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Da velha à nova colonização: um incurso na história de Mato Grosso

2. TERRITÓRIO E (I)MIGRAÇÃO

2.4. Da velha à nova colonização: um incurso na história de Mato Grosso

período em que Espanha e Portugal passaram a disputar a conquista do território americano com o Tratado de Tordesilhas, demarcando, assim, as partes que passaram a pertencer a cada país. No século XVIII, por ocasião do Tratado de Madri (1754), Portugal instalou grandes blocos de pedras esculpidos com inscrições de pertencimento territorial português. Um desses blocos foi instalado às margens do rio Jauru (MT) e, atualmente, encontra-se na praça central da cidade de Cáceres27, conhecido como Marco de Jauru.

Mas, foram os bandeirantes paulistas, ávidos pelo ouro do Novo

Eldorado, que conquistaram, não sem guerra aos nativos indígenas, o território

que hoje faz parte do Estado de Mato Grosso. Os bandeirantes tinham interesse, primeiramente, na mão-de-obra indígena, já que, nas capitanias do sudeste, sobretudo na de São Paulo, a produção canavieira não obteve expressividade como as do nordeste brasileiro. Assim, ficava mais barato escravizar os índios do que importar negros da África; os paulistas, “[...] ao contrário, iam buscar sua mão- de-obra em pleno sertão, constituindo-se em traficantes de índios junto a algumas capitanias do Centro-Sul e, mais tarde, do Centro-Oeste e Amazônia” (SIQUEIRA,

2002, p. 26).

Por volta de 1718, Pascoal Moreira Cabral e sua bandeira perseguiram os índios coxiponés28, dos quais muitos foram aprisionados e levados para São Paulo como escravos. Num descanso, após essas violentas guerras, membros da bandeira teriam encontrado, casualmente, ouro na beira do rio Coxipó-Mirim, quando lavavam seus pratos após a refeição. Esse achado provocou a instalação de pessoas interessadas em explorar o lugar, criando, assim, vários vilarejos, conhecidos por arraiais, cujos capitães, com a função de administrar e fiscalizar o local, também tinham a incumbência de aumentar o patrimônio da Coroa Portuguesa, a partir da cobrança de impostos. No início do século XVIII, funda-se o mais importante deles: o Arraial do Cuiabá29, como informa a Ata de Fundação de Cuiabá:

Aos oito dias do mês de abril da era de mil setecentos e dezenove neste Arraial do Cuiabá fez junta o Capitão-mor Pascoal Moreira Cabral com seus companheiros e ele requereu a eles este termo de certidão para notícia do descobrimento novo [...] depois que foi o nosso enviado Capitão Antonio Antunes com as amostras de ouro ao Senhor General [...] (SIQUEIRA, 2002, p. 32).

É importante observar também que, nos arraiais, foram sendo construídas igrejas, casas e pequenas instalações comerciais, dando origem à sociedade cuiabana. Entretanto, como a preocupação estava mais voltada para a mineração, a região não era abastecida por produtos de segunda necessidade30; estes chegavam, em sua maioria, da Capitania de São Paulo, sobretudo pela rede hidroviária, em barcos que carregavam tanto alimentos quanto pessoas; essa forma de transporte recebeu o nome de monções.

Os índios eram grandes conhecedores dos caminhos; aqueles que se

28 Nome que os bandeirantes deram aos indígenas que localizaram nas margens do rio Coxipó-

Mirim, afluente do rio Cuiabá. Essa etnia é hoje conhecida como Bororo.

29 Às margens do rio Cuiabá, nome que deu origem à atual capital do Estado.

30 Roupas, bebidas, medicamentos, ferramentas de trabalho, sal...; os produtos de primeira

deixaram ser domesticados guiavam os sertanistas tanto por terra quando por rio. Os indígenas também auxiliavam na fabricação das embarcações apropriadas para a navegação nos rios da região, no reconhecimento de raízes comestíveis, animais e de ervas medicinais, além de identificarem as outras etnias que poderiam oferecer perigo aos desbravadores. Nesse sentido, Siqueira (2002, p. 35) afirma que “[...] o índio representou, para o bandeirante, não somente mão-de- obra, mas, sobretudo, serviu-lhe de guia e professor, pois conhecia, como ninguém, o tão temido e desconhecido sertão Oeste”.

