• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III TERRITÓRIO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL ENTRE OS

3.2. Mobilidade e redes de relações sociais na região

3.2.3. Aldeamento de Macaco: a mobilidade ao longo das ribeiras dos rios

Como venho argumentando ao longo do texto, essa mobilidade como forma de ocupação de um território mais amplo possivelmente é resultado de desdobramentos de um padrão antigo de circulação. A região que se situa entre as ribeiras dos rios Ipanema e Moxotó sempre contou com uma forte presença de grupos indígenas; os documentos que tratam deles nos ajudam a perceber o quão ampla poderiam ser suas regiões de abrangência. É sobre este aspecto que irei me deter agora.

Os Kapinawá habitam no mesmo local do antigo aldeamento de Macaco, onde morava um grupo de índios nominados nos documentos como Paratió (ou Prakió) (SAMPAIO, 1995). Voltemo-nos para essa história, para compreender os “processos de territorialização” (OLIVEIRA, 1999) que permitiram a conformação dos acontecimentos recentes.

A referência mais antiga feita aos Paratió que encontrei no desenvolvimento de minha pesquisa foi tecida por Silva (2008, p.41) que localizou “a Missão do Ararobá entre os índios Paratió e Xukuru, em meados do século XVII”. Sampaio (1995, 2011) menciona referências dos Paratió e a aldeia do Macaco no século seguinte. Dois desses registros estão disponíveis nos “Annaes” da Biblioteca Nacional51, que foi publicado na primeira década do século passado. O autor ainda afirmou que “Hohenthal Junior, em trabalho publicado em 195452, já menciona haver ‘documento da Biblioteca Nacional’, do século XVIII, que refere a aldeia de Macacos ou do Macaco” (SAMPAIO, 2011, p.119).

Uma das referências citada por Sampaio diz que:

51 No original: “ANÔNIMO. 1908 [1749]. "Informação Geral da Capitania de Pernambuco". Annaes da

Biblioteca Nacional, XXVIII. Rio de Janeiro: 1-534.

52 Hohenthal Junior (1954, p.100): “HOHENTHAL JUNIOR, William D. 1954. "Notes on the Shucuru Indians of Serra do Ararobá, Pernambuco, Brazil", Revista do Museu Paulista, N.S. VIII. São Paulo: 93-166.”

Já na "informação geral da Capitania de Pernambuco", escrita em 1749 por um autor desconhecido, a seguinte referência à existência então, na Freguesia do Ararobá, de uma: "Aldeia de Macaco, não tem missionário, e o que teve era sacerdote do hábito de Sam Pedro, tem uma nação de Tapuios Paraquióz, e 182 pessoas" ("Informação...", 1749: 422)” (SAMPAIO, 2011, p.119).

A outra referência tratou, nas palavras do mesmo Sampaio, de “um outro cronista da época53, aparentemente baseado, ao menos em parte, no anterior, situando Macacos na ‘Ribeira Panema’” (SAMPAIO, 2011, p.119). Ou seja, o atual rio Ipanema, que se situa a alguns quilômetros a leste da localidade de Macaco.

Existe ainda outra referência citada por Sampaio (1995): o Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendaju (1944). Essa fonte também foi utilizada por Hohental Jr. (1960)54, em seu artigo "As tribos índígenas do Médio e Baixo São Francisco". Mas, ao invés de utilizar o etnônino Paratió como Nimuendajú, o antropólogo norte-americano Hohental Jr. se referiu aos etnônimos assemelhados de Paratió – Prarto e Pratto: “tem a tribo ‘Pratto’, juntamente com uma horda de Xukurú, mais para o Norte, em Pernambuco, entre as cabeceiras dos rios Ipanema e Capibaribe. Prarto e Pratto são provavelmente apenas versões diferentes do mesmo nome’ (p.49). Hohental Jr.(1960), ainda tratando dos “Pratto” mencionou parte deles localizados “na embocadura do Rio São Francisco no ano de 1746”. Ambas as referências aparecem no mapa de Curt Nimuendajú (1944) – fiz o recorte da área mencionada, que pode ser visto no mapa a seguir.

53 Couto (1757, p.170): “COUTO, Domingos L. 1904 [1757]. Desaggravos do Brasil e Glórias de Pernambuco.

Annaes da Biblioteca Nacional, 24-25. Rio de Janeiro: 1-566.

54Entre os anos de 1951 e1952, o pesquisador americano Hohental Jr. fez um levantamento etnográfico em estados cortados pelo Rio São Francisco, em seu médio e baixo curso – Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. Original do Departamento de Antropologia de Berkeley, Universidade da Califórnia,“a maior parte das pesquisas de campo foi feita no Sertão pernambucano, onde ainda existem certas tribos indígenas sobreviventes, das quais algumas guardam um número surpreendente de tradições aborígenes. Algumas dessas tribos são administradas pelos postos indígenas do Serviço de Proteção aos Índios” (HOHENTAL JR. 1960, p.56). Como resultado destas pesquisas, Hohental produziu artigos para a Revista do Museu Paulista e relatórios de viagens para o Serviço de Proteção aos Índios – SPI.

