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Capítulo III. Estudo desenvolvimental de processamento de palavras

1. O Modelo da Reestruturação Lexical

1.1 A reestruturação lexical: um processo gradual

O primeiro pressuposto do LRM diz-nos que, numa fase inicial do desenvolvimento linguístico, as representações lexicais estão arquivadas num formato holístico e que, durante o período pré-escolar e primeiros anos de escolaridade, ocorre um processo de reestruturação de modo a que essas

representações incorporem um formato de arquivo segmental. Esta ideia não é totalmente nova na literatura. Já em 1991, Fowler propôs a hipótese da segmentação. Esta hipótese prevê que as representações lexicais sofrem mudanças no decorrer do desenvolvimento, o que possibilita que o reconhecimento seja feito de forma mais rápida e eficaz. Inicialmente, as palavras estão arquivadas num formato holístico mas, à medida que a criança vai aprendendo novas palavras, este formato de arquivo deixa de ser eficaz pois a criança tem de distinguir muitas palavras fonologicamente similares. Emergiria então um processo gradual de segmentação das representações lexicais, em que o domínio do fonema é o ponto de chegada em termos desenvolvimentais. Investigação posterior tornou consensual a ideia de que, na infância, existem importantes mudanças nas representações e organização lexical (Storkel, 2002, 2004; Walley, 1993).

À semelhança da hipótese da segmentação, o LRM também prevê que, nos primeiros anos de vida da criança, as palavras são arquivadas num formato holístico, i.e., como um todo. No entanto, com o aumento do vocabulário, ocorre uma pressão para que as representações lexicais sejam organizadas num formato segmental. Para o LRM, o uso do fonema enquanto formato de arquivo constitui o ponto de chegada desenvolvimental, e deverá ser atingido nos primeiros anos de escolaridade. O modelo não é preciso quanto ao timing em que estas modificações acontecem. No entanto, no artigo em que o modelo é apresentado (Metsala, & Walley, 1998), as autoras recolhem evidências de que as representações holísticas são dominantes pelo menos até aos 18 meses de idade. Como as crianças conhecem ainda poucas palavras (ca. de 50), e o ritmo de aprendizagem de novas palavras é muito lento, elas podem ser reconhecidas com base em características salientes ou na forma acústica geral da palavra (Jusczyk, 1986; Menyuk, & Menn, 1979). Contudo, entre os 18 meses e os 3 anos, a aprendizagem de novas palavras torna-se mais rápida e ocorre o surto lexical, i.e., um aumento exponencial do vocabulário recetivo e expressivo da criança (Bloom, 1973, Dromi, 1987; Reznick, & Goldfield, 1992). Como referem Dapretto e Bjork (2000, p.635): “Following the onset of expressive vocabulary, the rate of language acquisition is initially rather slow, with children learning only a few words per month. Towards the end of the second year, children tipically

display a sudden spurt in vocabulary growth, roughly after their productive lexicons have reached 50 – 100 words” .

Atualmente, a existência de um surto lexical tem sido posta em causa, pois modelos matemáticos de análise do crescimento do vocabulário infantil revelam que, para a maioria das crianças, o crescimento do vocabulário é gradual e não um fenómeno em que num curto período de tempo são aprendidas muitas palavras novas (para uma revisão, cf. Bloom, 2004). No entanto, quer estejamos perante um processo gradual ou uma explosão de novas palavras, é inegável que nesta faixa etária o vocabulário da criança cresce de forma substancial. Das ca. de 50 palavras aprendidas aos 18 meses, aos 24 meses a criança já domina ca. de 300 palavras (Fenson et al., 1994), ou seja, um crescimento de vocabulário na ordem dos 500%. Entre os 2 e os 6 anos, as crianças aprendem ca. de 14000 palavras (Clark, 1995) e, na idade adulta, é estimado que o léxico já incorpore 60000 palavras (Aitchinson, 1994).

