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CAPÍTULO I O JUIZ E O ATO DE JULGAR

1.2 ANÁLISE DE FIGURAS JUDICIAIS PARADIGMÁTICAS

1.2.5 O Realismo Norte-Americano

A figura a ser analisada não se refere propriamente a um tipo de juiz histórico como até então foi realizado. Trata-se, na verdade, do exame do chamado “movimento”191 realista192 norte-americano, cuja importância para o presente estudo é fundamental, dado o reconhecimento destes juristas, valorizado, em maior ou menor grau, o aspecto subjetivo da decisão judicial.

É importante notar que o princípio193 de tal movimento data do final do século XIX, aparecendo em escritos e decisões de Oliver Wendell Holmes as primeiras bases para essa corrente.194 Ele está, portanto, em momento anterior às situações enfrentadas nos itens 1.3.3 e 1.3.4, mas a discussão em torno dessas ideias estende-se por décadas, até mesmo com alguns artigos publicados durante a II Guerra mundial.195 Não se pode afirmar, de outra banda, que o realismo norte-americano era diametralmente oposto ao que se pensava no outro lado do Atlântico, em particular os pensamentos já consolidados, de origem positivista, que validariam os atos do estado nazista.196

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“There is no school of realists. There is no likelihood that there will be such a school. There is no group with an official or accepted, or even with an emerging creed. There is no abnegation of independent striking out. We hope that there may never be. New recruits acquire tools and stimulus, not masters, nor over-mastering ideas. Old recruits diverge in interests from each other. They are related, says Frank, only in their negations, and in their skepticisms, and in their curiosity.” LLEWWLLYN, Karl N. Some realism about realism: responding to dean pound. Harvard Law Review, Cambridge, v. 44, p. 1233-1234, 1930/1931.

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O termo “realismo” nunca foi abraçado por Jerome Frank, que preferia terminologia diversa: “ceticismo construtivo (constructive skepticism), efetividade jurídica (legal actualism), observação do Direito (legal observation) ou, mais simplesmente ainda, modéstia jurídica (legal modesty), inclinando-se em seus escritos posteriores a 1933 pela palavra experimentalismo (experimentalism).” BRUTAU, José Puig. A

jurisprudência como fonte de direito. Porto Alegre: AJURIS, 1977. p. 28. 193

Em sentido contrário, há quem atribua o início do realismo a J. W. Bingham, no seu artigo What is the Law?. Ibid., p. 25.

194

HOLMES, Oliver Wendell. The common law. In: FISHER III, William W.; HORWITZ, Morton J.; REED, Thomas A. (Orgs.). American legal realism. Oxford: Oxford University Press, 1993. p. 9.

195

Conforme se depreende da coletânea dos mais importantes artigos da matéria, efetuada por FISHER III, William W.; HORWITZ, Morton J.; REED, Thomas A. (Orgs.). American legal realism. Oxford: Oxford University Press, 1993.

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É evidente que, mesmo na Alemanha do final do século XIX e início do século XX, não havia univocidade do pensamento jurídico. Conforme Plauto Faraco de Azevedo, “a partir dos últimos anos do século XIX, continuado ao longo do século XX e estendendo-se até nossos dias, nota-se uma reação, por vezes muito

Uma das passagens mais instigantes de Holmes, afirmaram posteriormente os ditos “realistas”, é a inicial de seu livro The Common Law: “The life of the law has not been logic:

it has been experience”. Dizia, em seguida, que até mesmo os preconceitos compartilhados

pelos juízes com o resto da humanidade, têm conexão muito maior do que o silogismo na determinação das regras que governam os homens.197 Há que se dizer que se trata de uma reação ao positivismo e formalismos absolutos, a fim de descobrir quais são, realmente, as ideias que influenciam o Direito.

