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foram apresentadas duas metodologias descritivas da entoação neste capítulo, a descrição a partir de uma abordagem sistêmico- -funcional da língua (Halliday, 1970; cagliari, 2007) e a abordagem da fonologia entoacional autossegmental-métrica (pierrehumbert, 1980). como o objetivo dessa pesquisa é traçar comparações entre os padrões entoacionais do pb e do ia no contexto do ilme Shrek (2001), considerando, portanto, os sentidos carreados por esses pa- drões, vale clariicar como a relação de sentidos e entoação é con- siderada neste livro. para tanto, será feita uma breve apresentação de como sentidos e entoação se relacionam em diferentes níveis de análise linguística.

em primeiro lugar, vale destacar um apontamento constante na literatura de que há consenso nos estudos da linguagem de que

a entoação carreia sentidos e, portanto, faz parte do sistema linguís- tico; porém, não há consenso em como deinir quais unidades são distintivas para a descrição da entoação e, consequentemente, para a análise da relação entre a entoação e seus sentidos. nesse sentido, é possível dizer que elementos prosódicos têm relação com a sintaxe, a semântica e a pragmática, como airma Quirk et al. (1985, p.1608), ao exempliicar diversas realizações prosódicas que proporcionam diferentes sentidos para os constituintes gramaticais de sentenças: “the system of stress, rhythm, and intonation operate signiicantly […] over considerably longer stretches of speech, indicating degrees of connection and providing signiicant cues to interrelationship of grammatical, semantic, and pragmatic units as ‘texts’.”18

levinson (1983, p.x) no prefácio de seu livro sobre pragmática, destaca o papel da prosódia nessa área de estudo, mas aponta para as diiculdades teóricas envolvidas:

the fact is that, given the clear importance of prosodic factors in prag- matics, the area is grossly understudied. there is disagreement even about the fundamentals of how such factors should be described, whe- ther as discrete elements or variable ones, wholes (e.g. tonal contours) or parts (e.g. ‘levels’), evidence by quite different approaches on either side of the atlantic. but if the way in which the phenomena are to be recorded is unsettled, the pragmatic functions of prosodic patterns are really quite unexplored.19

18 “o sistema de acento, ritmo e entoação operam signiicantemente [...] entretanto, so- bre trechos de fala consideravelmente mais longos, o que indica graus de conexão e prove pistas signiicativas para a inter-relação entre as unidades gramaticais, semân- ticas e pragmáticas como ‘textos’.”

19 “o fato é que, dada a clara importância dos fatores prosódicos na pragmática, a área ainda é grosseiramente pouco estudada. não há concordância até com relação aos fundamentos sobre como esses fatores devem ser descritos: como elementos discretos ou variáveis, como elementos como um todo (por exemplo, contornos entoacionais) ou em partes (por exemplo, níveis); há evidências para abordagens bem diferentes nos dois lados do atlântico. Mas se a maneira como o fenômeno deve ser registrado é incerta, as funções pragmáticas dos padrões prosódicos ainda são bem pouco explo- radas.”

em outras palavras, não há ainda um corpo teórico completo e solidiicado por um número signiicativo de pesquisas que descreva a relação entre a entoação e seus sentidos. dessa forma, apresenta- mos alguns aspectos a serem considerados quando se aborda o papel linguístico da entoação e sua relação com os sentidos.

de acordo com löbner (2002, p.4-9), é possível distinguir três níveis de sentido: a) o sentido das expressões (sentido de expressões isoladamente, palavras e sentenças), b) o sentido do enunciado (sen- tido em um determinado contexto, considerando conceitos de ver- dade e referência) e c) o sentido comunicativo (sentido da expressão como um ato comunicativo em determinado contexto); sendo que os dois primeiros níveis de sentido são objeto da Semântica enquanto o terceiro é tratado pela pragmática. no primeiro nível, o autor des- taca o princípio de composicionalidade.20 ideia central que embasa

a Semântica, na qual o sentido lexical, mais o sentido gramatical (quando as formas das palavras são importantes para a composição semântica de sentenças) aliado à estrutura sintática da língua deter- minam o sentido das expressões complexas. ainda, löbner (2002, p.16) conclui que duas subdisciplinas da semântica surgem a partir do exposto: a semântica lexical e a semântica das formas gramati- cais.21 dessa forma, vale notar que a entoação, sendo um elemento

da gramática das línguas, pode contribuir na composição dos senti- dos carreados pela língua nesse nível de análise semântica.

