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Caminhando a favor do vento, com lenço e com documento!

2. TERRITÓRIO E (I)MIGRAÇÃO

2.6. Caminhando a favor do vento, com lenço e com documento!

Ainda movido pelo espírito que animou a Marcha para o Oeste, o governo federal lançou mão do Plano Nacional de Integração (PIN) na década de 1970. Considerado o primeiro dos grandes programas que atingiram Mato Grosso, o PIN procurava integrar os grandes espaços da região Centro Oeste à economia nacional. Para tanto, esse programa previa retalhar o Estado mato-grossense,

primeiramente, com as rodovias federais Transamazônica e Cuiabá-Santarém e, posteriormente, com novas estradas que interligassem a capital a outros Estados brasileiros.

Com o intuito de ocupar essa região de terras devolutas por pequenos agricultores migrantes para que esses pudessem produzir e explorar os recursos naturais, foram criadas extensões de terras de 10 km às margens dessas rodovias que, mais tarde, foram ampliadas para 100 km e vendidas a preços praticamente simbólicos. Dessa maneira, de simples sitiantes, em pouco tempo, os sulistas transformaram-se em fazendeiros em Mato Grosso, conforme podemos observar com Vagner (1995, p. 73):

Atilano Albino da Silva, o Tânio, é uma destas pessoas que acreditam ter pouca coisa a reclamar da vida. Nos anos 70, desceu de um ônibus na beira da rodovia Cuiabá-Santarém como mais um peão em busca de serviço na cidade de Sorriso. Hoje é sócio-gerente de uma imobiliária, possui um avião, é dono de várias fazendas, planta soja na Bolívia e tem mais de 2,5 milhões de hectares de terra para negociar. Tânio é filho de pequenos agricultores do município gaúcho de Cruz Alta que migraram na década de 40 para o sudoeste paranaense.

Esse caso exemplar ilustra bem o que apresentamos acima. Ou seja, grande parte dos sulistas e, em particular, os gaúchos, rumavam para Mato Grosso impulsionados pelos ventos da nova colonização, estimulados pelas colonizadoras particulares, não sem a ideia de fazer fortuna e tornarem-se latifundiários, cuja posse era, de antemão, autorizada, legitimamente documentada pelo próprio Estado.

Essa forma de “legalizar” a propriedade da terra guarda estreitos laços com o sistema de Sesmarias implantado pela Coroa Portuguesa no Brasil Colônia. Esse sistema repartiu as terras brasileiras em grandes extensões, que foram concedidas aos donatários portugueses, geralmente membros da nobreza, por

meio de Carta de Sesmaria; esses deveriam explorar a terra e produzir bens que também eram enviados a Portugal.

O sistema sesmarial teve seu término oficial a partir da promulgação da Lei de Terras de 1850, que estabeleceu a compra como única forma de aquisição de terras. [...] Com a proclamação da República, especialmente após a Constituição de 1891, as terras devolutas passaram ao domínio das Unidades Federativas, sendo que, a cada Estado, coube a responsabilidade pelas terras circunscritas ao seu território (SIQUEIRA, 2002, p. 228).

Assim, do antigo sistema passou-se à legitimação da terra em títulos de propriedades desde que houvesse, nessas terras, edificações, gado, lavoura e engenhos, como já apontamos. Caso não se constatassem, por verificação direta, essas benfeitorias, as terras voltavam à propriedade do Estado, conhecidas, então, como terras devolutas. Essa nova forma de legislar sobre a propriedade da terra permitiu que o Estado de Mato Grosso iniciasse o processo de venda das terras denominadas devolutas.

Nesse sentido, fica claro que quem poderia comprar tais terras eram as oligarquias regionais que, já detendo propriedades, poderiam legislar em causa própria, estabelecendo a concentração de grandes territórios em suas mãos. Veja- se que o problema do latifúndio no Brasil é eminentemente histórico e faz eco nas questões agrárias e no processo migratório em Mato Grosso, também na década de 1970, com os programas governamentais que incentivaram o fluxo migratório e a industrialização do Estado.

Com o novo Plano de Integração Nacional (PIN II), em 1971, e a abertura de novas rodovias, houve interesse de grandes empresários na área da agricultura e pecuária, desfavorecendo aqueles pequenos agricultores migrantes que compraram as terras que margeavam as rodovias. Já que não poderiam competir com a tecnologia mecanizada, muitos venderam suas propriedades e passaram a atuar como comerciantes na capital, Cuiabá, e nas cidades que foram se formando com a migração sulista, como é exemplo de Tangará da Serra e

Lucas do Rio Verde. Esse novo empreendimento, ou seja, o comércio, foi possível porque nem toda a família ia trabalhar na lavoura; a mulher e os filhos ficavam nas cidades, uma vez que estas ofereciam a infra-estrutura necessária, como escolas e bancos, da maneira como nos reporta Orlando Morais, em um texto de 1975:

Muitos apenas passam por Cuiabá e vão desbravar o Norte de Mato Grosso e a região Amazônica. Por lá, levantam acampamento, reúnem-se em vilas, fundam novos municípios. Recebem todo o apoio dos que ficam em Cuiabá. É na capital do Estado que estão os bancos, as escolas, os hospitais, os hotéis, os escritórios das empresas de colonização, as lojas de roupa, comida e autopeças, enfim, os serviços em geral45.

