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CAPÍTULO III TERRITÓRIO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL ENTRE OS

3.2. Mobilidade e redes de relações sociais na região

3.2.2. A rede de centros rituais na ribeira do Rio Moxotó

A rede que contribui no levantamento da aldeia Kapinawá não se constitui apenas pelo parentesco; também foi fundamental para tal a relação que existia entre os diversos especialistas rituais que ultrapassava os limites dos arredores da Serra Negra e da Serra do Macaco e se estendia ao longo da ribeira do Rio Moxotó.

Barbosa (2003) menciona como foi importante a participação de João Tomás, pajé Pankararu, na organização das famílias da Baixa da Alexandra, e arredores da Serra Negra e do Periquito no processo de organização que desencadeou a identidade Kambiwá e na criação do Posto Indígena na Alexandra em 1970. Arruti (1999) menciona João Tomás e uma série de outras lideranças indígenas, que assim como ele, percorreram o “nordeste indígena” e os centros de poder para ajudar outros grupos em seus processos de organização e reivindicação da identidade étnica, para “buscar os direitos”.

Seu Elias, Xukuru, é outro especialista ritual, que parece ter desempenhado importante papel nestas redes de emergência que se constituíram, com um importante centro ritual em Ibimirim. Sebastiana Bezerra da Silva, a Sesser, 65 anos, uma de minhas interlocutoras, foi umas das primeiras pessoas a ser doutrinada47 por ele; Sesser menciona que Seu Elias nasceu em Xukuru, que era da Vila de Cimbres, e que vai morar no município de Ibimirim, onde trabalha para o DNOCS48, e cria o terreiro dele entre os distritos de Poço da Cruz e Boa Vista. “Lá ele recebia espírito né, já trouxe de Vila de Cimbres; um avô dele era de Serra Negra [...] fez uma casa cá em cima no alto, entre Poço da Cruz e Boa Vista, era onde ele tinha um terreiro”.

É interessante perceber, que diferente de outras situações da região, quando o toré era “ensinado” por ocasião da relação com o SPI/FUNAI no contexto de reivindicação do reconhecimento étnico, no caso de Sesser e sua família – do Quiri D’álho e Santa Rosa, hoje aldeias Kapinawá –, isso acontece mais de uma década antes do levantamento da aldeia

47 A expressão ser doutrinada expressa o processo em que um especialista ritual faz uma série de trabalhos rituais e ensina quem é médium que, desta forma, passa à saber lidar com suas correntes (ou seja com sua mediunidade).

Kapinawá e em contexto bem diverso, quando estes vão em busca de “cura” espiritual. Quando perguntei para Sesser quem fizera o primeiro contato com Seu Elias ela me explica:

Começou com Antônio né? Ele começou com um problema caindo como se fosse epilepsia, ai ele dava aquelas crises né, ninguém sabia o que era médico naquela época. Ai o médico era o padre que morava em Buíque, o Padre José, ai qualquer doença ele passava um remédio só a pessoa ficava boa, parecia um milagre. Ai foram para o Padre, ai o Padre falou que era uma corrente espírita, e quem sabia o que era corrente espírita? Ai o povo do Puiu [vila perto do Quiri D’alho] falou “ali tem um homem sabido que cura as pessoas”, ai foi levando Antônio. Nesse tempo não tinha carro, foi no cavalo. Ai lá ele tratou dele e ele ficou bom até hoje, só que ai ele ficou com obrigação de dançar no terreiro e receber espírito, incorporar. Ai depois dele foi uma prima nossa Damiana, hoje ela é casada e mora em Camaçari na Bahia, também a mesma coisa, o mesmo jeito. Ai depois foi Lurdinha, que ainda mora aqui, do mesmo jeito, ai foi aumentando né? Ai quarto foi eu, ai era para morrer mesmo, era caindo, era morrendo, não tinha médico, não tinha jeito, eu dei mais trabalho que todo mundo, que eu tinha mediunidade demais, acho que era por causa dos meus avós que era tudo índio, ai a contaminação era grande... Ai os outros que já eram quase desenvolvidos não conseguiam dominar a corrente que eu tinha que era grande né? Eu tinha 19 anos, me dava aquelas crises, ai eu tive que ir para lá [para o terreiro de seu Elias], passei dois anos lá sem sair. Eu não via o mundo era manifestada direto, ai depois quando eu fiquei dominando ai eu vim embora pra cá (Sesser, Aldeia Quiri D’alho, julho de 2013).

Sesser menciona que a ligação com Seu Elias era muito forte; isso era possibilitado pela mediunidade, que mesmo sem conhecer o Quiri D’Alho e a Santa Rosa estabelecia contato:

Era assim, eu sou um corpo médium, eu tô aqui agora, mas eu quero trabalhar com um espírito de Xukuru, eu concentro nele e ele vem. Ai a gente vai encontrando... ai assim ele chamava essa aldeia, e ele dizia que era daqui, ai o que aconteceu foi que Antônio caiu né? Ai Antônio foi pra lá, e depois ele ficou vindo pra cá. Ai descobriu tudo, ai ele andou aqui e na Santa Rosa (Sesser, Aldeia Quiri D’alho, julho de 2013).

