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Capítulo III. Estudo desenvolvimental de processamento de palavras

2. Estudos desenvolvimentais

2.5 Estudos desenvolvimentais: uma integração

Nas subsecções anteriores descrevemos 5 estudos experimentais que procuraram traçar o desenvolvimento da organização das representações lexicais ao longo da infância até à idade adulta. Estes estudos têm a particularidade de compararem faixas etárias distintas 12 em tarefas de reconhecimento de palavras faladas. As tarefas utilizadas foram o gating (Garlock, Metsala, & Walley, 2001; Metsala, 1997 a; Metsala, Stavrinos, & Walley, 2009; Wesseling e Reitsma, 2001) e a identificação de palavras em fundo de ruído (Garlock, Metsala, & Walley, 2001; Metsala, Stavrinos, & Walley, 2010; Vicente, 2003).

Os estudos procuraram determinar o impacto da frequência, AoA e densidade de vizinhança no reconhecimento em diferentes idades, e

estabelecer associações entre o desempenho no reconhecimento e outras competências cognitivas, como a leitura, vocabulário e consciência fonológica. Torna-se pertinente estabelecer uma integração dos resultados dos estudos, de modo a podermos então traçar um perfil desenvolvimental. Para tal, apresentamos um quadro sistematizador dos principais resultados obtidos para cada faixa etária.

Quadro 16

Resumo dos principais resultados obtidos nos diferentes estudos experimentais de reconhecimento de palavras faladas para crianças e adultos.

Idade Efeitos Resultados

4 anos AoA Presente (Vicente, 2003). Densidade Sem efeito geral (Vicente, 2003). AoA x Densidade

x Idade

Para as palavras precoces, vantagem das palavras muito esparsas (Vicente, 2003).

5 anos Frequência Sem efeito geral (Garlock, Walley e Metsala (2001). AoA Presente (Garlock, Walley, & Metsala, 2001)

AoA x Densidade Nas palavras precoces, vantagem das palavras esparsas. Sem efeitos de densidade para palavras tardias (Garlock, Walley, & Metsala, 2001)

6 anos AoA Presente (Vicente, 2003). Densidade Sem efeito geral (Vicente, 2003). AoA x Densidade

x Idade

Para as palavras precoces, vantagem das palavras muito esparsas (Vicente, 2003).

7 anos Frequência Sem efeito (Garlock, Walley, & Metsala (2001). Vantagem das palavras de alta frequência (Metsala, 1997 a).

AoA Presente (Garlock, Walley, & Metsala, 2001; Metsala, Stavrinos, & Walley, 2009)

Densidade Vantagem para as palavras esparsas (Garlock, Walley, & Metsala, 2001; Metsala, 1997a, Metsala, Stavrinos, & Walley, 2009).

Frequência x Densidade

Nas palavras de alta frequência, vantagem para as palavras esparsas. Nas palavras de baixa frequência, vantagem para as densas (Metsala, 1997a). AoA x Densidade Vantagem das palavras esparsas no subgrupo das palavras precoces. Sem

efeitos de densidade nas palavras tardias (Metsala, Stavrinos, & Walley, 2009).

Idade x

Frequência x Densidade

Piores do que crianças de 9, 11 anos e adultos no processamento de palavras de alta frequência esparsas. Sem efeitos da idade no processamento de palavras de alta frequência densas (Metsala, 1997a).

8 anos AoA Presente (Vicente, 2003). Densidade Sem efeito geral (Vicente, 2003). 9 anos Frequência Presente (Metsala, 1997a).

AoA Presente (Metsala, Stavrinos, &, Walley, 2009).

Densidade Vantagem para as palavras esparsas (Stavrinos, Walley, & Metsala, 2009; Walley, 1997a).

Frequência x Densidade

Nas palavras de alta frequência, vantagem para as palavras esparsas. Nas palavras de baixa frequência, vantagem para as densas (Metsala, 1997a).

