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A Referência à Lei, Doutrina e Jurisprudência: Motivos?

CAPÍTULO II DO QUE SE COMPÕE A MOTIVAÇÃO JUDICIAL?

2.2 TIPOLOGIA MOTIVACIONAL

2.2.1 Motivos Passíveis de Controle Judicial

2.2.1.1 A Referência à Lei, Doutrina e Jurisprudência: Motivos?

Já foi constatado retro que os fundamentos se aproximam mais de apontamentos legais, doutrinários e jurisprudenciais, sendo que os motivos seriam os porquês dessas opções. A linha de corte entre motivação e fundamentação nem sempre se apresenta tão simples ou clara quanto proposto. É bem possível que o motivo da escolha de um precedente para embasar uma decisão judicial seja a existência de outros precedentes.

Trata-se da motivação per relationem. Ela ocorre quando o julgador, ao invés de elaborar uma explicação autônoma ad hoc, simplesmente reenvia as partes à justificação contida em outra sentença, que pode ser, ou não, do mesmo processo.415 Esta sentença pode

ser da própria demanda na qual foi proposto recurso, como também outra decisão, bem dizendo, apenas referindo jurisprudência aplicável ao caso vertente.416 Resta excluída, na visão de Taruffo, a possibilidade de mera referência à decisão anterior, isto é, quando o juiz “se limita a afirmar como suficientes as argumentações desenvolvidas na sentença impugnada, sem sequer referir tais argumentos.”417

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TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975. p. 422. É também o entendimento de BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Le raisonnement juridique das les décisions de cours d’appel. In: Temas de direito processual: quinta série. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 116. Por outro lado, também vem se admitindo a utilização de parecer do Ministério Público como razão de decidir. Nesse sentido: “Habeas corpus. Processual penal. Acórdão que adotou como razões de decidir o Parecer do Ministério Público estadual. Alegação da falta de fundamentação. Inocorrência. Precedentes de ambas as Turmas desta Suprema Corte. 1. A adoção do parecer do Ministério Público como razões de decidir pelo julgador, por si só, não caracteriza ausência de motivação, desde que as razões adotadas sejam formalmente idôneas ao julgamento da causa. 2. Decisão impugnada que se encontra em perfeita consonância com a pacífica jurisprudência desta Suprema Corte. 3. Habeas corpus denegado.” BRASIL. STF. HC 94.164. 1ª Turma. Relator Ministro Menezes Direito. Julgado em 17.06.2008. A crítica apresentada à motivação per

relationem quando ela reenvia as partes à decisão anterior (ou outras decisões) também se dirige a esse

posicionamento do Supremo Tribunal Federal; sem a presença de um novo elemento a justificar a adoção de outras razões que não originárias do então prolator da decisão.

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TARUFFO, op cit., p. 422. Nesses casos, não há problema de utilização, por parte do juízo, dos precedentes, como argumento ex auctoritate, conquanto que existam outros elementos motivacionais constantes do

decisum. Esses elementos jurisprudenciais tem valia meramente retórica, desempenhando papel de um obter dictum. Ibid., p. 427.

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Trata-se de prática difundida em diversos sistemas jurídicos418 e também nas cortes pátrias.419 Entretanto, deveria ser aceita com certas restrições420 e em caráter excepcionalíssimo, em determinado momento de sobrecarga do volume de trabalho dos juízes.421 A excepcionalidade se justifica dado que, se o julgador ad quem não acrescentar nada aos motivos invocados pelo julgador a quo, ele pode estar negligenciando por completo as críticas do apelante à motivação da decisão atacada422, dentre outras vicissitudes possíveis.423

O entendimento de Fredie Didier Jr. é de que é possível tal fundamentação desde que: a) não tenha havido, na via recursal, suscitação de fato ou argumento novo; b) a decisão à qual a nova decisão se reporta esteja substancialmente fundamentada; e, por último, c) que a peça que contém a fundamentação referida esteja nos autos e que as partes possam ter acesso à mesma.424 O ponto “b” é especialmente relevante, pois, caso a decisão anterior contenha um

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SALAVERRÍA, Juan Igartua. La motivación de las sentencias, imperativo constitucional. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003. P. 205.

