de origem teuto-italiana, não tinham tradição agrícola. Nessa direção, discutindo sobre ressentimento e injustiça, Kehl (2011, p. 284) argumenta que “[o] ressentimento social tem origem nos casos em que a desigualdade é sentida como injusta diante de uma ordem simbólica fundada sobre o pressuposto da igualdade”. Dessa maneira, o fio do dizer mostra que o sulista tem uma boa posição sócio-econômica, pois são proprietários de terras, são produtores agrícolas, oferecem trabalho [embora seja braçal] e, por isso, são bem sucedidos. Assim, o ressentimento de C1 não se restringe a ela, mas se estende aos seus conterrâneos, “os mato-grossenses mesmo”, os quais foram privados do acesso à condição de igualdade social.