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Capítulo III. Estudo desenvolvimental de processamento de palavras

2. Estudos desenvolvimentais

2.4 O estudo de Vicente (2003)

Vicente delineou um estudo desenvolvimental em que comparou crianças de 4, 6 e 8 anos e adultos numa tarefa de identificação de palavras em fundo de ruído. Posteriormente, foram ainda avaliados adolescentes que frequentavam o 8º e o 9º anos de escolaridade com a mesma tarefa (Vicente & Castro, 2008).

Este trabalho pretendia testar empiricamente o LRM e verificar até que ponto ele pode ser aplicado a outras línguas que não o Inglês, língua para a qual o modelo foi originalmente concebido. Aliás, as próprias autoras do LRM chamaram a atenção para a necessidade de validação translinguística do modelo (Metsala, & Walley, 1998). Assim, trata-se do primeiro estudo desenvolvimental para o Português Europeu e, até onde temos conhecimento, o único estudo desenvolvimental à luz do LRM feito para outra língua que não o Inglês.

Além da tarefa de identificação de palavras em fundo de ruído, as crianças foram avaliadas com uma medida de vocabulário recetivo, uma medida de memória de trabalho fonológica, e várias medidas de consciência fonológica: segmentação explícita e implícita em posição inicial e final de 3 unidades linguísticas (sílaba, ataque e rima). As crianças de 6 e 8 anos foram ainda avaliadas com uma medida de leitura de palavras isoladas.

Na tarefa de identificação de palavras em fundo de ruído, foram utilizadas 36 palavras dissilábicas contrastantes em AoA precoce vs. tardia e Densidade de vizinhança mesparsas vs. esparsas vs. densas. Verificamos que a variável densidade de vizinhança incorpora um terceiro nível: as palavras muito esparsas. Estas palavras possuem entre 0 e 2 vizinhos, enquanto as palavras esparsas têm entre 2 a 9 vizinhos. Esta terceira categoria foi incluída devido às caraterísticas especiais da estrutura de densidade de vizinhança em Português Europeu, analisadas previamente pela autora (Vicente, Castro & Walley, 2003). As palavras foram controladas em familiaridade subjetiva, medida numa escala de 9 pontos (M = 7.7), extensão (dissilábicas), acentuação (grave), número de letras e fonemas, fonema inicial e ponto de unicidade (PU).

Os resultados indicaram que, para as palavras apresentadas na versão intacta, a percentagem de identificação de respostas corretas é quase 100% em todos os grupos etários. Assim, as restantes análises centraram-se na percentagem de erros na identificação de palavras com fundo de ruído. Foram encontrados efeitos robustos da idade e da AoA, compatíveis com os pressupostos do LRM. Na Figura 7, podemos apreciar graficamente a evolução da percentagem de erros na identificação para todas as faixas etárias avaliadas.

Figura 7. Percentagem de erros na identificação de palavras com fundo de ruído nos 4 grupos etários ( crianças de 4, 6 e 8 anos e adultos) no estudo de Vicente (2003).

Verificamos, pela Figura 7, que no grupo dos 4 anos a percentagem de erros foi de 52.5%, o que o torna no único grupo em que ocorreram mais erros do que respostas corretas. Aos 6 anos, a percentagem de erros cai para 44.8%

0 10 20 30 40 50 60

4 anos 6 anos 8 anos Adultos

e aos 8 anos para 39.5%. No grupo dos adultos, os erros situaram-se nos 30.5%. É visível a existência de um efeito robusto da idade, pois a percentagem de erros na identificação desce abruptamente à medida que os participantes envelhecem.

Os efeitos de AoA foram muito significativos e ocorreram para todas as faixas etárias. Assim, em todos os grupos, as palavras precoces foram melhor reconhecidas do que as palavras tardias. Contudo, a AoA interagiu com a idade, pois o efeito de AoA foi mais pronunciado nos grupos dos 4 e 6 anos. Nos 4 anos, a diferença na taxa de erros entre palavras precoces e tardias foi de 34% e nos 6 anos foi de 31%. Já na faixa dos 8 anos e nos adultos, as palavras tardias obtiveram apenas mais 23% de erros do que as palavras precoces. Não ocorreu nenhum efeito geral da densidade de vizinhança. No entanto, a densidade interagiu com a AoA e com a idade. Nas palavras tardias, não ocorreram efeitos de densidade de vizinhança. Já para as palavras precoces, nos grupos dos 4 e 6 anos, houve uma vantagem no processamento de palavras muito esparsas, face às palavras esparsas e densas. Aos 8 anos e nos adultos, não há diferenças em função da densidade de vizinhança. Acrescente-se ainda que o reconhecimento de palavras precoces e esparsas se associou com o desempenho nas outras tarefas cognitivas, sobretudo a leitura, o vocabulário e a segmentação da rima.

Posteriormente, a autora desenvolveu um estudo em que apresentou a mesma tarefa a participantes que frequentavam o 8º/9º ano de escolaridade (Vicente & Castro, 2008). Mais uma vez, quando as palavras eram apresentadas intactas, a taxa de identificações corretas rondou os 100%. Ocorreu um efeito geral de AoA, que traduz uma vantagem no processamento de palavras precoces face a palavras tardias (31% de erros vs. 45%, respetivamente), e as palavras esparsas foram reconhecidas de forma mais exata do que as densas (30% de erros vs. 35%, respetivamente). Verificou-se ainda uma interação da AoA com a frequência. Tal como tinha ocorrido nos grupos dos 4 e 6 anos, no caso das palavras precoces, houve vantagens no processamento de palavras esparsas. Não se verificaram efeitos de densidade de vizinhança nas palavras tardias.

Este estudo permitiu sedimentar a existência de efeitos robustos de Idade e AoA no reconhecimento de palavras faladas numa outra língua além do

Inglês. O efeito da densidade em Português Europeu foi mais volátil. Verificou- se a existência de uma diferença desenvolvimental importante entre os 6 e os 8 anos. De facto, as crianças de 4 e 6 anos obtiveram desempenhos bastantes similares: os efeitos de AoA foram mais pronunciados nestas idades e, para as palavras precoces, ocorreu uma vantagem no reconhecimento de palavras muito esparsas. As crianças de 8 anos e adultos, por sua vez, também tiveram desempenhos equiparáveis. Embora ocorra um ganho geral na velocidade de reconhecimento, os efeitos de AoA tornam-se mais reduzidos e o efeito de densidade desaparece. Assim, podemos hipotetizar que entre os 6 e os 8 anos ocorrem mudanças importantes na organização lexical. Embora as melhorias gerais no reconhecimento se verifiquem até à idade adulta, o processamento de certos subgrupos de palavras parece modificar-se entre os 6 e os 8 anos. Esta tendência desenvolvimental está de acordo com os pressupostos do LRM, pois o modelo prevê que a reestruturação lexical se estenda aos primeiros anos de escolarização. Os efeitos de AoA prevêm que as palavras precoces são as primeiras a incorporarem um formato de arquivo segmental. A vantagem no processamento de palavras muito esparsas para o subgrupo das palavras precoces pode ser explicada pelos efeitos on-line descritos por Metsala (1997a).