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“MANDADO DE SEGURANÇA - MEDIDA LIMINAR INDEFERIDA - DECISÃO FUNDAMENTADA - MOTIVAÇÃO "PER RELATIONEM" - COMPATIBILIDADE DESSA TÉCNICA DE FUNDAMENTAÇÃO COM O ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 93, IX) - CONHECIMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO COMO RECURSO DE AGRAVO - PRECEDENTES - ATO DECISÓRIO INSUSCETÍVEL DE IMPUGNAÇÃO RECURSAL (SÚMULA 622/STF) - RECURSO NÃO CONHECIDO. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por entender incabíveis embargos de declaração contra decisões monocráticas proferidas por Juiz da Suprema Corte, deles tem conhecido, quando inocorrente hipótese de omissão, obscuridade ou contradição, como recurso de agravo. Precedentes. - Não cabe recurso de agravo contra decisão do Relator, que, motivadamente, defere ou indefere pedido de medida liminar formulado em sede de mandado de segurança impetrado, originariamente, perante o Supremo Tribunal Federal. Precedentes. - Revela-se legítima, e plenamente compatível com a exigência imposta pelo art. 93, inciso IX, da Constituição da República, a utilização, por magistrados, da técnica da motivação "per relationem", que se caracteriza pela remissão que o ato judicial expressamente faz a outras manifestações ou peças processuais existentes nos autos, mesmo as produzidas pelas partes, pelo Ministério Público ou por autoridades públicas, cujo teor indique os fundamentos de fato e/ou de direito que justifiquem a decisão emanada do Poder Judiciário. Precedentes.” BRASIL. STF. MS 25936 ED, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 13/06/2007, DJe-176 DIVULG 17-09-2009 PUBLIC 18-09-2009 EMENT VOL-02374-01 PP-00168.

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Na realidade, a motivação per relationem, satisfazendo-se em referir a decisão judicial antecedente ou algum outro precedente judicial sem qualquer outra consideração por parte do juízo revisor, acaba por ferir, entre outros, o requisito de suficiência das decisões judiciais, para que sejam compreensíveis e analisem, ainda que em grandes linhas, os principais argumentos das partes. EVANGELISTA, Stefano. Verbete Motivazione della Sentenza Civile. Enciclopedia Del Diritto. Vol. XXVII. Milano: Giuffrè, 1958-1995. p. 162/164.

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BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Le raisonnement juridique das les décisions de cours d’appel. In: Temas

de direito processual: quinta série. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 116. 422

Ibid., p. 116.

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Pode ocorrer de uma decisão referir-se à decisão que, por sua vez, aponta outro julgado e assim sucessivamente, no que Salaverría denomina de motivação “matrioska”, em alusão à boneca russa. Ainda, pode se passar que a sentença refira a porção de outro decisum que simplesmente não seja a ratio decidendi daquele, em manobra que o mesmo autor alcunha de “trapaça retórica.” SALAVERRÍA, op cit., p. 205.

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DIDIER JR., Fredie Souza; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2008. v. 2. p. 272. Há de se conceder suporte ao posicionamento esposado na Corte de Cassação belga que afirma corretamente que “não é pelos exemplos traduzidos na jurisprudência que o direito afirma sua autoridade, mas sim pela lei, quem dentro de um sistema romanista, liga a ela o seu valor fundamental.” VANNIER, Guillaume. Argumentation et droit. Paris: PUF, 2001. p. 155.

vício tão poderoso quanto a ausência de fundamentação substancial (ou seja, desacompanhada dos motivos dos quais tanto aqui se fala), não poderá ela servir de embasamento para uma nova decisão. Como na doutrina dos “frutos da árvore venenosa”, aqui o vício será transmitido.