Mapa 06 - Recorte Pernambuco do Mapa Etno-Histórico do Brasil e regiões adjacentes. Adaptado do mapa de Curt Nimuendajú (1944)

Hohental Jr.(1960) referiu-se ainda ao etnônimo “Prakió”, segundo o antropólogo “mencionados brevemente por Carlos Estevão, que declara que descendentes deste grupo aborígene moravam em Colégio até 1937” (HOHENTAL, 1960, p.49)55. Provavelmente, tratava-se dos mesmos Prakió da embocadura do São Francisco.

Essas variações que tomam os etnônimos muitas vezes são corruptelas de um mesmo nome, ou ainda, curiosamente, erros dos pesquisadores, a exemplo da menção que Hohental Jr. fez a Nimuendajú como tendo mencionado os “Prarto (Pratto)” 56. Ora, quando consultamos o Mapa Etno-Histórico do Nimuendajú, encontramos nas localidades citadas por Hohental Jr. os nomes de Paratió e Prakió.

Hohental Jr.(1960) fez ainda mais uma menção, dessa vez aos Paratió, descrevendo os agrupamentos indígenas do São Francisco em dois tipos classificatórios tomando como base o fato de serem ou não “fluviais”:

Nem são tribos fluviais os Xukurú, os Paratio, os Baixota, os Huamué, os Pacará, os Kambioá ou Wakoná, embora esta última morasse antigamente ao

55Colégio – atual município de Porto Real do Colégio/AL, onde se localiza o território dos Kariri-Xokó

56Silva (2007) também menciona um erro gráfico cometido por Nimuendajú, ao falar dos Xukuru: “Um outro detalhe é que o pesquisador, diversamente também do ano da sua visita, nomeou de forma diferente, como “Fulnió” e “Makuru”, os índios de Águas Belas e de Cimbres. Qual o porquê desse lapso em relação à grafia usada no seu relato de 1934?” (p.52)

longo do Rio São Francisco, poucas léguas a oeste de Penedo. Todas essas tribos visitadas pelo autor residem ou no sertão, ou em serras como a Serra Negra (a leste de Floresta), ou nas regiões elevadas e de topografia irregular conhecidas como brejos (HOHENTAL JR., 1960, p.57)

Sampaio (2011) mencionou alguns trechos do artigo de Hohenthal Jr. (1954) sobre a relação entre os índios de Cimbres (Chimbres?), ou do Urubá (Xukuru) e os de Macaco. O autor relatou a presença dos Paratiós em convivência com os Xukuru, no que chamou de área de influência da Serra do Urubá (hoje chamada de Ororubá), baseando-se para tanto na tradição oral da região, registradas tanto nas interlocuções de Hohenthal Jr. como nos escritos de Barbalho (1977)57.

Por fim, Mendonça (2003) e Albuquerque (2005) mencionaram a pesquisa desenvolvida por Rosa (1998)58 no acervo do Arquivo Público Estadual João Emerenciano (APEJE) que trouxe outra referência ao grupo na ribeira do Rio Ipanema:

Uma representação da Câmara do Penedo, de 02.08.1746, refere-se a rebeldia, mesmo dos índios aldeados, e sua ‘barbaridade’, que tem levado ao despovoamento e destruição de fazendas, como ocorre na ribeira do Ipanema, sob a ação dos Carnijós, Xocós e Paraquiós (ROSA, 1998, citado por

MENDONÇA, 2003, p. 39)

Outro dado mencionado por Sampaio (1995, 2011) que se faz necessário levar em consideração, se tratou da menção, da “aldeia do Macaco estar situada na “ribeira Panema” – atualmente Rio Ipanema, que corre ao leste da localidade referida como Macaco. A menção à ribeira do Panema para Sampaio “tratar-se de simples imprecisão do cronista, que seguramente não visitou as aldeias que lista, delas apenas tendo tido notícia” (SAMPAIO, 1995, p. 3). Assim, as diversas referências aos Paratió junto aos Xukuru na cabeceira do Rio Ipanema, em sua ribeira com os Carnijós (aldeados em Panema, atuais Fulni-ô, município de Águas Belas – PE), e aquela menção feita à parte deste grupo na embocadura do Rio São Francisco nos possibilita perceber a mobilidade do grupo pelo curso do Rio Ipanema.