É desta forma que o toré é introduzido nos arredores da Serra do Macaco e se torna “obrigação” na Santa Rosa e no Quiri D’alho. Sesser menciona que os torés naquela região começavam sete horas da noite e terminavam às seis horas da manhã do dia seguinte e que os dias de práticas eram as quartas, sextas e sábados. Ela descreve que o ritual era iniciado com uma sessão de mesa49, dentro da casa, e que na Santa Rosa era da mesma forma, sendo

49 A sessão de mesa, chamada de mesa branca por Sesser, é a parte inicial do ritual ensinado por Seu Elias, no qual os médiuns circundam a referida mesa que está composta por elementos como água e vela destinada aos

puxados respectivamente por Antônio e Cazuza. Também menciona que na Santa Rosa, Cazuza doutrinou “uma Verinha, que ainda tá viva, ainda hoje tem mesa e terreiro lá, mas ela não trabalha mais pois já tá velhinha”.

Esse tempo descrito por Sesser, dos primeiros contatos de sua família com Seu Elias e do período de dois anos que passou em seu centro ritual sendo doutrinada, corresponde justamente ao fim da década de sessenta, quando do processo de organização dos Kambiwá. Sesser relata a participação de Seu Elias, dela e de Antônio neste contexto: “no descobrimento de Kambiwá eu ia mais seu Antônio e Elias para lá, Seu Elias ainda doutrinou muita gente lá em Kambiwá, aí depois a FUNAI tomou de conta”.

Seu Dôca e Zé Índio também eram frequentadores do centro de Seu Elias. Eles tanto participam das mobilizações na Baixa da Alexandra, quanto, como mencionado no capítulo anterior, foram fundamentais no processo de organização da Mina Grande no fim da década de 1970, segundo Sesser mandados pelo próprio Seu Elias.

Sampaio (1995) também já mencionara essa ampla rede ritual:

Na verdade, Zé Índio e Chico Machado, bem como dois outros "donos de trabalho" em comunidades hoje incorporadas aos Kapinawá - Antônio, do Quiri d'Alho, e Cazuza, de Santa Rosa, este último hoje também com prestigioso terreiro em Ibimirim, compunham uma relativamente ampla e flexível rede de centros rituais mais ou menos interligados e que se estende pelas áreas urbana e rural de Ibimirim, Quase todos filiados à "Federação de Cultos Afro-Brasileiros e Aborígenes de Pernambuco", dentre os quais o mais prestigioso ainda hoje parece ser o comandado por um certo Elias que é, como Zé Índio, de origem xukuru (SAMPAIO, 1995, p. 6-7).

Outra informação oferecida por Sesser é a referência contemporânea que ela faz a Manari. Importa considerar que meus interlocutores que trataram dos seus parentes vindos de Manari, nenhum manteve contato com o local, mas Sesser, que tem uma referência de parentesco mais distante com o local, apenas se referindo às ancestrais que foram “pegas a dente de cachorro”50 na Serra do Manari, volta a este contexto justamente por intermédio do terreiro de Seu Elias:

Conheço a Serra do Manari, todo ano eu vou lá, o toré de lá é feito com Zabumba, a coisa mais linda do mundo, quase todo ano eu vou pra lá, a festa encantos. Ela é iniciada por cantos e em seguida os médiuns começam a incorporar/manifestar, é dado o nome

de trabalho a este movimento, estes trabalhos que podem ser de cura ou ainda de culto a estes encantos.

50 Essa expressão “pega a dente de cachorro” é muito comum de ser ouvida por todo o sertão, frequentemente repetida nas pesquisas que já realizei e reflete a ideia do índio selvagem, sem contato com a “civilização”, que foi caçado no mato. Problematizo-a no capítulo seguinte.

que tem no mês de agosto, lá tem índio, mas não é registrado. Diz eles lá, aqueles que foram pegados lá, então a gente é família de lá também.

[Pergunta: e como tu conheceu?]

Eu morava na Boa Vista [distrito de Ibimirim], e eu nunca deixei de ajudar seu Elias de trabalhar no espiritismo e no terreiro, ele me tinha como uma mestra. Ai tinha uma velhinha que também trabalhava lá no seu Elias, ai ela falou “eita Sesser tem um toré lá no Manari”, eu já tinha uns 34 anos, ai nós fomos, era Quitéria o nome dela. Chegou lá a coisa mais linda do mundo, fiz amizade e fiquei indo. Eles botam a zabumba na frente e o povo vai atrás, o pifi e as caixas, é na época de agosto, para festejar o coração de Jesus. Eles fazem uma visita em procissão até um pé de umbuzeiro, sai da casa de um senhor que tem lá, ai vai no cruzeiro no pé do umbuzeiro, ai vai lá, fica tocando e todo mundo dançando. Lá é lugar de caboclo mesmo (Sesser, 65 anos, Aldeia Quiri D’alho, julho de 2013).

3.2.3. Aldeamento de Macaco: a mobilidade ao longo das ribeiras dos rios Moxotó e