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CAPÍTULO III TERRITÓRIO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL ENTRE OS

3.1. Narrativas, personagens, cenários: o contexto da região

Nas narrativas locais há dois principais personagens que vêm de fora e que fazem atribuir indianidade ao grupo: Manoel Amâncio da Silva (o “Pai Mané”); e o Cabloco Manari, que dão origem a duas famílias, respectivamente, os Amâncio e os Frazão. Ambos são originários de Serra do Manari, nas proximidades de Moxotó de Gameleira, atual Moxotó, distrito do município de Ibimirim. A Serra do Manari fica localizada entre a Serra Negra e Serra do Periquito (atual território Kambiwá) e a Serra do Macaco (ver mapa na página seguinte).

A saída de Manoel Amâncio da Serra do Manari acontece ao mesmo tempo que a dos seus outros dois irmãos: João Amâncio, que o acompanhou para Buíque, e Francisco Amâncio, que foi para Serra do Periquito, onde sua família terá um importante papel no levantamento da aldeia Kambiwá, como veremos em seguida.

Os Frazão, por sua vez, fazem referência muito mais a Luiz Frazão, filho do Caboclo Manari. Tive como interlocutores quatro dos netos de Luiz: Dona Lia, Seu Pipiu, Dona Josefa e Seu Cícero. Dona Lia, 85 anos, da Aldeia Malhador, conta: “Diziam que eram três irmãos: Manari, Ibrazaria e Ibrazaranha. Tudo morava para lá para o Manari. Os nome esquisito, de cabôco...”. Seu Pipiu, 93 anos, da Aldeia Pau Ferro Grosso, também narra que “Luiz Frazão veio das matas [...]; tem irmandade dele aqui não. Ele chegou aqui e casou com essa Delmira que era daqui mesmo, família dos Carlos, de Maria Carlos, da finada Bembem”.

As narrativas dão conta que Manoel Amâncio e Luiz Frazão chegam à região pelo mesmo motivo: foram trabalhar para o coronel Félix de França: “Meus avós vieram trazidos pelos coronéis, pelos fazendeiros, a mando dos coronéis; esse povo não dependia de cidade, onde chegasse trabalhava” (Audálio, neto de Manoel Amâncio, Aldeia Malhador, abril de 2013). O coronel Félix tinha uma fazenda no Brejo São José (ver localização no mapa na página seguinte), a alguns quilômetros a leste da atual Terra Indígena (T.I.) Kapinawá.

regional, que ultrapassa o que hoje é reivindicado e demarcado como Terra Indígena, e trata, por exemplo, da ocupação de uma mesma família em duas T.I.s. “Dinâmica territorial”, por sua vez, é um termo utilizado para tratar do movimento de circulação das famílias em um raio menor, neste caso explicitando como de uma geração para outra, e a partir das alianças matrimoniais, o território vai ganhando a dimensão do que hoje é considerado território Kapinawá. Por fim, cabe relembrar que estas duas ideias, por sua vez, diferem da de “processo de territorialização” trabalhada ao longo dos capítulos 1 e 2; ver p. 42 e 43.

Félix de França foi um coronel conhecido e poderoso na região, chegando a prefeito de Buíque no começo da década de 1950. Criador de gado, tinha vários empregados e jagunços conhecidos pelos constantes atos de violência.

Uma história que compõe esse cenário ainda hoje é lembrada por alguns de meus interlocutores. É o relato de “um episódio de castração cometido pelo famoso cangaceiro Virgínio Fortunato, no município de Buíque, Pernambuco”, que foi descrito por Mello (2003, p.7). Ele ocorreu na Vila do Catimbau, povoado até hoje habitado por muitos Kapinawá, que fica no entreposto entre o território indígena e a sede do município de Buíque:

O dia 19 de maio de 1936, uma terça-feira, poderia ter sido igual a todos os outros no arruado do Morro Redondo, distrito de Catimbau, do município de Buíque, Pernambuco, com a população – toda ela conhecida entre si, quando não aparentada ou unida pelo compadrio – entregue às fainas monótonas da vaqueirice e do trato do algodão e da mamona. [...] Saindo à ruazinha de lama, Virgínio divulga entre os curiosos um rapaz alto, magro, novo de 22 anos, caboclo quase índio, a quem se dirige com energia: Venha cá, cabra! Se correr, morre! [...] O jovem, que jamais vira um cangaceiro em sua frente, no máximo os jagunços cordatos do coronel Félix de França e do capitão Antônio Leite, aproxima-se sem receio, sendo-lhe indagado se era da terra, ao que responde afirmativamente (MELLO, 2003, p.8, 9, e 10).