Seria adequado acrescentar um quarto requisito a este elenco, qual seja, o da exigência de que a decisão posterior que utilizar a decisão anterior como fundamento, deve obrigatoriamente acrescentar-lhe novos fundamentos, que indiquem o motivo da concordância com o julgado anterior, diante do conteúdo das razões expostas no recurso da parte interessada. É requisito legitimador da decisão.425 A mesma ideia reveste o julgamento fundado em súmulas existentes426 nos Tribunais Superiores. A súmula embasadora do julgamento já possui, embutida em si própria, uma ratio decidendi muito forte e significativa; caso contrário, não teria alcançado o status sumular. A inexistência desses quatro requisitos faz com que a motivação que meramente indica as razões de decidir sem que essas tenham sido de fato proferidas pelo novo julgador revele-se inexistente.427

Na realidade, certas ferramentas à disposição do juiz acabaram por solapar de vez a constância dos motivos decisórios expressos, como se a singela menção a artigos de lei, precedentes ou doutrina, fosse suficiente para tornar um julgamento eficaz e completo. Esses instrumentos só fazem sentido quando utilizados dentro do conjunto proposto, mas isto nem sempre é visível. Há de se reconhecer a existência de ações seriadas, seja em matéria cível,

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Assim, demonstrará o julgador ter valorado criticamente a fundamentação e a suficiência da argumentação que recebe, confrontando diretamente as razões recursais com o conteúdo da decisão original. TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975. p. 424. Contudo, é evidente que não se trata do único requisito legitimador da sentença. Luís Alberto Reichelt relembra a garantia do contraditório, assinalando que “legitima-se a decisão concebida, em um primeiro ponto de vista, pelo fato de ela ser o ponto de chegada de toda uma caminhada que foi devidamente estabelecida em conformivade com os ditames e valores estabelecidos no ordenamento jurídico. No entanto, a legitimação encontra amparo ainda no fato de que a marcha procedimental vem implementada, na prática, através de uma atividade humana ordenada, de maneira tal que as manifestações trazidas pelos sujeitos processuais aos autos formam uma

estrutura dialética.” REICHELT, Luís Alberto. Conteúdo da Garantia do Contraditório. Revista de Processo,

São Paulo: RT, v. 33, n. 162, p. 337, ago.2008.

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Particular controvérsia é levantada ao redor da Súmula 07 do Superior Tribunal de Justiça, que prevê que “a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.” Enorme debate acerca da cisão entre “questão de fato” e “questão de direito” artificialmente reforçada por esta súmula é o objeto de valioso estudo, do qual uma conclusão, entre tantas, é de que deve ser repensado o papel e o funcionamento das cortes de revisão, pois resta evidenciada a ineficiência criada por este entendimento. KNIJNIK, Danilo. O

recurso especial e a revisão da questão de fato pelo STJ. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 78-79. Aponta o

autor: “A relevação excepcional e setorial dos aspectos formais em favor da solução e do enfrentamento de aspectos substanciais e a utilização de rigores formais em outras áreas, para moderar o conhecimento da matéria, são fenômenos nem sempre revelados, mas correntes. [...]: não raro, a Corte tem, na esteira do que já fazia o Supremo Tribunal Federal, incursionado nos meandros dos fatos, ainda que, invocando a dicotomia objeto deste estudo, não o faça explicitamente.” Ibid., p. 81. O resultado é um recrudescimento, nos termos do autor, da comunidade jurídica, incapaz de compreender o que leva esses magistrados a afastarem a regra, em determinados casos, e utilizá-la, em tantos outros.

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trabalhista, previdenciária, nas quais se consolida um determinado entendimento, vinculando os julgados futuros.428

O gigantesco conjunto de precedentes amealhado ao final desses julgamentos é um corpo de fundamento tão poderoso que pode reduzir à míngua uma nova operação motivacional da sentença. O ordenamento criou, nesses casos, um esquema ao qual devem submeter-se os magistrados. Na lição de Hassemer, isto é possível num sistema em que a “norma codificada é capaz de legitimar materialmente a decisão jurídica, sem que a fundamentação da decisão tenha [...] de fazer referência a princípios de decisão, que, por sua vez, são o fundamento da norma codificada.”429

Neste ponto em particular, o autor se refere a uma codificação quase absoluta, na qual as hipóteses acham-se previstas em lei, cabendo ao julgador a simples tarefa de subsunção. Esta noção importa na mesma medida em que, para certos casos, não há margem ampla de debate e ilação quando diante de ação seriada ou entendimento sumulado. Assim, o presente exame dos motivos decisórios se relaciona à, por assim dizer, “normalidade” dos casos, quando diante de situações para as quais o sistema foi propriamente construído, envolvendo lesões e ameaças a direito isoladas e não massificadas.