No entanto, a resistência indígena à dominação branca se fez presente em dois povos: os Paiaguá e os Guaicuru. Os primeiros eram habilidosos na água e, por isso, realizavam muitos ataques surpresa às monções. Os Guaicuru, por deterem destrezas na arte da cavalaria, faziam seus ataques debruçando-se na lateral do cavalo, a fim de que não pudessem ser atingidos pelos brancos. Essa etnia se localizava mais na região sul do Estado que, após a divisão em 1977, tornou-se o atual Mato Grosso do Sul.

De acordo com Sá (1975), o primeiro ataque Paiaguá às monções que chegavam de São Paulo data de 1725. Assim, ele registra:

Causa esta novidade grande alvoroço nesta povoação, e não menos sentimentos a perda de tantas vidas e fazendas [...]. Não se sabia que gentio era, adonde habitava e que nome tinha, por não ser até então o nome Paiaguá conhecido dos antigos sertanistas conquistadores destes sertões. [...] gentio do corso que não tinha morada certa, viviam sobre as águas sustentando-se de montarias pelo Paraguai abaixo e pantanais ajuntos [...] (SÁ, 1975, p. 58).

Devido a esses ataques, os colonizadores bandeirantes montavam expedições para promover, com a autorização de Portugal, guerra aos índios Paiaguá, a fim de cativá-los ou extingui-los. Assim, os sertanistas passaram a fortalecer suas conquistas, invadindo terras e domesticando os “selvagens”.

Veja-se que, aos poucos, o território foi sendo ocupado pelos bandeirantes e pelos grupos de pessoas que aportavam das monções, sendo a

maioria composta por brancos, mas que também traziam seus escravos negros e índios de outros lugares. Um caso exemplar foi a mudança do governador, Rodrigo César de Menezes, da Capitania de São Paulo para o então Arraial de Cuiabá em 1726, em consequência da falta de controle político e econômico da região pela Coroa Portuguesa, uma vez que eram os próprios desbravadores quem aí detinham o poder e enriqueciam às custas, sobretudo, da extração aurífera.

Dentre as várias medidas tomadas pelo governador, a mais severa foi reassumir o controle administrativo-fiscal a partir da criação de impostos para aumentar a arrecadação seguindo o modelo colonial e implantando os postos de Provedor da Fazenda Real, além de perseguir e executar os irmãos João e Lourenço Leme, comerciantes e mineradores que controlavam a região das minas de Cuiabá.

Outra providência importante na estada de Rodrigo César no arraial cuiabano, antes de seu retorno a São Paulo em 1728, foi o início da regularização fundiária que já começava a dar sinais de preocupação devido ao aumento populacional e ao interesse na mineração. Essa tarefa também teve moldes portugueses, ou seja, começou-se a implantar em Mato Grosso, bem como em todo o Brasil, uma divisão das terras com base nas sesmarias. De acordo com Siqueira (2002, p. 39),

[a]s sesmarias coloniais eram extensões de terras doadas pelo rei, através dos capitães-generais, aos colonos que tivessem requerido, através de ofício, uma determinada porção de terra, a que chamavam “data”. No Brasil, as sesmarias eram propriedades que variavam muito em medida, podendo atingir de 3 a mais de 100 léguas de extensão.

Dessa maneira, o então governador passou a doar as primeiras cartas de sesmarias para os habitantes que cultivavam a terra e nela criavam gado e outros animais. Assim, a produção condicionava a aquisição dos títulos de

propriedade, pois era sobre ela que recaíam os impostos destinados a Portugal. Entretanto, em regiões auríferas, a concessão de terras era bastante reduzida, já que a Coroa temia perder o controle da extração e da produção de ouro.