AoA x Densidade Vantagem das palavras esparsas no subgrupo das palavras precoces. Sem efeitos de densidade nas palavras tardias (Metsala, Stavrinos, & Walley, 2009). 11 anos Frequência Presente (Metsala, 1997a).

Densidade Vantagem das palavras esparsas (Metsala, 1997a). Frequência x

Densidade

Nas palavras de alta frequência, vantagem para as palavras esparsas. Nas palavras de baixa frequência, vantagem para as densas (Metsala, 1997a). 13/14 anos AoA Vantagem para as palavras precoces (Vicente & Castro, 2008)

AoA X Densidade Vantagem para as palavras esparsas no subgrupo das palavras precoces. Sem efeitos de densidade nas palavras tardias (Vicente & Castro, 2008).

Adultos Frequência Sem efeito (Garlock, Walley, &Metsala (2001). Vantagem das palavras de alta frequência (Metsala, 1997a).

AoA Presente (Garlock, Walley, & Metsala, 2001, Vicente, 2003).

Densidade Vantagem para as palavras esparsas (Garlock, Walley, & Metsala, 2001; Metsala, 1997a). Sem efeito geral (Vicente, 2003).

Frequência x Densidade

Nas palavras de alta frequência, vantagem para as palavras esparsas. Nas palavras de baixa frequência, vantagem para as densas (Metsala, 1997a). AoA x Densidade Nas palavras precoces, vantagem das palavras esparsas. Sem efeitos de

densidade para palavras tardias (Garlock, Walley, & Metsala, 2001) Todas as

faixas etárias

O desempenho no reconhecimento melhora com a idade.

Nas crianças, o reconhecimento, sobretudo de palavras esparsas, associa-se positivamente com a leitura, o vocabulário e a consciência fonológica.

Sumarizando os resultados dos estudos, verificamos, em primeira instância, que embora estejamos perante apenas 5 estudos experimentais, eles cobrem já um espetro amplo do desenvolvimento. Neste momento, o processo de reconhecimento de palavras faladas já foi documentado para crianças desde os 4 anos até à idade adulta. Existem estudos que analisam o reconhecimento em crianças mais novas (e.g., Swingley & Aslin, 2000; 2002), mas estes trabalhos não comparam o desempenho de crianças de faixas etárias distintas. Passemos agora a analisar os resultados similares a todos os estudos e o modo como eles se articulam com os pressupostos do LRM. Em todos os estudos, verificou-se que o desempenho em tarefas de reconhecimento, seja no gating seja na identificação de palavras em fundo de ruído, melhora com a idade. Assim, à medida que os participantes envelhecem, o reconhecimento torna-se mais rápido e exato. O LRM prevê que o reconhecimento se torne mais rápido e exato durante a infância, pois o processo de segmentação das representações lexicais torna-o mais rápido e exato. No entanto, o LRM assume que a reestruturação lexical fica completa nos primeiros anos de escolaridade. Assim, não seria de esperar que o desempenho das crianças mais velhas e dos adultos diferisse. Tal não se verificou, pois todos os estudos reportam

efeitos de idade, e mesmo as crianças de 11 anos são mais lentas do que os adultos no reconhecimento (Metsala, 1997a). Assim, ou a reestruturação lexical se estende ao longo da infância, ou existem outros fatores a influenciar o reconhecimento não previstos pelo modelo.

Também de acordo com o LRM, os estudos são unânimes quanto à associação entre o desempenho entre medidas de reconhecimento (sobretudo o reconhecimento de palavras residentes em vizinhanças esparsas), a leitura e a consciência fonológica. Assim, as crianças que apresentam um melhor desempenho na tarefa de reconhecimento tendem também a ler melhor e a obterem pontuações mais altas em tarefas de consciência fonológica (e.g., Vicente, 2003). O desempenho no reconhecimento parece também ser um preditor significativo da aquisição da leitura e consciência fonológica (Metsala, Stavrinos, & Walley, 2010: Wesseling, & Reitsma, 2001).

