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CAPÍTULO I O JUIZ E O ATO DE JULGAR

1.5 A FUNDAMENTAÇÃO FALSA (OU FICTÍCIA)

Estabelecida a diferença entre motivos e fundamentos, apurando, assim, o conceito do que se propõe por “fundamentação atrás da fundamentação”, é essencial o enfrentamento da questão da dita “falsa fundamentação”. O tema é analisado com frequência no âmbito do processo penal, geralmente caracterizada de suicida a sentença que possui falsa fundamentação242. Mais adequada, contudo, é a noção de que a sentença suicida é que a possui fundamentação contraditória ou incongruente em relação ao dispositivo.243 O esclarecimento se faz necessário diante da conclusão de Lanza, que afirma que a sentença suicida é uma “patologia intencional”244 da decisão judicial. Todavia, não deve ser encarada como sinônimo de fundamentação falsa ou fictícia, que é conceito bem mais abrangente.

A falsa fundamentação245, e aí sim correto o autor italiano, é aquela intenção de criar um perfil motivacional ilusório, que acaba por tolher dessa porção decisória a sua eficácia justificativa.246 Preceitua Taruffo247, a esse respeito, que a motivação é fictícia sempre que as reais razões de decidir não estejam expressas na motivação, criticando a elaboração de Brüggemann sobre o tema, registrando, ainda que não são pouco freqüentes os casos em que “o juiz não expresa na realidade as razões da decisão e não se refere às provas nas quais deveria se fundar.”248

O autor alemão analisa com profundidade a Scheinbegründungen249, assinalando que

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Recorda Luigi Lanza o estudo de Calamandrei, a respeito do processo Mulas, no qual foi prolatada sentença com motivos substanciais de condenação e dispositivo que absolvia o réu. La motivazione dei provvedimenti

giudiziari: sessione II: la patologia della motivazione. Disponível em:

<http://appinter.csm.it/incontri/relaz/10609.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2010. p. 18.

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“APELAÇÃO CRIMINAL. EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE. JULGAMENTO PRIMA FACIE. SENTENÇA SUICIDA. Trata-se de sentença suicida, pois a parte dispositiva contraria as razões invocadas na fundamentação. A eventual ausência de dolo não pode ser considerada excludente de culpabilidade. Ademais, inviável o julgamento prima facie, com fundamento no artigo 397, II, do CPP, com a redação dada pela Lei nº 11.719/08, haver indícios da tese defendida na peça acusatória. Deram provimento ao recurso para desconstituir a sentença, determinando o retorno do feito para nova decisão. Unânime.” (BRASIL.TJRS; ACr 70030053045; Erechim; Sexta Câmara Criminal; Rel. Des. Mario Rocha Lopes Filho; Julg. 04/06/2009; DOERS 09/07/2009; Pág. 132) .

244

LANZA, Luigi. La motivazione dei provvedimenti giudiziari: sessione II: la patologia della motivazione. Disponível em: <http://appinter.csm.it/incontri/relaz/10609.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2010. p. 17.

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Que não se confunde com motivação implícita. Esta é verdadeira “não-motivação”, é um passo atrás daquilo que representa a fundamentação falsa. Naquela, não há motivos suficientes, nessa, há motivos falsos que induzem em erro o jurisdicionado acerca da verdadeira convicção judicial. A respeito da motivação implícita, especificamente: EVANGELISTA, Stefano. Verbete motivazione della sentenza Civile. In: Enciclopedia Del

Diritto. v. 27. Milano: Giuffrè, 1958-1995. p. 162. 246

TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975. p. 17.

247

Ibid., p. 266.

248

TARUFFO, Michele. Simplemente la verdad. Madrid: Marcial Pons. 2010. p. 270.

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não há fundamentação que possa ser adjetivada como “verdadeira”, sob pena de uma “duplicação de palavras”250: ou ela é fundamentação ou não é. Os fundamentos aparentes são caracterizados por sua inverossimilhança, sendo muito mais do que meros não fundamentos. São, em realidade, fundamentos incompletos, que findam por lograr a sua finalidade precípua, de responder a pergunta “por que este fundamento e não outro?”251 Refere Brüggemann que

A problemática dos fundamentos aparentes não se mostra apenas mais uma contradição no estabelecimento da verdade, mas também impede uma função essencial dos fundamentos, que é permitir o controle preciso da cognição judicial. Os fundamentos aparentes, portanto, podem tornar impossível acompanhar o raciocínio da autoridade judicial. É irrelevante, nesse contexto, se o resultado está certo ou errado. Desde que nós exigimos para a pesquisa judicial uma abordagem planejada, metódica, um controle de precisão será frustrado, especialmente na falta de ‘critérios de honestidade’.252

A crítica dirigida253 à relevância dessa categoria, nos moldes de Brüggemann, estabelece-se em dois motivos distintos. O primeiro, por conta da impossibilidade de verificar que tal correspondência exista. O segundo, a diversidade e assimetria existentes entre raciocíonio decisório e discurso justificativo induziriam pensar que todas as motivações são fictícias. Verdade seja dita, a categoria, conforme preconiza o jurista alemão, é de grande amplitude, soando demasiado vaga a solução ofertada de que “a aparência pode ser destruída rapidamente, porque as coisas irreais, inverossímeis e fracas da natureza sucumbem aos ataques.”254

Tal ataque não destrói por completo a categoria examinada. Faz-se necessária a sua reformulação, para que torne a ter relevância, em uma acepção diversa do termo “motivação fictícia”, caracterizada pela motivação que “não é coerente com a gênese e com a natureza do enunciado que se propõe a justificar”255. Será fictícia a motivação que dissimule ou oculte os componentes valorativos decisórios, de forma a não justificar, de forma expressa, as escolhas essenciais à construção do resultado final. Trata-se da falta de motivação adequada, “da falta de racionalização e de justificação de alguns componentes decisivos do juízo, e, consequentemente, significa também a impossibilidade de controle externo sobre a validade Optou-se pela tradução do termo Scheinbegründungen enquanto “falsos fundamentos”, ou “fundamentos aparentes”, expressões doravante consideradas sinônimas, que ocultam, portanto, outros motivos, esses sim, os verdadeiros.

250

BRÜGGEMANN, Jürgen. Die richterliche Begründungspflicht. Berlim: Duncker & Humblot, 1971. p. 86.

251

Ibid., p. 86.

252

Ibid., p. 87.

253

TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975. p. 266.

254

BRÜGGEMANN, op cit., p. 87.

255

de tais componentes.”256

A fórmula proposta por Taruffo não resolve todos os problemas levantados pela amplitude da ideia original de Brüggemann; talvez seja tão problemática quanto. Mas isso não remove, sob qualquer aspecto, a importância da categoria, pois é certo que a fundamentação aparente pode não só afetar a confiança257 da comunidade jurídica naquele julgador, como também acaba por granjear as “consequências negativas de uma confiança traída”.258 A confiança traída, no caso, não é só daquele jurisdicionado em particular, que entregou àquele julgador em particular a expectativa de uma solução justa (pois baseada em um processo justo), mas da sociedade como um todo, que deposita na função do juiz a esperança da justiça.

A dificuldade não reside na conceituação do que é, em teoria, a fundamentação falsa, fictícia ou aparente, mas sim em como detectar a sua ocorrência e, mais, em como provar tal fenômeno. A forma oferecida pelo presente estudo no sentido de auxiliar essa questão é de utilizar a categoria jurídica dos obiter dicta como demonstradores de uma possível falsa fundamentação.

1.6 DAS GARANTIAS E DEVERES BÁSICOS INDISPENSÁVEIS À FUNÇÃO