• Nenhum resultado encontrado

Capítulo IV. Processamento de palavras faladas em população clínica:

1. Dislexia: definição, sinais e sintomas

O termo dislexia foi utilizado pela primeira vez em 1881 pelo oftalmologista Rudolf Berlin, após contactar com um jovem que apresentava muitas dificuldades na aprendizagem da leitura e da escrita, embora possuísse competências de aprendizagem adequadas noutros domínios. A palavra foi formada pela combinação do prefixo grego dis, que significa défice, e lexia, ou legein em Grego, que significa fala (Wagner, 1973). Em 1968, a Federação Mundial de Neurologia definiu formalmente a dislexia como uma dificuldade na

13 Do Inglês, Age Controls. 14 Do inglês, Reading-Age Controls.

aprendizagem da leitura, originada por dificuldades cognitivas de ordem constitucional, que ocorre na presença de instrução convencional, inteligência normal e oportunidades sócio-culturais adequadas.

Esta perturbação também pode ser designada de dislexia de desenvolvimento, que difere da dislexia adquirida. Na dislexia de desenvolvimento, a criança deve ler abaixo daquilo que é esperado para a sua idade e nível cognitivo, e esse défice não pode ser explicado por problemas sensoriais ou constitucionais, ambiente sócio-económico carenciado ou ausência de oportunidades educativas e de instrução formal da leitura (Ellis, 1993). Na dislexia adquirida, as dificuldades de leitura ocorrem em resultado de uma lesão constitucional como o traumatismo crâneo-encefálico (para uma revisão sobre as diferenças entre dislexia de desenvolvimento e a dislexia adquirida, cf. Baddeley, Ellis, Miles & Lewis, 1982). Neste capítulo, referimo-nos sempre à dislexia de desenvolvimento.

Em 2003, Lyon, Shaywitz e Shaywitz apresentam uma nova definição de dislexia, que define de forma precisa a manifestação do défice de leitura em sujeitos com dislexia e a sua etiologia. Esta definição é uma extensão e aperfeiçoamento de uma definição apresentada por Lyon em 1995 e foi aprovada pela International Dyslexia Association. Para Lyon, Shaywitz e Shaywitz (2003), a dislexia é uma dificuldade específica de aprendizagem de origem neurobiológica, caraterizada por dificuldades no reconhecimento fluente e exato de palavras, dificuldades na descodificação e défices no processamento fonológico. À semelhança da proposta da Fundação Mundial de Neurologia (1968), esta definição enfatiza também que os problemas na leitura não podem ser explicados por perturbações sensoriais ou do desenvolvimento, e são inesperados face às capacidades cognitivas e o nível académico do sujeito.

Existem vários aspetos interessantes nesta definição de dislexia. Um deles é a inclusão da dislexia nas perturbações de aprendizagem. O DSM-IV - TR também inclui a dislexia neste tipo de perturbação (neste caso, a dislexia é designada de Perturbação da Leitura e da Escrita), mas distancia-se de outras propostas como a de Hulme e Snowling (1992), que colocam a dislexia num espetro de perturbações da linguagem. Outro aspeto relevante é o caráter específico da dislexia, pois, segundo Lyon e colaboradores (2003), o principal sintoma da dislexia é o défice na leitura e na descodificação e este não pode

ser enquadrado dentro de dificuldades cognitivas e/ou de aprendizagem gerais: 80% da população infantil com dificuldades de aprendizagem possui também dificuldades de leitura mas, neste caso, as dificuldades estendem-se também a outras áreas como a escrita e a matemática o que impossibilita o diagnóstico de dislexia (Lerner, 1989; Lyon, 1995).