Em todos os estudos, foi consensual a existência de um efeito de AoA em todas as faixas etárias, pois as palavras precoces foram reconhecidas de forma mais rápida e exata do que as palavras tardias. No entanto, a magnitude do efeito, i.e., a diferença no tempo necessário para o reconhecimento entre palavras precoces e tardias, é maior para as crianças mais novas face às crianças mais velhas e os adultos. No estudo de Vicente (2003) foram relatados efeitos aumentados de AoA para crianças de 4 e 6 anos face a crianças de 8 anos e adultos. No estudo de Garlock e colaboradores (2001) verificou-se que as crianças de 7 anos foram as que mais beneficiaram da AoA precoce para o reconhecimento, enquanto o trabalho de Metsala e colaboradores (2010) verificou a existência de efeitos aumentados de AoA no grupo de 9 anos. Segundo o LRM, as palavras precoces são as primeiras a tornarem-se segmentais, o que facilitaria o seu reconhecimento. Nas crianças, em que a reestruturação lexical ainda deverá estar a ocorrer, as palavras precoces que já se tornaram segmentais deverão ser especialmente bem reconhecidas pois as palavras tardias, ainda holísticas e indiferenciadas, sofrem desvantagem no reconhecimento. Nas crianças, existem assim diferenças claras no formato de arquivo entre palavras precoces e tardias, o que levaria a uma maior magnitude do efeito de AoA. Para o adulto, como os dois grupos de palavras já estão arquivados de uma forma segmental, o efeito de AoA deverá,

consequentemente, estar reduzido. Verificamos, deste modo, que os estudos têm apoiado as previsões do LRM quanto à AoA.

O efeito da frequência no reconhecimento de palavras faladas é menos claro. Para o Inglês, o trabalho de Garlock e colaboradores (2001) verificou a existência de efeitos diminutos de frequência tanto na tarefa gating como na identificação de palavras em fundo de ruído. Relembre-se que, neste estudo, AoA, frequência e densidade de vizinhança foram manipuladas, e verificou-se a existência de um efeito de AoA independente do efeito de frequência. Já no trabalho de Metsala (1997a), foi relatado um efeito geral de frequência na tarefa gating, para todas as idades estudadas: crianças de 7,9 e 11 anos e adultos. Assim, são necessários mais estudos que avaliem o impacto da frequência no reconhecimento e ajudem a clarificar os seus efeitos. No trabalho de Vicente (2003) para o Português Europeu, a frequência não foi manipulada experimentalmente, o que justifica a sua inclusão como variável independente no estudo que apresentamos neste capítulo.

Quanto ao efeito da densidade de vizinhança no reconhecimento de palavras faladas, verificamos que em todos os estudos, à exceção do estudo para o Português Europeu de Vicente (2003), ocorreu um efeito geral de densidade, em que as palavras esparsas foram globalmente melhor reconhecidas do que as palavras residentes em vizinhanças densas (Garlock, Metsala, & Walley, 2001; Metsala, 1997a; Metsala, Stavrinos, & Walley, 2010). A densidade de vizinhança interagiu também com a frequência, a AoA e a idade dos participantes. Relativamente aos estudos para o Inglês, a AoA interagiu com a densidade em crianças de 5anos, 7 anos, 9 anos e adultos (Garlock, Metsala, & Walley, 2001; Walley, Stavrinos, & Metsala, 2010). Foi visível um efeito facilitador do reconhecimento de palavras esparsas para o subgrupo de palavras aprendidas precocemente, e a ausência de efeitos de densidade para as palavras tardias. A interação entre frequência e densidade verificou-se para crianças de 7 e 9 anos e adultos (Metsala, 1997a) e revelou que, no caso das palavras de alta frequência, há vantagem no reconhecimento de palavras esparsas, enquanto que, para as palavras de baixa frequência, as palavras densas são processadas mais rápido. No caso do Português, a densidade de vizinhança interagiu com a idade e a AoA (Vicente, 2003). Verificou-se a existência de vantagem no reconhecimento de palavras muito esparsas no

