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CAPÍTULO IV REDES SOCIAIS E TRADIÇÃO DE CONHECIMENTO

4.1. O território encantado: coisas de caboclo e os aspectos da vida religiosa no

4.1.4. As intersecções entre as narrativas ancestrais e o contexto atual

Hoje, os sentidos que estas narrativas têm vão ganhando nova roupagem com a inserção de novos atores.

Já em fins da década de 1960 um arqueólogo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Marcos Albuquerque86, começa a fazer escavações nas furnas da Serra do Catimbau. Seu trabalho na região teve grande repercussão, principalmente quando divulgados os tempos das ossadas encontradas, datadas de cerca de seis mil anos. Apesar disso não ter transcorrido necessariamente nos perímetros do que hoje é a área indígena, ocorreu muito perto dali, na Serra do Catimbau, que circunda a vila de mesmo nome, e por onde os Kapinawá têm um trânsito antigo – como dito.

As notícias dos sítios arqueológicos fazem a região ganhar visibilidade, e juntamente aos mistérios87 e à beleza do local, atrai-se o turismo para a região. Isso fica evidente em matérias publicadas já em começo dos anos 1990 pelos jornais de circulação estadual – como pode ser visto nas matérias 4 e 6, que disponibilizo do anexo III deste trabalho. A presença dos Kapinawá e de Meu Rei e a Fazenda Porto Seguro também são citadas pelas referidas matérias, como dimensões do mistério e do “esoterismo” do local.

Outros atores são incorporados neste cenário com a criação do Parque Nacional (Parna) do Catimbau em 2002, fomentando outras dinâmicas. Uma delas é o investimento no turismo local e a consecutiva realização de cursos de guia turístico para os moradores das localidades situadas nos perímetros do Parna e arredores. Neste contexto, jovens de diferentes comunidades políticas locais Kapinawá participam da formação técnica para guia, inclusive com professores de arqueologia da UFPE, tendo acesso a uma série de informações

86 É importante destacar, para não confundir os leitores, que este Marcos Albuquerque não é o antropólogo, de mesmo nome, que desenvolveu pesquisa entre os Kapinawá nos anos 2000.

arqueológicas daquela região88. Somam-se assim, esses conhecimentos técnico-científicos às antigas e vagas informações de que tiveram ciência após os anos de estudo do referido professor de arqueologia. Nestes cursos de guia também serão difundidos uma série de conhecimentos que buscam passar aos jovens as ideias preservacionistas, de proteção não só dos sítios arqueológicos, mas também da “natureza”, afinal estamos falando de uma unidade de conservação integral, na qual não é permitida a ação humana, sendo exceções o turismo ecológico e as pesquisas científicas. Estas informações, evidentemente, serão difundidas por estes jovens em suas respectivas comunidades políticas locais. As mudanças advindas da criação do Parna também serão sentidas por estas comunidades pela criação da sede do IBAMA, que depois viria a se tornar o ICMBio. Com sede no local começam as fiscalizações sobre as atividades das comunidades que vivem no perímetro do Parna, e assim também os conflitos entre estas duas partes. Este é o outro curso que esse discurso preservacionista irá fazer para chegar às comunidades.

Ao contrário do que poderia se supor, a partir do contato das referidas comunidades com as informações dos cursos de formação para o turismo sobre os sítios arqueológicos, como um possível “desencantamento” dos relatos sobre as furnas e os letreiros, me parece que estas narrativas primeiras vão dialogando com as referidas informações arqueológicas e seguindo suas próprias veredas. Há alguns exemplos destes caminhos. Um deles é a valorização destas narrativas nas escolas indígenas, e se expressam nos trabalhos que foram desenvolvidos pelo Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF)89 junto aos professores e professoras indígenas kapinawá na elaboração de material didático destinado às escolas indígenas do território. O trabalho do CCLF junto aos professores kapinawá consistiu em fazer formação em pesquisa, na qual estes se debruçaram sobre aspectos ligados ao seu povo e às histórias contadas pelas pessoas mais velhas. Desse processo foram elaborados dois tipos de material: um livro com histórias contadas pelos mais velhos e em seguida um CD e DVD. O livro foi lançado em 2003, com o título “Meu Povo Conta” (2006), junto aos textos de outros povos indígenas do estado. As histórias selecionadas e redigidas pelos Kapinawá consistiram basicamente em histórias sobre as furnas e os encantos, os títulos são ilustrativos deste aspecto: “A Luz Encantada”, “O Segredo da Água”, “A Armadilha”, “O Fogo”, “A Lenda da Serra”. O outro material foi produzido anos depois, em 2007, e consistiu em um CD – “Meu Povo Canta” (2007) – e do DVD – “Meu Povo Conta” (2007) –, apesar de realizado

88 Pelo que pude constatar os conteúdos versam principalmente sobre o tempo que habitaram aqueles locais; aspectos das vidas dos povos que habitaram aquela região, que são evidenciados pelos tipos de pinturas rupestres.

pela TV Viva/CCLF o roteiro deste material foi construído junto com os professores e lideranças, o DVD especificamente tem partes nas quais pessoas mais velhas de distintas comunidades políticas locais trazem estas narrativas.