Esta definição prevê ainda que a dislexia é uma perturbação constitucional, pois possui uma origem neurobiológica. Um amplo corpo de estudos sugere que os adultos com dislexia apresentam ativação diferencial das regiões parietais e occipitais face aos adultos com desenvolvimento normativo (e.g., Klingberg et al., 2000). Mais concretamente, os sistemas neurocognitivos na região posterior peri-sílvica do hemisfério esquerdo parecem estar menos ativos durante as tarefas de leitura em sujeitos com dislexia (e.g., Brunswick, McCrory, Price, Frith & Frith, 1999; Paulesu et al., 2001). Estas diferenças em termos de ativação cerebral também estão presente em crianças e são específicas à dislexia e não o resultado de falta de experiência ne leitura, característica deste tipo de população (Temple et al., 2001).

Segundo a definição de Lyon e colaboradores (2003), os principais sinais da dislexia são os défices na fluência da leitura (medida através de testes de leitura de palavras isoladas e leitura em contexto de frase) e a dificuldade na descodificação de palavras (avaliada sobretudo com testes de leitura de pseudopalavras). A fluência refere-se à capacidade de ler palavras e textos de forma rápida, exata e inteligível e é o ponto de chegada em termos desenvolvimentais do leitor hábil (Wolf & Katzir - Cohen, 2001). Embora as crianças e adultos com dislexia melhorem as suas competências de leitura quando sujeitos a intervenção, a leitura lenta e laboriosa continua sempre a ser um sinal evidente da dislexia e a dislexia parece ser persistente ao longo de todo o ciclo vital (Shaywitz et al., 1999). Estas dificuldades são acompanhadas de perturbações no processamento fonológico, sobretudo ao nível da consciência fonológica. Como vimos no Capítulo II, a consciência fonológica é a capacidade de identificar, segmentar e manipular os sons da fala e é uma competência potenciadora da aquisição da leitura (cf. pp 57 a 63). Vários estudos demonstram também que esta está afetada em crianças e adolescentes com dislexia (Stanovich & Siegel, 1994; Shaywitz, 1999). Neste âmbito, a hipótese do défice fonológico (Stanovich, 1988) prevê que as crianças

com dislexia têm dificuldades na representação, arquivo e recuperação dons sons da fala, o que dificulta o estabelecimento de relações entre grafemas e fonemas e, consequentemente, a aprendizagem da leitura no sistema alfabético (Bradley & Bryant, 1978; Snowling, 1981; para uma revisão sobre as teorias cognitivas da dislexia, cf. Ramus et al., 2003).

Embora a dislexia se manifeste em contexto escolar, aquando da aprendizagem formal da leitura, as crianças em contexto pré-escolar podem apresentar fatores de risco para o desenvolvimento da dislexia a que os educadores e adultos cuidadores devem estar atentos. sujeitos , Frith e Snowling (2000) avaliaram 29 crianças de 6 anos de idade com risco genético de dislexia e 34 crianças sem história familiar de dislexia, em várias tarefas de desenvolvimento da linguagem, processamento fonológico e consciência fonológica. Verificou-se que 57% das crianças em risco obtiveram um desempenho inferior ao seus pares (um desvio-padrão abaixo face à média do grupo de controlo) em quase todas as tarefas, sobretudo as de avaliação vocabulário recetivo e produtivo, repetição de pseudopalavras, conhecimento de rimas, conhecimento de letras e memória de dígitos. A tarefa de conhecimento das letras constituiu um importante preditor da leitura, ao explicar ca. de 52% da sua variância. Outros trabalhos (e.g., Gijsel, Bosman & Verhoeven, 2006) confirmam que o conhecimento das letras é um preditor importante da aquisição da leitura aquando da entrada para a escola, e que intervenções que trabalham esta competência, a par do processamento fonológico, são as mais eficazes em crianças do pré-escolar em risco de dislexia (Schneider, Roth & Ennemoser, 2000). Assim, embora um amplo espetro de funções da linguagem esteja afetada nas crianças em risco da dislexia, o conhecimento das letras parece ser estruturante pois afeta a capacidade da criança formar associações entre grafemas e fonemas e assim proceder à descodificação.