cruse (2011) também faz um levantamento de como o sentido tem sido estudado em várias disciplinas, com especial atenção aos estudos linguísticos. nesse texto, há a discussão do sentido tanto 20 “Principle of Compositionality: The meaninge of a complex expression is determined by

the lexical meanings of its components, their grammatical meanings and the syntactic

structure of the whole.” (Löbner, 2002, p.15) (“princípio da composicionalidade: o

sentido expressivo de uma expressão complexa é determinado pelo sentido lexical de seus componentes, seus sentidos gramaticais e a estrutura sintática do todo”). 21 é importante notar que o autor inclui na subdisciplina semântica das formas grama-

ticais o estudo da semântica das sentenças, ou seja, “the investigation of the rules that determine how the meanings of the components of a complex expression interact and combine” (löbner, 2002, p.16). (“a investigação das regras que determinam como os sentidos dos componentes de uma expressão complexa interagem e se combinam”).

em análises no campo da semântica quanto no campo da pragmá- tica. considerando o propósito de descrever sentidos, cruse (2011, p.16) aponta para a diiculdade de fazê-lo de forma independente do contexto e de como combinar sentidos simples em formas mais complexas; assim, destaca a importância de se distinguir sentidos proposicionais22 e não proposicionais (atitude proposicional e senti-

do expressivo). dessa forma, podem-se estudar os sentidos que não são dependentes do contexto (sentido convencional) que abrange todas as áreas da linguística como o léxico, a gramática e a prosódia (cruse, 2011, p.415) e também aspectos de sentido que precisam do contexto para serem tratados satisfatoriamente, em geral, estudados no âmbito da pragmática (cruse, 2011, p.18-19).

a partir do reconhecimento de que a entoação pode contribuir tanto para carrear sentidos no nível semântico (sentido expressivo), assim como no nível pragmático da língua, é importante levantar a questão da complexidade nas línguas. a partir disso, a tarefa de bus- car integrar as várias características da língua em diferentes níveis de análise torna-se fator essencial nos estudos da linguagem. Jacken- doff (2002, p.6) salienta que uma análise completa da estrutura de uma sentença simples é uma boa maneira para se abordar a com- plexidade da língua, pois nela é possível destacar as estruturas da língua: fonológica, sintática, semântica/conceitual e espacial.

de acordo com Jackendoff (2002, p.6), é possível categorizar e ana- lisar elementos discretos nos mais variados níveis, por exemplo, na es- trutura fonológica da sentença “the little star’s beside a big star”, a aná- lise linguística pode levar em conta tanto os segmentos que compõem as sílabas na estrutura de onset, núcleo e coda, como a estrutura entoacio- nal da sentença, composta de duas frases entoacionais marcadas pelos parênteses e que permite a inserção de pausa entre esses elementos. ou- tros graus diferentes de análise, com diferentes unidades mínimas, são

22 “propositions may be viewed as mental entities that correspond to potential events or states of affairs in the world, and are true or false with respect to some actual events or states of affairs” (cruse, 2011, p. 6). (“proposições podem ser vistas como entidades mentais que correspondem a eventos potenciais ou estado das coisas no mundo, e são verdadeiras ou falsas com relação a eventos reais e estados de coisas”).

possíveis não só na estrutura fonológica da sentença como também em outros níveis de análise linguística: sintático, semântico e cognitivo.23

vale ressaltar que resultados de análises isoladas de elementos linguísticos devem ser contrastados com os resultados de outros ní- veis de análise da língua, em outras palavras, os sentidos construídos pela e na linguagem advêm da convergência de determinadas carac- terísticas linguísticas em diferentes níveis de análise. nesse aspecto, Jackendoff (2002, p.14) explicita ainda que: “generally speaking, the mapping between phonology and syntax preserves linear order, while the mapping between syntax and meaning tends to preserve the relative embedding of arguments and modiiers”.24 assim, a re-

lação entre aspectos fonológicos, sintáticos e semânticos não é dire- ta, daí o conceito de complexidade das línguas. ainda com relação especíica ao âmbito da fonologia, Jackendoff (2002, p.15) airma: “[...] there is a mismatch between phonology and meaning, which has to be encoded somewhere in the mapping among the levels of structure. if this mismatch is eliminated at one point in the system, it pops up elsewhere.”25 em outras palavras, a relação entre os ele-

mentos linguísticos de um nível de análise com outro nível e com os sentidos por eles carreados não é simples e direta.