Desde então, a sociedade mato-grossense, sobretudo a cuiabana, foi se formando e se transformando. Nesse período, que compreende o chamado Brasil Colônia, havia aqueles brasileiros que tinham conhecimento acadêmico devido à formação na Europa, fato que favoreceu a investigação científica em relação à geografia, história e à botânica, implicando, a partir do conhecimento da natureza, o extrativismo da borracha. Também houve o início da organização do poder civil e religioso nas terras de Mato Grosso. O Estado, além disso, teve forte participação na formação política do país, consubstanciando as bases da cidadania brasileira, a partir do período republicano.

Já no século XX, situamos a problemática das terras em Mato Grosso no movimento conhecido como Marcha para o Oeste (década de 1930), posteriormente integrado pela Fundação Brasil Central e a Expedição Roncador-

Xingu (1943)31. Iniciado pelo Presidente gaúcho Getúlio Vargas, com o objetivo de povoar a inexplorada vasta área da região Centro-Oeste e integrá-la ao resto do Brasil, esse movimento foi intensificado a partir da década de 1970 e continuado, sobretudo, após a divisão do Estado em 11 de outubro de 1977.

Depois desse corte geográfico e de acordo com o pensamento de seus dirigentes na época, como elite centralizada na capital Cuiabá, o Estado não poderia mais ser visto como território vazio, improdutivo e selvagem, já que nele predominavam a mata amazônica (na porção norte) e o característico cerrado do Centro-Oeste. Não somente os dirigentes, mas também escritores mato- grossenses corroboram tal posicionamento; é o caso, por exemplo, de Póvoas (1977) que, ao lançar seu livro Mato Grosso: um convite à fortuna32, o tem como

uma espécie de propaganda ufanista do Estado. Nesse livro, o autor, conhecedor da procura por oportunidades de negócios, exagera nos atributos à sua terra e

31 Cf. A Marcha para o oeste – a maior aventura do século XX. Disponível em

http://www.brasiloeste.com.br/2004/11/a-marcha-para-o-oeste/

lamenta o desconhecimento de suas riquezas, como podemos observar no seguinte trecho:

É incalculável o número de pessoas, especialmente do sul do

Brasil, que buscam informações sobre as terras e as

oportunidades de negócios no vasto Estado Central. [A] falta de divulgação faz com que, lamentavelmente, ainda haja, no

litoral, brasileiros para os quais Mato Grosso seja, até hoje,

‘uma terra longínqua, inóspita e selvagem’ [...] Move-nos o amor à terra natal; à imensidão e às belezas do seu território; aos lances épicos de sua história; ao que o homem nela construiu, sozinho, desassistido, por muito tempo, do Poder Central, em empreendimentos arrojados; às riquezas incalculáveis e ainda adormecidas (PÓVOAS, 1977, p. 09) [grifo nosso].

Essa mesma visão, ou seja, de território vasto, improdutivo, inóspito é constantemente (re)atualizada, como o faz um jornal, ao trazer a biografia de um ex-governador do Estado:

Formado em Agronomia pela Universidade Federal do Paraná, na década de 1970 chegou a Mato Grosso, acompanhando os pais, pequenos produtores que decidiram investir no potencial agrícola do Cerrado brasileiro, até então

uma região inóspita e pouco ocupada.33 (grifos nossos)

Assim, para extirpar a imagem de um Estado impotente, improdutivo, que não colaborava com o país, junto às políticas nacionais para incentivar o desenvolvimento da região, MT passou a contar com numerosos programas

oficiais de colonização como o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária) e a SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). Esta procurava explorar a região norte do Estado, beneficiando empresas (pessoas jurídicas) com incentivos fiscais, mediante os quais se poderiam deduzir “[...] até 50% do valor do Imposto [de renda] devido pela

inversão em projetos agrícolas, pecuários, industriais e de serviços básicos que a SUDAM declare [declarasse] de interesse para o desenvolvimento da Amazônia” (Decreto Lei n. 1.376 de 1974, apud. PÓVOAS, 1977, p. 137).