Nessa época, entrou em funcionamento um novo programa para explorar as ditas terras áridas do cerrado do país: o Programa de desenvolvimento dos cerrados (POLOCENTRO). Este procurava superar os obstáculos à exploração agrícola fornecendo crédito agropecuário, incentivos à experimentação agrícola e subsídios a pesquisas por meio de mecanização agrícola; crédito bancário visando principalmente ao financiamento para desmatamento e conservação do solo e para a aquisição de corretivos de solo e fertilizantes; estímulo de projetos de florestamento e reflorestamento; construção de estradas vicinais; eletrificação rural, implantação do sistema de beneficiamento, armazenagem e transporte de produtos agrícolas; estímulo à produção e comercialização regional de calcário e de outros insumos agrícolas; regulamentação da propriedade fundiária46.

Todos esses incentivos do POLOCENTRO serviram para integrar o Centro Oeste, especificamente o Estado de Mato Grosso, à economia nacional, além de combater a velha visão que os sulistas gaúchos tinham a respeito do cerrado. Vejamos como Vagner (1995, p. 67) relata a imagem do gaúcho em

45 Diário de Cuiabá, 08 de abril de 1975. 46 Cf. PÓVOAS, 1977, p. 86.

relação ao cerrado e o tom de heroicidade, atribuído ao mesmo, ao lidar com a terra:

O gaúcho não acreditava na fertilidade das terras do cerrado [...] os arbustos pequenos e retorcidos espalhados pelo cerrado de Mato Grosso do Sul e nos estados vizinhos eram vistos pelos agricultores do Sul como sinal de terra desnutrida. [...] Com dinheiro, tecnologia e muito trabalho, os gaúchos estão conseguindo domar o cerrado, uma extensa planície de 207 milhões de hectares, 10 vezes maior que a área agricultável do território gaúcho.

Veja-se que todas as condições favoreceram o fluxo migratório para o Estado de Mato Grosso, ampliando o seu povoamento a partir da fundação de novas cidades, promovendo o trabalho com a terra, mas com características de uma viagem patrocinada pelos programas de governo. Dadas essas condições, os migrantes gaúchos, posicionados como detentores de grandes propriedades, reproduzem, por meio de seus dizeres e fazeres, a imagem de “pioneiros e civilizadores” largamente difundida no Sul do Brasil (SEYFERTH, 1990, p. 87), a ponto de ver a si mesmo como estrangeiro e tratar o autóctone (mato-grossense) como brasileiro.

Assim, podemos retomar o que Sayad (1998) considera acerca da imigração. De acordo com ele, a imigração é um espaço qualificado de muitos modos: social, econômico, político, cultural etc. Pensando com Scherer (2007), dizemos que o território é também um lugar de negociação de sentidos.

Por isso, consideramos que esse deslocamento de território, enquanto condição de contato entre indivíduos de comportamentos distintos e de sociedades diferentes, impõe questionamentos acerca de si mesmo e do outro e acerca do outro sobre si, dos quais passamos a nos ocupar nos capítulos seguintes. Neles, apresentamos os resultados de análise do corpus de nossa pesquisa, os quais possibilitaram considerações específicas sobre o processo migratório em Mato Grosso, tomando como participantes do nosso trabalho os migrantes gaúchos e os mato-grossenses, residentes em Cuiabá e na Baixada

3. TERRITÓRIOS DE IDENTIDADE: UM LUGAR PARA SE INSCREVER

Como já discorremos, entendemos a identidade como resultado de representações imaginárias que se faz de si e do outro, a partir da qual se tem uma ficção ou ilusão de unidade e totalidade sobre si mesmo. Partindo desse princípio, passamos a discutir como a identidade tanto dos mato-grossenses quanto dos migrantes gaúchos entrevistados vão sendo construídas, relacionando-as com a territorialidade.

Desenvolvido no capítulo precedente, em que também circunstanciamos a migração gaúcha para o Estado de Mato Grosso, a temática do território é entendida como valorização simbólico-cultural e/ou funcional/econômica (HAESBAERT, 2006) do espaço vivido, bem como lugar de negociação de sentidos.

Com o pressuposto acima, isto é, de que, enquanto espaço de

deslocamentos, o território produz diversos sentidos e é também significado,

problematizamos o conceito de território, procurando compreendê-lo para além de mera extensão de terra, área sujeita a uma jurisdição qualquer, ou, ainda, demarcação de fronteiras político-geográficas.

Em outras palavras, preferimos caminhar nas margens e na disseminação de sentidos que derivam da territorialidade, ou seja, enquanto efeitos de sentido que, como veremos a partir das sequências que recortamos para discussão, irrompem no fio discursivo e que, de alguma forma, estão relacionados à constituição identitária de ambos os grupos por nós pesquisados.