subgrupo das palavras aprendidas precocemente para os grupos dos 4 e 6 anos. O LRM prevê que a reestruturação lexical se inicie pelas palavras densas, pois ao possuírem muitas palavras fonologicamente similares entre si, necessitam ser arquivadas num formato segmental para serem reconhecidas de modo mais rápido e exato. Deste modo, ao serem as primeiras palavras a serem organizadas no formato segmental, deveriam obter vantagens no reconhecimento. No entanto, modelos para o adulto como o NAM (cf. Capítulo I, página 33) propõem que as palavras densas são mais sujeitas a efeitos de competição lexical, pois existem mais candidatos lexicais ativos durante o reconhecimento. Esta competição atrasaria o reconhecimento destas palavras, gerando assim efeitos inibitórios da densidade de vizinhança. Como conciliar duas propostas aparentemente antagónicas? O LRM prevê, na sequência dos trabalhos de Metsala (1997a), que a densidade possa interagir com a frequência. Nas palavras de alta frequência, ocorreriam efeitos on-line da competição, levando a um melhor reconhecimento de palavras esparsas. Nas palavras de baixa frequência, os efeitos estruturais/residuais levariam a que as caraterísticas das representações lexicais fossem mais determinantes no reconhecimento, gerando então uma vantagem no reconhecimento de palavras densas pois estas são as primeiras a tornarem-se segmentais. O trabalho de Metsala (1997a) encontrou este padrão para crianças de 7, 9 e 11 anos e adultos. Deste modo, pelo menos aos 7 anos, as crianças já apresentam um desempenho no reconhecimento de palavras contrastantes em densidade de vizinhança similar ao do adulto. A interação entre AoA e densidade é menos clara, pois embora as palavras aprendidas precocemente e residentes em vizinhanças esparsas sejam melhor reconhecidas do que as palavras precoces residentes em vizinhanças densas, não se verificaram efeitos de densidade para palavras tardias. No caso do Português, o panorama é ainda mais complexo, pois a densidade apenas exerce os seus efeitos em interação com a AoA e a idade. Verificaram-se vantagens no reconhecimento de palavras muito esparsas para as palavras precoces, e apenas para crianças de 4 e 6 anos. Mais uma vez, não se verificaram efeitos de densidade para o grupo das palavras aprendidas tardiamente.

A principal questão que permanece em aberto em relação à densidade de vizinhança é se, em algum ponto do desenvolvimento, as palavras densas,

as primeiras a serem reestruturadas segundo o LRM, são reconhecidas mais rapidamente do que as palavras esparsas, no caso das palavas frequentes e aprendidas precocemente. Pelo menos aos 4 anos, as crianças já parecem ser globalmente melhores no reconhecimento de palavras esparsas. Embora no trabalho de Vicente (2003), as palavras densas sejam reconhecidas de forma mais exata do que as palavras esparsas nas crianças de 4 anos, as palavras muito esparsas continuam ainda assim a ser o grupo com mais vantagem no reconhecimento. A partir daí, os efeitos gerais de densidade favorecem sempre as palavras esparsas, e as palavras densas só obtêm vantagens no reconhecimento para o subgrupo das palavras de baixa frequência. Só estudando crianças mais novas, antes dos 4 anos, seria possível averiguar se estas crianças são sensíveis aos efeitos de competição lexical e apresentam já efeitos facilitadores no reconhecimento para as vizinhanças esparsas. Outra questão pertinente é se a densidade apresenta interações mais consistentes com a frequência ou a AoA. Embora a AoA interaja com a densidade, só se verificam efeitos facilitadores das vizinhanças esparsas para as palavras precoces. Para as palavras tardias, não se verificam efeitos de densidade. No caso do Português, é ainda pertinente esclarecer os efeitos da densidade a partir dos 6 anos, pois, no estudo de Vicente, a densidade não teve impacto para o reconhecimento a partir dessa idade.