A percepção desses juristas é de que o fenômeno jurídico é muito mais dinâmico do que a simples aplicação de leis, que são estáticas quando comparadas às constantes mudanças econômicas, sociais, políticas. A lei é apenas parte do fenômeno judicial, que envolve as características de cada juiz, até mesmo aquelas subconscientes e/ou irracionais. Uma das conclusões do movimento é de que a certeza do direito só poderia estar plenamente assegurada se “os juízes possuíssem mentes estereotipadas, agindo mecanicamente, sem idiossincrasias.”198

viva, contra o método tradicional e a predominância exclusiva da lei.” AZEVEDO, Plauto Faraco de. Do método jurídico: reflexões em torno de François Gény. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 18, n. 51, p. 9, mar. 1991. O espírito que pairava sobre a América também encontrou eco na Escola do Direito Livre (freirechtliche Bewegung), expressão consagrada em 1903 por Eugen Ehrlich. Bülow, contudo, é considerado o precursor do movimento, em seu escrito de 1885 Gesetz um Richterant. Diz Larenz: “A ideia básica deste escrito [...] é a de que cada decisão judicial não é apenas a aplicação de uma norma já pronta, mas também uma actividade criadora de Direito. A lei não logra criar logo o Direito; é somente uma preparação, uma tentativa de realização de uma ordem jurídica.” LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 78. A Escola recusava o dogma legalista então estabelecido bem como o caráter exaustivo da ordem positiva, preconizando o renascimento de um Direito Natural não vinculado à perspectiva metafísica, admitindo até mesmo decisões contra legem, verdadeira aberração para a época. Como os realistas, alguns dos integrantes desta Escola reconheciam que a “jurisprudência não está imune aos afetos, aos sentimentos, logo a pretensão de um rigor dedutivo é descabida; os bons juízes são especialistas nos fatos, não magos das disposições jurídicas.” OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula. Verbete Escola do Direito Livre. In: BARRETO, Vicente de Paulo (Org.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: UNISINOS, 2006. p. 272-274. François Gény, por vezes correlacionado com a Escola de Direito Livre, não foi propriamente integrante desta, mormente por sua desconfiança da “fácil adesão ao Direito Natural”. Mas também encarava a lei como porção do Direito, e não como tudo no Direito, referindo-se ao

fetichismo da lei. Considerava, no entanto, que ela integra “a realidade do Direito e, portanto, faz parte dos

elementos com os quais lida essencialmente o jurista.” SALDANHA, Nelson. Verbete François Gény. In: BARRETO, Vicente de Paulo (Org.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: UNISINOS, 2006. p. 378-379. Julgava, contudo, ser “ilegítimo e de todo modo absolutamente vão pretender tão só por meio da lógica fecundar os princípios contidos na lei escrita, de modo a adaptá-la, a qualquer custo, à solução de todos os conflitos jurídicos”, reconhecendo a necessidade de “buscar um princípio ou um conjunto de princípios, fora e acima da lei, capaz de surprir-lhe as lacunas.” Pontua o mestre de Nancy que “antes de tudo, o Direito Positivo deve permanecer vivo e viver significa mover-se e transformar-se.” AZEVEDO, op cit., p. 11. Há relação entre o legal realism e a Freirechtschule, mas também não se pode dizer que há completa identidade. Enquanto a segunda debate se se deve adotar um modelo de “decisão livre”, a primeira questiona se não se deve simplesmente admitir que já a possuímos. A distinção é de Jerome Frank, lembrada por BRUTAU, José Puig. A Jurisprudência como fonte do direito. Porto Alegre: AJURIS, 1977. p. 31.

197

HOLMES, Oliver Wendell. The common law. In: FISHER III, William W.; HORWITZ, Morton J.; REED, Thomas A. (Orgs.). American legal realism. Oxford: Oxford University Press, 1993. p. 9.

198

BARRETO, Vicente de Paulo (Org.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. p. 701.

Holmes não só escreveu sobre o assunto, como tratou dele em seus julgamentos. No caso Lochner v. New York se encontra mais uma célebre afirmação, de certa forma outra “espinha dorsal” do realismo, de que “general propositions do not decide concrete cases.” Essa decisão depende de um julgamento ou intuição mais sutil que qualquer premissa maior, concluindo que “every opinion tends to become Law”.199 A opinião de cada julgador teria

essa força e, ao utilizar o vocábulo “opinião”, desvinculou (ou reconheceu a desvinculação), ao menos em parte, a decisão da lei ou de proposições gerais, reconhecendo que toda decisão contém alta carga de subjetividade. Roscoe Pound200 afirma que esse precedente foi a melhor exposição na época, nos Estados Unidos, de uma “reação à lógica”, removendo-a do papel central da função judicial e a colocando no seu devido lugar, de instrumento do juiz.