O LRM prevê que, com o aumento vertiginoso do vocabulário no período pré-escolar, o léxico passaria a incorporar muitas palavras fonologicamente similares entre si. Aqui, palavras fonologicamente similares são vizinhos fonológicos, i.e., palavras que diferem num único fonema por operações de adição, subtração ou substituição (Luce, 1986; cf. Capítulo I, p.34). Por exemplo, um estudo de Vicente, Castro, & Walley (2003) analisou os léxicos produtivos de crianças de 3, 4 e 5 anos, e verificou que, para as palavras com 3 a 5 fonemas de extensão, a densidade de vizinhança (i.e., palavras com muitos vizinhos fonológicos) aumenta à medida que as crianças envelhecem. Por exemplo, o número de palavras com 4 vizinhos aumenta 6% nestas faixas etárias, enquanto o número de palavras sem nenhum vizinho (eremitas lexicais) cai 8%. Assim, é visível que na criança em idade pré-escolar ocorrem grandes mudanças na densidade de vizinhança das palavras alojadas no léxico mental, pois cada palavra vai possuindo mais palavras fonologicamente similares à medida que o vocabulário aumenta. No Quadro 14 apresentamos um exemplo da mudança da rede de densidade de vizinhança para a palavra gato à medida que a criança aprende novas palavras.

Quadro 15

Mudanças na densidade de vizinhança da palavra gato em função da idade da criança. Idade da criança (em

anos)

Palavras no léxico Nº total de

vizinhos

2 a 3 Gato 0

3 a 4 gato, pato, rato, galo 3

4 a 5 gato, pato, rato, galo, gago 4

5 a 6 gato, pato, rato, galo, gago, mato, gado 6

6 a 7,8 gato, pato, rato, galo, gago, mato, gado, gajo,

fato, jato

9 7,8 a 9,10 gato, pato, rato, galo, gago, mato, gado, gajo,

fato, jato, ato

10 9,10 a 11,12 gato, pato, rato, galo, gago, mato, gado, gajo,

fato, jato, ato

10 11, 12 a +13 gato, pato, rato, galo, gago, mato, gado, gajo,

fato, jato, ato, goto

11

Nota. Este cálculo foi feito com base nos dados de idade-de-aquisição (AoA) de palavras de Cameirão e Vicente (2010), Gonzaga, Meireles, & Vicente (2007) e Vicente (2003). Embora a palavra gato possua 21 vizinhos fonológicos, apresentamos aqui apenas 11 pois são os únicos para os quais possuímos dados de AoA.

A mudança nas relações de densidade de vizinhança leva a que o formato holístico deixe de ser eficaz para um reconhecimento rápido e exato, pois pode levar a confusões entre palavras fonologicamente similares. As representações lexicais começam então a sofrer um processo de reestruturação de modo a incorporem um formato de arquivo segmental, mais eficaz para analisar com detalhe as palavras a serem processadas (ver também Storkel, 2002). O formato de arquivo a nível do fonema é o ponto de chegada desenvolvimental e deverá ser atingido nos primeiros anos de escolaridade.

O LRM afirma ainda que a reestruturação das representações lexicais não ocorre simultaneamente para todas as palavras do léxico. É um processo gradual, em que umas palavras são reestruturadas primeiro do que as outras. Depende de vários fatores, como o ritmo de aquisição do vocabulário (que vai agir como instigador da reestruturação lexical) e o número de vizinhos fonológicos presentes no léxico. À medida que as palavras vão sendo aprendidas, elas têm de ser comparadas a nível estrutural com as palavras já arquivadas. As palavras residentes em vizinhanças densas (i.e., com um

número elevado de vizinhos fonológicos) são assim as primeiras a serem reestruturadas, pois só através da incorporação de um formato de arquivo segmental, é possível analisá-las com o detalhe necessário para se diferenciarem entre si.

Outra variável com impacto para o LRM é a familiaridade das palavras. A familiaridade pode ser desdobrada em dois componentes: (1) a frequência de ocorrência da palavra na língua, i.e., a frequência objetiva e; (2) a idade em que as palavras são aprendidas (AoA). Embora haja uma associação entre frequência e AoA, elas são variáveis independentes (cf. Capítulo I, página 48). O modelo prevê que as palavras encontradas mais vezes (i.e., de alta frequência) e aprendidas precocemente devem entrar em reestruturação mais cedo do que as palavras de baixa frequência e aprendidas numa fase mais tardia do desenvolvimento. Ao serem reestruturadas mais cedo, estas palavras incorporam um formato de arquivo segmental, o que lhes confere vantagem em tarefas de reconhecimento de palavras faladas.

1.2 A relação entre a reestruturação lexical, consciência fonológica e a