Outra vereda tomada pela narrativa é irônica com a ciência e suas supostas certezas. Em ocasião da entrevista com dona Lilia, na Mina Grande, ela faz a afirmação emblemática de que até pesquisadores do exterior já tinham estado na Mina Grande, visto os letreiros, mas que até hoje, nenhum deles conseguiu desvendar os mistérios contidos neles.

Como mencionado e ilustrado no trecho de fala de Sesser, na organização social dos fluxos culturais a presença dos sítios arqueológicos foi um dos elementos identitários selecionados pelas famílias dos arredores da Serra do Macaco no processo de organização e reivindicação de uma identidade especificamente étnica, hoje permanece igualmente sendo afirmada como elemento identitário, dando sentidos próprios e uma nova conformação ao discurso preservacionista que entra em cena com o Parna. Isso ficou evidente quando estive em campo e fui levada para conhecer alguns destes lugares. Para falar deste aspecto trarei uma dessas ocasiões quando Audálio e seu filho Ronaldo, um dos jovens que participou da referida formação de guia, me levaram para conhecer a Serra do Malhador. Passamos uma tarde percorrendo a serra. O Malhador fica no alto de uma serra, do cume da Serra do Malhador nasce um riacho temporário que forma um vale e dá forma a grandes paredões. Por suas encostas então distribuídas algumas furnas e pinturas rupestres.

Começamos nossa caminhada pelo topo da serra, logo no inicio vimos alguns pés da macambira queimados, fato a que Audálio me chamou atenção. Ele explicou que alguns jovens fazem isso por diversão, para ver queimar, ou ainda para facilitar a passagem pela caatinga quando estão acompanhando a criação de caprinos. Ao continuarmos nosso percurso ele explica que não aprova esse tipo de atitude, que botar fogo pode causar queimada, e que sempre conversam sobre isso na comunidade. Do alto da Serra continuamos a caminhar, margeando o vale do alto, neste curso ele e Ronaldo vão me apresentando as plantas, mostrando os lugares, do extremo da serra dá para ver boa parte da Terra Indígena já regularizada. Quando descemos nos deparamos, logo no sopé, com uma grande furna, onde se encontram alguns ossos aflorando do solo em seu interior.

No momento seguinte continuamos pelo curso do riacho que dá vista para encosta que acabávamos de descer e de onde era possível ver mais duas furnas, lá pelo intermédio da serra. Ainda no curso do riacho passamos por um paredão de pedra no qual havia algumas pinturas rupestres, nesse momento Ronaldo me mostra alguns riscos feitos próximos a elas, e também reclama desta atitude.

Figura 30 – Foto da furna no sopé da Serra do Malhador

Figura 31 – Paredão com pinturas rupestres na Serra do Malhador

Quando já estávamos subindo pelo outro lado do vale, avistamos um jovem no cume oposto, do alto ele empurrou uma grande pedra que desceu ribanceira abaixo levando com ela o que encontrava no caminho. Audálio e Ronaldo conversam entre si pensando quem era, e novamente repetem para mim que desaprovam essa atitude, dessa vez porque poderia machucar alguém, ou um animal, e novamente porque causa danos à mata. Ao final da caminhada, ainda no vale, nos sentamos um pouco para descansar, e então conversamos sobre as diversas situações com que nos deparamos no caminho: a macambira queimada; os ossos da furna; os riscos no paredão com as pinturas rupestres; e a pedra empurrada serra abaixo. Na conversa Audálio e Ronaldo explicam que, de forma geral, quando algo deste tipo acontece, eles sabem quem fez e conversam com aquela pessoa, pois afinal de contas, “é tudo parente” no Malhador. Também falam da importância disso ser conversado de forma mais genérica, nas reuniões que juntam toda comunidade, geralmente provocadas pela escola que existe na aldeia; o argumento é que as furnas e as pinturas rupestres são riquezas suas, que devem ser preservadas.

Essa situação evidencia dois aspectos com os quais quero finalizar esta parte do capítulo: as ideias já mencionadas (1) de que criou-se uma espécie de discurso étnico-político de que “o índio defende a natureza”, que se soma às experiências de preservação tradicionais e às pressões sofridas com a implementação do Parna; e (2) de que os valores e os sentidos de pertença são conformados inicialmente no âmbito doméstico e comunitário. Busquei evidenciar isso ao longo do texto, por um lado, nas narrativas sobre a “comida braba”, e ainda sobre a Caboclinha do mato e do Caboclo da furna, sendo que no inicio dos relatos todos os interlocutores apontam que estas histórias foram contadas por seus pais, ou outra pessoa mais

velhas da comunidade política local em que moram. E por outro lado, na situação na Serra do Malhador, quando Audálio, em sua fala, relata como é feito o processo de formação e controle no Malhador.