• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III TERRITÓRIO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL ENTRE OS

3.4. A organização local: famílias e grupos domésticos

3.4.4. Aliança entre grupos domésticos distintos, comunidades políticas

Um terceiro nível de organização doméstica se constitui ao passo que famílias extensas de uma mesma localidade estabelecem laços entre si, sendo estes laços de amizade ou alianças matrimoniais. É importante lembrar que quando Manoel Amâncio se fixa em Malhador também outras famílias o farão, como os Macário, ou ainda a exemplo de Mema, que era dos Carlos, do Caldeirão. Não demorou para que tais relações de amizade se transformassem em relações de parentesco através das alianças matrimoniais. Isso é possibilitado pela própria tendência dos grupos domésticos, que como destacam Mura e Barbosa da Silva (2011):

Importa constatar também que, quando ele é constituído por um agregado de unidades habitacionais, na maioria dos casos, o grupo doméstico é organizado a partir do que Evans-Pritchard (1982) denominava de “família indivisa”, formada por três gerações. É geralmente esta organização que permite, com maior eficiência, a reprodução do grupo doméstico, que se torna o eixo não apenas na determinação das atividades técnicas e econômicas praticadas pelos seus integrantes, mas também no estabelecimento de alianças políticas, principalmente através de relações de parentesco, que podem ser voltadas à formação de comunidades locais mais amplas (p. 100).

É neste nível da organização doméstica que se estabelecem as relações que não necessariamente seguem os critérios de parentesco, como as de compadrio e vizinhança – organização que conforma a hoje denominada “aldeia”. Digo que essas alianças estabelecidas entre algumas famílias extensas se constituem ainda como organizações domésticas, pois estes grupos menores estabelecem entre si ainda algumas atividades de cooperação que os faz se caracterizarem como tal, mas já começam a ganhar o corpo de uma comunidade política (WEBER, 1999). Para trabalhar esta unidade irei utilizar o termo comunidade política local, ou aldeias, quando for me referir a estas localidades após o processo de organização étnica – o que farei adiante, na sessão seguinte desse capítulo.

Igualmente relevante dizer é que é a partir do grupo doméstico que vão se construindo certas tradições de conhecimento que possibilitam a formulação de moralidades, valores e identidades específicas (cf. MURA, PALITOT e MARQUES, 2010; MURA e BARBOSA DA SILVA, 2011); é a unidade que possibilita a construção das cosmologias que irão estar na base da construção dos sentidos que proporcionam as condições da construção de sentido das

famílias e das comunidades políticas locais como grupo étnico Kapinawá. Dedico o próximo capítulo aos elementos constitutivos da referida tradição de conhecimento.

As alianças que se estabelecem entre famílias distintas possibilitam duas formas de organização: (1) a que descrevi agora entre grupos domésticos que pertencem à mesma localidade – que conformam as aldeias; (2) e outro mais amplo, que extrapola os limites das aldeias e conforma uma rede de relações entre as comunidades políticas locais que são vizinhas.

Esta rede entre as comunidades políticas locais se constitui a partir do estabelecimento de alianças matrimonias entre famílias de localidades diferentes. O exemplo mencionado anteriormente de Da Firma, dos Amâncio, que se casou com Firmino Carlos, do Caldeirão, ilustra bem isso. Apesar de ter saído do Malhador para morar no Caldeirão, e por isso ser considerada dos Carlos, ela não deixa de fazer parte também dos Amâncio, como fica claro na fala de Audálio: “Tem um bocado de Amâncio espalhado por ai, no Caldeirão mesmo tem um bocado de Da Firma, que era irmã de minha mãe, tem muitos filhos e netos por lá”. Também é o caso, só que inverso, de Mêma que é dos Carlos, no Caldeirão, e vai morar no Malhador. Esse seria o terceiro sentido atribuído à família localmente, essa organização familiar que ultrapassa os limites das aldeias, baseada muito mais nas linhagens e nas alianças matrimonias, do que na residência, possibilita a criação de amplas redes, baseadas no pertencimento familiar. Como já havia desenvolvido em minha monografia com base nas ideias de Augé (1975):

Parentes são todos aqueles que têm a mesma origem, isso é o essencial na medida em que determina e exprime um certo tipo de comportamento. Aqueles que de perto ou de longe afirmam compartilhar a mesma filiação desenvolvem formas de solidariedade, entre ajuda e cooperação ritual [...] Essa filiação não é simplesmente um princípio de classificação dos indivíduos (distinção entre parentes e não parentes), mas tem como efeito concreto da aplicação desse princípio a constituição de grupos sociais organizados, cujos membros pretendem ter todos um mesmo antecedente (ANDRADE, 2010, p.50).

Essas redes formam uma espécie de círculos de relações mais próximas que expressam as alianças formadas pelo parentesco e que acabam se constituindo também como alianças políticas. Os círculos refletem, sobretudo, a circulação das pessoas dentro deste território mais amplo hoje denominado de Kapinawá, para realizar diversas atividades, como os locais onde as parteiras “pegavam menino” ou os lugares aonde se ia para dançar o samba de coco e participar das novenas – isso ficará mais claro no capítulo seguinte. Estes círculos não têm

uma fronteira bem definida como a aldeia, e também não são exclusivos; por exemplo, comunidades geograficamente centrais como Ponta da Vargem e Mina Grande, funcionam como uma espécie de nó de articulação entre estes cinco círculos que traço no mapa a seguir, estabelecendo relações em mais de um deles, como pode ser percebido pela intersecção dos círculos. A seguir represento espacialmente estas redes.

Mapa 11 – Redes de relações entre as aldeias