Pound, de seu turno, diferencia o Direito “nos livros” e “na prática”201, dando importância para o papel do advogado, que deve não ser obcecado com a common law, recepcionando bem a legislação positivada e novos princípios gerais. O processo se construi não só na atividade judicial, muito embora este seja o primado de seu sistema; a atividade do advogado deve utilizar princípios de sociologia e de economia, não se baseando exclusivamente nos precedentes. O sistema jurídico deve ser, na visão deste autor, um resultado de uma atividade conjunta entre advogado e juiz, não pensado tão somente com jurisprudência talvez excessivamente datada, mas também considerando que o Direito é amplamente informado por outras ciências.

Com certeza, no espírito deste “movimento”, a psicologia seria a ciência que teria mais a contribuir, pois estudaria o próprio juiz. Afirma Frank:

O processo de julgar, conforme os psicólogos nos informam, raramente começa com a premissa da qual se trabalha até uma conclusão. Julgar se inicia, frequentemente, da forma oposta – com uma conclusão mais ou menos formada; um homem normalmente inicia a partir de tal conclusão e posteriormente tenta localizar premissas que a sustentarão. Se ele não conseguir, satisfatoriamente, encontrar argumentos adequados que conectem sua conclusão com as premissas que julga aceitáveis, ele irá, a não ser que seja arbitrário ou louco, rejeitar a conclusão e buscar outra.202

199

Citações extraídas do julgamento Lochner v.People Of State of New York, 198 U.S. 45 (1905). Disponível em: <http://caselaw.lp.findlaw.com/cgi-bin/getcase.pl?court=us&vol=198&invol=45>. Acesso em: 5 jun. 2010.

200

POUND, Roscoe. Liberty of contract. In: FISHER III, William W.; HORWITZ, Morton J.; REED, Thomas A. (Orgs.). American lrgal Realism. Oxford: Oxford University Press, 1993. p. 31.

201

Id. Law in books and law in action. American Law Review, v. 44, p. 12-36, 1910. Pound já preparava os fundamentos de sua incursão na sociological jurisprudence, de forma que as decisões judiciais operassem uma “engenharia social”. Este é passo além do reconhecimento da subjetividade das decisões, mais próximo da realidade do common law do que do nosso sistema. Sobre o tema, v. TARELLO, Giovanni. Cultura

jurídica y política del derecho. México: Fondo de Cultura Económica, 1995. p. 338-340. 202

FRANK, Jerome. Law and the modern mind. New York: Tudor Publishing Company, 1936. p. 100. O “método inverso” também é referido por Alejandro Nieto, e ainda causa muita surpresa sua utilização. Ele não implica desconhecimento do regramento positivo; na realidade, o juiz bem formado e conhecedor da lei

É de se reconhecer que os juízes se valem desse processo de “raciocínio invertido”, como todas as outras pessoas. Todavia, sua função não deveria permitir-lhes que raciocinassem em parâmetros tão simplistas. Jerome Frank assinala que, ao não ser capaz de ligar a conclusão preestabelecida com as premissas estabelecidas, o homem deverá procurar outro caminho, a não ser que seja “arbitrário ou louco”. A ausência da exposição completa do raciocínio judicial induz esse risco, de submissão a um resultado sem fundamento, sem raciocínio que o conduziu até lá, por conta da arbitrariedade do julgador. O conhecimento de sociologia e economia faria o juiz pensar mais nas consequências de seus julgamentos, mas o estudo de sua psiquê faria com que fosse possível certa noção de previsibilidade de suas decisões.