Halliday e greaves (2008, p.51) também apontam para a di- iculdade de se separar a análise da entoação de suas contrapartes gramaticais e semânticas. ao optar por descrever os sentidos carrea- dos pela entoação como parte da gramática da língua e não como da semântica somente, os autores explicam que: “systems realized by intonation intersect with grammatical systems of the more familiar kind (those realized in wording) in precisely the same way that these 23 o nível cognitivo é deinido por Jackendoff (2002, p.5) como: “the level at which this

sentence can be compared with the perception of the world”. (“o nível no qual esta sen-

tença pode ser comparada com a percepção do mundo”).

24 “em termos gerais, o mapeamento entre fonologia e sintaxe preserva a ordem linear, enquanto o mapeamento entre a sintaxe e o sentido tende a preservar o encaixe relati- vo dos argumentos e modiicadores.”

25 “Há um desencontro entre a fonologia e o sentido, que deve ser codiicado em algum lugar no mapeamento entre os níveis da estrutura. Se esse desencontro é eliminado em um ponto do sistema, ele aparece em outro lugar.”

intersect with each other. thus what might be locally a simpler solu- tion turns out to be globally much more complex.”26 dessa forma,

sua airmação corrobora com a de Jackendoff (2002, p.15) de que o mapeamento de estruturas fonológicas, sintáticas e semânticas não se relaciona de forma direta em todos os níveis, portanto, ainda é preciso considerar como abordar essas relações, em outras palavras, a relação entre sentido e fonologia não é campo de estudo sedimen- tado na academia.

nesse curto panorama sobre o sentido e sua relação com aspec- tos fonológicos, é possível notar que aí reside uma área de análise a ser desenvolvida. dessa maneira, neste livro, por conta da mul- tiplicidade de sentidos que a entoação pode carrear, como parte do sistema linguístico, optamos por adotar o uso de glosas para relacio- nar os padrões entoacionais encontrados e os sentidos exercidos no contexto do corpus.

enim, o termo sentido é aqui usado de forma ampla e pode abranger aspectos sintáticos, como: declarativas, interrogativas; e/ou semânticos: pedido de conirmação, pedido de atenção; e/ou pragmáticos: inalidade, continuidade. essa tomada de posição em que não se classiica o sentido em sua relação com a descrição da en- toação se deve ao fato de que o objetivo da presente pesquisa é obser- var as possibilidades de escolha de falantes do pb e do ia no tocante ao elemento prosódico da entoação e não descrever todos os padrões possíveis para carrear determinados sentidos. o escopo dessa pes- quisa, portanto, não permite uma descrição detalhada e especíica dos sentidos, mas propõe a identiicação de padrões entoacionais possíveis para os sentidos linguísticos, considerados de forma am- pla, encontrados em determinado recorte do corpus por meio do con- texto compartilhado e da comparação entre as línguas analisadas.

26 “os sistemas realizados pela entoação se relacionam com os sistemas gramaticais do tipo mais comum (aqueles realizados no nível da frase) exatamente da mesma manei- ra que esses se relacionam um com o outro. assim, o que parece ser uma solução mais simples local torna-se muito mais complexa globalmente.”

Resumo

este capítulo teve como objetivo apresentar as bases metodoló- gicas para a descrição e análise do corpus dessa pesquisa. a primeira questão tratada foi a coleta de dados, na qual se especiicou o método de extração do material de áudio do ilme Shrek (2001). em seguida, as ca- racterísticas de uma análise acústica com o auxílio do programa Praat foram apresentadas. finalmente, a partir de um exemplo retirado do corpus, foram demonstrados os critérios relevantes para se realizar uma descrição por meio da abordagem sistêmico-funcional da entoação e depois pela abordagem proposta pela fonologia entoacional aM.

a partir do tipo de corpus de análise escolhido, dados não adap- tados para os ins da pesquisa, e da metodologia escolhida para essa pesquisa, em que os mesmos dados são descritos segundo duas abordagens nas quais as unidades constitutivas da entoação são dis- tintas, apresentam-se, a seguir, a descrição e a análise do corpus, com o objetivo de delinear algumas inferências sobre o uso da entoação em cada uma das línguas em análise e, também, de realizar um estu- do comparativo entre as escolhas dos falantes de cada uma delas em contexto semelhante.