A narração deste episódio nos evidencia alguns elementos que caracterizam aquela região: o poder do coronel Félix de França, expresso pela referência a seus jagunços; o trabalho como vaqueiro e na produção da mamona e do algodão; a forma de organização do arruado “com a população – toda ela conhecida entre si, quando não aparentada ou unida pelo compadrio”; e, por fim, a referência, mesmo que genérica, a um “caboclo quase índio”.

Meus interlocutores nas aldeias Malhador, Caldeirão, Colorau e Pau Ferro Grosso, em sua grande maioria, se referiram a trabalhos desempenhados para o Coronel Felix de França, por diversos membros da família e às violências sofridas. Não só Manoel Amâncio e Luiz Frazão, mas também seus filhos, netos, e as famílias com quem foram estabelecendo os laços de parentesco. Trabalharam na condição de moradores38 de suas propriedades, ou em

38 Morador é a forma que localmente faz referências aos trabalhadores que, como forma de sobrevivência, além de trabalhar para fazendeiros, também estabeleciam moradia em suas propriedades, que nesse caso poderia ser de vaqueiros, e em alguns casos específicos também o que configurava a figura do “jagunço”. Garcia Jr (1989), a partir de categorias locais, especificamente de camponeses da Paraíba, aprofunda a reflexão dos significados desta condição de trabalho, qualificada na noção local de sujeito (ver GARCIA JR, 1989, p.14 e 15, nota de rodapé 9), e a trabalha em relação/oposição com a ideia de “liberto”: “o uso mais frequente, mas não o único, associa sujeito aos trabalhadores residentes nas grandes plantações, e libertos, aos demais” (GARCIA JR , 1989, p.14). O autor sublinha a condição dos moradores como de grande sujeição: “Terra de engenho, ou simplesmente engenho marca, ao contrário, áreas onde os cultivos são feitos por trabalhadores submetidos pessoalmente ao proprietário das terras onde residem e trabalham, comumente designados por moradores, palco privilegiado da sujeição” (idem, p.25) E acrescenta: “[...] a tendência para anular os cultivos do roçado e dos

trabalhos sazonais, como lembra Dona Marieta, 67 anos, da aldeia Colorau, “o Raimundo, meu avô, eu sei que ele trabalhava no Brejo. Mas trabalhava, morar eu não sei. Trabalhava pra Feli [Félix de França]. Pois é, trabalhava pra eles lá, mas morava ai, ao lado dos Caldeirão”.

Os netos de Luiz Frazão também mencionam as violências que suas famílias sofreram, narram com detalhes suas lembranças da perseguição de Felix de França e seus jagunços aos seus pais, explicitando os motivos da mudança do Brejo São José para a Ponta da Vargem.

No começo século XX, depois de trabalharem para o Coronel Félix de França, em períodos diferentes, Luiz Frazão e Manoel Amâncio saem do Brejo São José e se estabelecem nas margens do Riacho do Catimbau, alguns quilômetros a oeste, na região chamada de Ponta da Vargem, onde vão construir relações com as famílias vindas da expansão do Terreno de Macaco. A área antes chamada genericamente de Ponta da Vargem é hoje a região que configura os limites norte da terra indígena regularizada, dividida entre as aldeias Ponta da Vargem, Riachinho, Tabuleiro, Cajueiro, Pau Ferro Grosso e Carnaúba. A Ponta da Vargem configurava a possibilidade de trabalhar por conta própria, em uma região que tinha vasta área sem a ocupação de fazendeiros e caatinga fechada, um espírito até hoje mantido, a partir da liberdade como um valor39, como é refletido na fala do neto de Manoel Amâncio:

sítios dos moradores aponta, na verdade, para a dominância absoluta dos interesses dos proprietários de terras

sobre os interesses das famílias de trabalhadores que residem em suas terras” (idem , p.25).

39 Guardadas as particularidades, esse sentimento da “liberdade como um valor” de meus interlocutores me lembra aquela descrita por Garcia Jr (1989), expressa no seguinte trecho: “quando o discurso dos agentes sociais se organiza em torno da oposição entre libertos e sujeitos, a análise sociológica pode estudar os múltiplos referentes dos usos sociais dessas classificações, tanto a nível material, como simbólico, e melhor precisar como

Ficava jogado, aqueles que não aguentava mais trabalhar para os fazendeiro, se destinava a trabalhar por conta própria, onde tinha muito espaço, pouca gente, terra de sobra, e ai ficava vivendo a vida ali. Não tinha essa coisa... não existia esse negócio de terra com dono. Essa terra é do governo! Depois de tudo veio esse movimento para dizer que a terra tem dono por um só, onde tantos precisam viver dali (Audálio, 56 anos, Aldeia Malhador, abril de 2013).