Afinal, é o comportamento dos juízes203 e sua vinculação com seus predecessores e também sucessores que estabelece a continuidade de seu ofício204, sendo que a análise dessas figuras faria compreender a verdadeira motivação de seus atos. E a retratação fiel do que as cortes e legisladores e juristas fazem não é a única tarefa da ciência do direito.205 É muito

atual a impossibilidade de distinção entre o que as cortes devem fazer daquilo que elas fazem ou, ainda, acham que devem fazer. Para que seja possível melhor ideia do real funcionamento do Direito, na prática, deve-se levar em conta: 1) como os juízes decidem; 2) como eles devem decidir para que haja respeito à ordem legal previamente estabelecida; e 3) uma forma de assegurar, geralmente, de como devem ser as decisões.206

Não é o caso de, como pretendiam os neorrealistas, afirmar que não existem regras, princípios ou doutrinas, porque toda ação judicial se refere muito pouco ou nada a estas.207 Esse entendimento é absurdo e cria um estado de insegurança absoluta, extinguindo a necessária e indiscutível ligação de toda e qualquer ação judicial ao sistema jurídico pré-

não encontra dificuldade alguma em tomar primeiro sua decisão para depois buscar os argumentos que lhe darão sustentação. NIETO, ALEJANDRO. Crítica de la razón jurídica. Madrid: Editorial Trotta, 2007. p. 163-164. É exatamente disso que falava Frank, pois é lícito ao julgador tal metodologia, contanto que venha, de fato, a encontrar fundamentos para sua decisão, do contrário será apenas arbitrário. Tal procedimento é reconhecido também por Stefano Evangelista, admitindo que não se pode duvidar que “a formação do juízo da motivação se configura como um posterius, ao menos do ponto de vista substancial” da sua colocação na sentença como ato. EVANGELISTA, Stefano. Verbete motivazione della sentenza Civile. In: Enciclopedia

Del Diritto. v. 27. Milano: Giuffrè, 1958-1995. p. 161. 203

Já que são, indubitavelmente, os juízes humanos. FRANK, Jerome. Courts on trial: myth and reality in

american justice. New Jersey: Princeton University Press, 1973. p. 146-147. 204

LLEWELLYN, Karl. N. A realistic jurisprudence: the next step. In: FISHER III, William W.; HORWITZ, Morton J.; REED, Thomas A. (Orgs.). American legal realism. Oxford: Oxford University Press, 1993. p. 58.

205

POUND, Roscoe. The call for a realistic jurisprudence. In: FISHER III, William W.; HORWITZ, Morton J.; REED, Thomas A. (Orgs.). American legal realism. Oxford: Oxford University Press, 1993. p. 61.

206

Ibid., p. 62-63.

207

ordenado. Benjamin Cardozo sinalizou nessa direção208, ao dizer que a adesão ao precedente é a maior garantia do common law, pois o deslinde do processo não deve estar conectado a preconceitos ou arbitrariedades, devendo privilegiar a imparcialidade e a uniformidade.209

Jerome Frank, por sua vez, também não pactua com a total irresponsabilidade judicial. O juiz não decide como melhor lhe aprouver – isto só ocorre, diz, com juízes que não tem plena consciência de seus deveres enquanto tais.210 O stare decisis, ainda que possua “pontos de fuga”211, tem seus efeitos.212 Todavia, é obrigado a reconhecer a possível ocultação dos verdadeiros motivos decisórios, em análise de estudo de Rohrlich213, que constatou que os juízes muito raramente revelam os verdadeiros motivos e razões que induzem suas decisões. Este último acredita que esse escamoteamento é benéfico, pois o fato de os julgadores terem de “disfarçar” o que realmente os conduziu àquela decisão, os desmotivaria de sequer formarem seu convencimento com base nessas razões, que não podem ser reveladas. Frank concluiu em sentido diametralmente oposto: se o julgador oculta essas informações da decisão, ele próprio não consegue analisá-las melhor.214

Mais grave do que ocultar essa informação das partes, é ocultá-la de si mesmo e do necessário exame crítico. Na realidade, a aparente “invisibilidade” dessas razões somente faz reforçar que elas, de fato, existem, e a conclusão de Rohrlich leva ao caminho da mais absoluta irresponsabilidade judicial.