57 Barbalho (1977: 46, 49 etc.): “BARBALHO, Nelson. 1977. Caboclos do Urubá, Caminhos e Personalidades da História de Pesqueira. Recife: Centro de Estudos da História Municipal.”

58 ROSA, Hildo Leal. A Serra Negra: refúgio dos últimos “bárbaros” do sertão de Pernambuco. Monografia do bacharelado em História/CFCH/UFPE. Recife, 1998.

O aldeamento do Macaco certamente foi resultado do processo de deslocamentos dos índios dessas áreas nas beiras dos rios. Pressionados pela invasão da economia da colônia se deslocaram para “áreas de refúgio” nos altos das serras e tabuleiros; e para o oeste, longe das terras mais férteis do Agreste. A área onde possivelmente foi o aldeamento de Macaco, onde é a atual Terra Kapinawá, está situada justamente no tabuleiro que divisa as bacias dos rios Ipanema e Moxotó. Mas, possivelmente o aldeamento de Macaco propriamente dito não perdurou para além do século XVIII (cf. SAMPAIO, 1995, p.3-4).

No início do século XIX, em 1802, o autor mencionou outro documento que possibilita remontar a trajetória e a presença indígena na região, o relato do Frei Vital de Frescarolo. Neste documento consta que o religioso que promoveu o aldeamento “de índios de quatro etnias distintas que, àquela época, se encontravam dispersas pelas caatingas da Serra Negra” (ibidem, p.4), reuniu na Gameleira (atual Território Atikum) os Umã e os Xocó, e em Jacaré (atual Território Kambiwá) os Vouvé e os Pipipã. Sampaio (1995) destacou a contiguidade da Serra Negra à Serra do Macaco, aspecto que já analisamos ao longo deste capítulo, e como esse movimento de aldeamento movido por Frescarolo deve ter abarcado uma área mais ampla. É importante perceber que essa contiguidade territorial ao longo do Vale do Moxotó ocorreu de tal forma que os dois principais riachos que banham o atual território indígena Kapinawá, o Riacho do Macaco e o Riacho do Catimbau, encontram-se no

Mapa 07 – destaque para o terreno da região

Percebemos o que é apontado no texto em relação aos aldeamentos terem sido estabelecidos nas Serras ou em suas proximidades, sublinhadas a Serra do Ororubá, do Macaco, Comunati e Negra, hoje respectivamente território dos povos

seu curso com o Riacho do Pioré, que por sua vez deságua no Rio Moxotó justamente na altura da Serra Negra.

Outros dois acontecimentos determinantes, ainda naquele século, são a extinção da Diretoria dos Índios e a Lei de Terras. Como afirmou Oliveira,

[...] a política assimilacionista vai recrudescer, apoiada em mudanças demográficas e econômicas. Com a Lei de Terras de 1850 inicia-se por todo o Império um movimento de regularização das propriedades rurais. As antigas vilas, progressivamente, expandem o seu núcleo urbano e famílias vindas das grandes propriedades do litoral ou das fazendas de gado buscam estabelecer-se nas cercanias como produtoras agrícolas. Os governos provinciais vão, sucessivamente, declarando extintos os antigos aldeamentos indígenas e incorporando os seus terrenos a comarcas e municípios em formação (OLIVEIRA, 1999, p.23).

Como mencionado no trecho acima citado, a Lei de Terras estimulou a extinção dos aldeamentos. Em 1872 foi extinta a Diretoria dos Índios de Pernambuco. A continuidade do domínio sobre tais terrenos era colocada em questão pelo Estado Imperial. Sampaio (1995) mencionou Carneiro da Cunha (1992)59 citando “um documento do governo de Pernambuco, datado de 1875 [...], que contém determinação para que os índios das aldeias recém extintas

59CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política Indigenista no Século XIX. In: CARNEIRO DA CUNHA. (Org).

História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1992, p. 133-154.

Mapa 08 - Na figura os aldeamentos do séc. XVIII e XIX citados no texto e hidrografia Kapinawá em destaque

na província fossem reunidos em apenas duas: Nossa Senhora da Assunção, no São Francisco, e Cimbres” (p.4)

Com a questão sobre o destino das terras dos antigos aldeamentos, algumas formas foram sendo desenhadas, a mais frequente ocorreu com a distribuição destas terras entre os poderosos locais (OLIVEIRA, 1999). Caso emblemático foi o dos Pankararu que teve o território do Brejo dos Padres dividido em linhas para os donos de terra locais (ARRUTI, 1999). Outra forma se deu através dos termos doação das terras dos antigos aldeamentos do Império para as famílias “descendentes dos índios”, em forma de glebas, de léguas em quadra, em virtude da participação destes na Guerra do Paraguai, que foi o caso do Terreno de Macaco, como tratei no capítulo anterior.