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CAPÍTULO 1 PERCURSO TEÓRICO

1.4 Por uma avaliação formativa: a autoavaliação e o diário reflexivo

1.4.3 A relação de poder entre aluno e professor na autoavaliação

Entendo que as ações de linguagem (BRONCKART, 1985; BRONCKART, MACHADO, 2004) devem ser descritas e analisadas por meio de valores que o agente produtor atribui à situação de comunicação e aos conteúdos mobilizados. Suas escolhas para a

produção verbal estão diretamente relacionadas à situação de comunicação em que ele se insere. Compreendo que essa situação de comunicação é perpassada por relações (e deslocamento) de poder, que influenciam as escolhas linguísticas dos usuários de uma língua. Esses aspectos perpassaram a escrita dos textos autoavaliativos nesta pesquisa.

Para Foucault (1984), os sujeitos estão sempre em uma relação de poder, em lutas contra formas de sujeição. O poder é um exercício de lutas, atos de conduzir, um campo aberto para possibilidades. Ele escapa, está na relação entre os sujeitos, ele só existe em ato, é sempre da ordem do consentimento, é uma ação sobre a ação. Poder é embate e só existe na relação entre indivíduos livres.

Ele é um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações (FOUCAULT, 1984, p. 243).

Na situação de comunicação entre professor e aluno, este sabe que aquele é um sujeito de ação. O próprio Foucault afirma que na instituição escolar há uma organização para se articular o poder:

[...] sua organização espacial, o regulamento meticuloso que rege sua vida interior, as diferentes atividades aí organizadas, os diversos personagens que aí vivem e se encontram, cada um com sua função, um lugar, um rosto bem definido – tudo isto constitui um “bloco” de capacidade-comunicação-poder. A atividade que assegura o aprendizado e a aquisição de aptidões ou tipos de comportamento aí se desenvolve através de todo um conjunto de comunicações reguladas (lições, questões e respostas, ordens, exortações, signos codificados de obediência, marcas diferenciais do “valor” de cada um dos níveis do saber) e através de toda uma série de procedimentos de poder (enclausuramento, vigilância, recompensa e punição, hierarquia piramidal) (FOUCAULT, 1984, p. 241).

Na relação entre professor e aluno, este parece estar sempre em busca de se livrar de uma individualidade que está condicionada a uma totalização, pois tudo que se refere a ele é um poder hierarquizado, que constrói uma verdade sobre o indivíduo que não tem participação na verdade que é construída sobre si mesmo (FOUCAULT, 1997). Nesta pesquisa, assumi a autoavaliação como um rompimento dessa verdade, por meio do processo de reversibilidade, dado que tal processo é “a possibilidade de que haja

movimento nas posições. É a possibilidade de que a posição-aluno tenha igual legitimidade em que se encontra com a posição-professor” (ORLANDI, 1998, p. 17).

Segundo Orlandi (1998), o Discurso Pedagógico (DP) trata-se de um discurso autoritário, um discurso circular, e está presente no espaço escolar que o utiliza para legitimar seu prestígio por meio de ações como modelos. Nesse espaço, o DP apresenta-se em dois aspectos: o da metalinguagem e da apropriação do cientista pelo professor. Assim, as explicações são dadas pelo “é porque é”, o professor apropria-se da voz do cientista e apaga o modo pelo qual adquiriu o conhecimento, sua opinião torna-se definitiva. Acontece, então, o processo de escolarização, ou seja, o professor está na escola para ensinar e o aluno para aprender. O que o professor diz é convertido em conhecimento e é ele quem autoriza o aluno a dizer que sabe, ele apoia-se em expressões como: dever, é de responsabilidade de todos, é preciso, etc. para criar uma visão de utilidade e interesse (ORLANDI, 1987). Assim, pode ser que a relação de poder centralize-se na autoridade do professor devido às formações imaginárias, que levam o aluno a ter a mesma imagem que o professor tem do referente. A relação com o saber pode apresentar-se de modo inconsistente, uma vez que há a anulação do conteúdo referencial a ser ensinado e sua substituição por conteúdos ideológicos. Assim, as mediações do processo de ensino e aprendizagem são sempre preenchidas pela ideologia (ORLANDI, 1987, p. 18).

Entendendo que, ao refletir sobre sua aprendizagem, o aluno traz à tona o ensino ao qual foi exposto, ganha voz para representar a prática docente, podendo descentralizar e/ou deslocar o poder constituído na relação professor-aluno, conferindo à avaliação outra face. Dessa descentralização de poder, a meu ver, intrínseco ao processo autoavaliativo, emerge a formação do professor, não mais preocupado em punir, mas inserido em uma “ética avaliativa”, assim descrita por Hadji (2001), pois, ao assumir o risco de falar verdadeiramente e permitir que os alunos também o façam, o professor possibilita um apropriado conteúdo à comunicação.

Nessa movimentação de poder, proporcionada pela autoavaliação, pode ser que um novo espaço, pautado na reflexão, seja criado e aos atores do processo de ensino e aprendizagem sejam devolvidas suas identidades e responsabilidades, e à escola seja conferida sua adequada função, assim como descrito por Alarcão (1996)

[...] o professor reflexivo que, em relação aos alunos, tem a sua contrapartida no movimento para a autonomia do aluno. [...] dá voz ao sujeito em formação numa tentativa de restituir aos professores a identidade perdida, aos alunos a responsabilidade perdida e de devolver à escola a sua condição de lugar onde se interage para aprender e onde se

gosta de estar por que se aprende com o inerente entusiasmo e prazer de quem parte à descoberta do desconhecido (ALARCÃO, 1996, p. 4). Nessa perspectiva, é possível pensar que o processo autoavaliativo, ao instaurar o deslocamento de poder da relação professor-aluno, possibilita uma postura crítica- reflexiva e transformadora do professor pelas vozes do aluno. Nesta pesquisa, esse deslocamento de poder interpelou-me a escrever diários reflexivos, desencadeando um novo ciclo autoavaliativo, ou seja, um modo de descrever, analisar e interpretar meus papéis como professora de língua francesa. Assim, a seguir, abordo a produção desses diários.