Esses incentivos atraíam as empresas colonizadoras particulares que, além de movimentarem o grande capital, promoviam a propaganda e a disseminação do projeto colonizador com a compra de terras ditas devolutas. Como exemplo, trazemos o caso da venda de 400.000 hectares de terras à INDECO (Integração Desenvolvimento e Colonização S/A). De acordo com Póvoas (1977), essa firma era presidida pelo empresário Ariosto da Riva, pois este já era conhecido como vitorioso em outras empreitadas, o que o capacitava como confiante e digno de levar a cabo o referido projeto. Segundo o mesmo autor, “essa área está ao lado de outra, de cerca de 600.000 hectares, que a firma já possuía, adquirida de particulares, formando uma extensão contínua de um milhão de hectares” (PÓVOAS, 1977, p. 121).

Nesse sentido, esses projetos e programas de colonização estimularam a vinda de grande leva de migrantes para Mato Grosso, advindos das mais diversas regiões brasileiras, formando um grande contingente de mão-de-obra com colonos, garimpeiros e posseiros. Dentre essa grande leva, chamamos a atenção para o contingente de sulistas, particularmente aqueles provenientes do Rio Grande do Sul, como corrobora Vagner (1995, p. 79), ao discorrer acerca da expansão das fronteiras agrícolas na selva amazônica: “incentivados pela política governamental de crédito subsidiado para a ocupação da selva, centenas de gaúchos jogaram a sua sorte na densa e obscura mata”.

Do nosso ponto de vista, como apontamos anteriormente, os gaúchos apresentam uma particularidade frente a outros migrantes que passamos a descrever na sequência. Essa particularidade advém da própria situação de muitos gaúchos e das condições em que a problemática da nova colonização do território mato-grossense se coloca. O atributo nova refere-se ao período em que o Estado mato-grossense promoveu a colonização com diversos programas e a intensificou a partir da década de 1970. Está pressuposta a velha e conhecida

colonização iniciada pelos portugueses e bandeirantes em períodos anteriores. Diferentemente de outros migrantes, tais como o nordestino e o mineiro, o gaúcho34, acostumado a manejar a terra com suas pequenas produções no Estado de origem35, migra para o Mato Grosso na condição de proprietário e não como aqueles que, em decorrência de sua situação de pobreza no lugar de origem, vão oferecer-se como mão-de-obra. Póvoas (1977, p. 122) argumenta que, como exigência do INCRA, “de acordo com o plano de colonização da Indeco e das demais companhias que adquiriram glebas do Estado, [...] os lotes somente serão vendidos a quem for, realmente, abri-los e explorá-los”. Assim, para evitar o (im)possível processo de corretagem, as empresas colonizadoras faziam uma seleção de ocupação, mediante a qual, numa política de exclusão do trabalho na terra, privilegiavam aqueles de tradição agrícola, conforme observamos na sequência:

[nos centros de triagem] os colonos, que antes foram

selecionados segundo a sua tradição agrícola, nos

respectivos Estados de origem, permanecerão por alguns dias em hospedaria da firma, e por conta desta, numa verdadeira quarentena, durante a qual serão submetidos a exame médico e receberão instruções sobre a preservação das matas e se informarão das técnicas agrícolas (PÓVOAS, 1977, p. 123) [grifo nosso].

Como apontamos, entretanto, os gaúchos de tradição agrícola (os que migraram para Mato Grosso) geralmente são descendentes de imigrantes alemães e italianos, os quais vieram para o Brasil, no início do século XIX. Nesse sentido, acreditamos que é importante trazer um pouco da história da imigração no Rio Grande do Sul, pois tal história mostra a forma de acesso à terra naquele Estado, dá-nos condições para entendermos o processo migratório em Mato

34 Veremos, a partir de nossas entrevistas e da história da colonização no Rio Grande do Sul, que

há distinções entre os próprios gaúchos. Assim, os que migram, geralmente, são descendentes de alemães e italianos que, por sua vez, imigraram para o RS no século XIX.

35 Não somente no Rio Grande do Sul; a trajetória gaúcha passa pelos estados do sul do país e

Grosso, além de auxiliar a compreensão da maneira como o território, o espaço vivido é ocupado e, ao mesmo tempo, simbolizado.