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1. ANCORAGEM TEÓRICA: A PERSPECTIVA DISCURSIVA

1.6. O processo identificatório

Já observamos que a identidade tem a ver com uma imagem fixa de si mesmo e que, por isso, é uma construção ilusória que dá, ao indivíduo, a sensação de inteireza, de completude, fazendo com que se possa prescindir de uma alteridade. Se a identidade não é dada, ela é construída ao longo de nossa existência, motivo por que se fala em processo identificatório ou identificação.

Esse tema, desenvolvido primeiramente por Freud (192119), é amplamente problematizado por Lacan (196120). De modo geral, podemos dizer que a identificação atua de maneira inconsciente; por isso, não deve ser entendida como imitação deliberada de características semelhantes de alguém. A relação não é entre duas pessoas ou dois indivíduos, sendo um o modelo para o outro, mas na representação psíquica que se tem um do outro. Por isso, Nasio (1997, p. 100) afirma que, em psicanálise, há uma substituição “[d]as relações intersubjetivas por relações intrapsíquicas”.

Freud (1921, p. 22) começa por dizer que “a identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa”. Assim, o processo identificatório se inicia na infância, atuando na formação psíquica da criança como momento de investimento afetivo nas imagens parentais. Sendo uma relação de amor ou de hostilidade, Freud argumenta que “a identificação, na verdade, é ambivalente desde o início; pode tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo do afastamento de alguém” (FREUD, 1921, p. 23).

Freud (1921) estabelece que, nesse processo, a identificação ocorre

19 Psicologia das massas e a análise do eu. 20 La Identificación.

entre duas instâncias psíquicas inconscientes: o eu e o objeto, sendo este a representação psíquica do outro na qual há um investimento do eu. Segundo o esquema sugerido por Nasio (1997, p. 106), no estudo da identificação postulado por Freud, o eu pode identificar-se com um traço ou com a imagem do objeto ou pode ocorrer uma identificação enquanto emoção.

Com base nesses três aspectos, Nasio propõe uma correspondência entre Freud e Lacan no estudo da identificação, a saber: para o traço, equivale a identificação simbólica; para a imagem, a identificação imaginária; e, para o aspecto da emoção, corresponde a identificação fantasística. Para nosso propósito, vamos nos deter na identificação imaginária, pois acreditamos que as representações identitárias sejam construídas, em grande parte, nesse tipo de identificação; com isso, não estamos eliminando a possibilidade de que, nos dizeres dos entrevistados de nossa pesquisa, possa irromper a identificação simbólica ou a fantasística.

Antes de adentrarmos mais nos estudos de Lacan, é importante observar a diferença entre ele e Freud quanto ao processo identificatório: enquanto que, em Freud, o eu atua como elemento ativo em relação ao objeto, em Lacan, o processo se inverte, pois “o agente da identificação é o objeto e não mais o eu. Graças ao conceito de identificação, Lacan resolve assim um problema psicanalítico fundamental: [...] dar nome ao processo de causação do sujeito do

inconsciente” (NASIO, 1997, p. 102). Nesse sentido, o eu não prescinde do outro,

mas parte dele para constituir-se enquanto tal. No processo de identificação, a causação do sujeito se dá imaginariamente (formação do eu) e simbolicamente (formação do sujeito do inconsciente).

“O estádio do espelho como formador da função do Eu” é o texto em que Lacan (1936, 1949) começa a problematizar a identificação imaginária. Para Lacan, nesse texto, a criança reconhece sua imagem refletida no espelho e, pela percepção visual, acredita que é uma entidade homogênea. Jubilando-se com a imagem especular de seu corpo, a criança se vê como um todo harmonioso, que lhe dá a sensação de inteireza e de domínio sobre si. Há, portanto, primeiramente,

uma identificação com a própria imagem, sendo também correlato do nascimento do eu narcísico.

Este momento único, inaugural na relação especular, é a matriz de outras e sucessivas identificações na relação com o outro, reconhecido como semelhante. Este outro tomará o lugar do espelho e retornará ao sujeito, assim como o espelho, a imagem que ele tem de si: “é assim que o outro me vê”, forjando um eu ideal. Entretanto, essa relação é regulada por imperativos éticos, por um conjunto de representações culturais que, ao ser internalizado, é chamado de ideal do eu na terminologia freudiana, representando, assim, “a transformação da autoridade parental num modelo” (KAUFMANN, 1996, p. 255). Nesse sentido, é importante observar que a identificação imaginária também prepara a entrada do sujeito no simbólico, uma vez que, para Lacan (1949, p. 98),

[a] assunção jubilatória de sua imagem especular [...] parece- nos pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o Eu se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito. [...] Mas o ponto importante é que essa forma situa a instância do eu, desde antes de sua determinação social, numa linha de ficção...

Note-se que, nas palavras de Lacan, há uma distinção entre o Eu, grafado em letra maiúscula e o eu, em minúscula. O primeiro (Je, na versão francesa) diz respeito à ordem simbólica que antecede o sujeito; o segundo (moi) concerne ao eu imaginário (lugar da ficção). Isso implica que, no estádio do espelho, a criança se assujeita à ordem simbólica, à linguagem, para ter acesso a ela, alienando-se a si e ao outro. Assim, na ordem do imaginário, o eu instaura uma ilusão de ser unificado, vivendo a certeza de ser um si mesmo. A partir disso, só é possível falar em identidade enquanto ilusão, ficção que é construída como narrativas de si, cuja interpretação é tida como verdade.

Ao falar do acesso ao simbólico, já estamos nos referindo ao nascimento do sujeito do inconsciente, uma vez que este é efeito de linguagem e

só existe na relação entre significantes, da maneira como discutimos na primeira seção deste capítulo, quando abordamos a inversão que Lacan faz no que concerne ao significante saussureano. O sujeito do inconsciente está relacionado com a identificação simbólica, na medida em que ele é “compreendido como a produção de um traço singular que se distingue ao retomarmos um a um a cadeia significante de uma história” (NASIO, 1997, p. 114 [grifo nosso]).

Esse traço singular é tido por Lacan como traço unário, não porque unifica o eu a um traço do objeto amado (como o caso histérico de Dora que imitava a tosse do pai), como mostrou Freud21 ao falar da identificação, mas porque exerce uma função distintiva, sublinhando uma diferença a cada retomada, a cada repetição; diferença que marca a singularidade do sujeito. O sujeito é concebido como faltante, menos um; por isso, “o traço unário estará no centro da repetição [...] [pressupondo] o fundamento de um Um primordial constituído no lugar de uma falta, de um apagamento originário. [...] Em suma, alguma coisa é contada para o sujeito antes que ele se ponha a contar” (ANDRES, 1996, p. 562).

Assim, o traço unário, como lugar de uma falta, baliza a vida do sujeito, impondo-lhe um desejo, uma busca constante por preencher tal falta; por isso, há sempre um retorno a esse lugar, ao significante. Assim, como marca do simbólico e do inconsciente, o significante exerce função primordial sobre o sujeito. Nesse sentido, convém repetir as palavras de Dor (1992, p. 42), que, ao discutir sobre o sujeito e a linguagem em Lacan, argumenta que “é ele [o significante] que governa no discurso do sujeito; ou mesmo que é ele que governa o próprio sujeito”.

A partir dessa abordagem, sustentamos que a identidade do sujeito é produzida pela linguagem, funcionando como um efeito que tem seu suporte no discurso. O discurso, portanto, encarrega-se de dar um efeito de completude à identidade. Uma vez que essa identidade é uma ficção de si mesmo, pois há apenas uma ilusão de unidade, o dizer dos sujeitos nos dá a conhecer alguns pontos de identificação, mostrando, portanto, que a identidade nunca é acabada, pronta, mas que está sempre em construção. Assim, nosso ponto de vista se

alinha ao que pensa Derrida (1996, p. 43), para quem

Uma identidade nunca é dada, recebida ou alcançada, não, apenas existe o processo interminável, indefinidamente fantasmático, da identificação. Qualquer que seja a história de um retorno a si ou a sua casa [...] imaginamos sempre que aquele ou aquela que escreve deve já saber dizer eu. Em todo caso, a modalidade identificatória deve já estar ou passar a estar assegurada: assegurada da língua e na língua. [grifos do autor]

Sendo um efeito do discurso, os sentidos da identidade são construídos pelos diversos sujeitos no seio das sociedades. Entretanto, essa construção de sentidos não se dá de forma pacífica; ela ocorre na relação tensa dos jogos de poderes e de verdades que procuram criar dispositivos de classificação dos sujeitos, impondo-lhes formas de representação que também são garantidas na/pela língua.

Nesse sentido, podemos pensar que, no embate dos sujeitos que reivindicam uma identidade, as representações podem apontar resistências22, às vezes, caracterizando-se como trincheiras de identidades na relação com o outro, no caso de nossa pesquisa, na relação entre migrantes gaúchos e mato- grossenses. Essas resistências também podem ser pensadas articulando-se as temáticas da estrangeiridade e hospitalidade nos processos migratórios.