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A relação entre neoliberalismo, estado e democracia

NEOLIBERALISMO E REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

3.3 A relação entre neoliberalismo, estado e democracia

A inter-relação proposta nesta seção entre neoliberalismo, Estado e democracia, objetiva demonstrar como o aparato conceitual de dignidade humana e liberdade individual, proposta na origem histórica e econômica da neoliberalização, incorporou a tal ponto como certo e livre de questionamentos perante a sociedade, proliferando de modo abrangente o cenário mundial. Apontam-se as contradições entre o discurso e a prática neoliberal. Este discurso perpassa a implantação e consolidação das reformas educacionais promovidas, a partir da década de 1990.

O papel do Estado foi fundamental para a implementação das políticas educacionais. É importante evidenciar o “aparente paradoxo” de não intervenção do Estado, pois a ortodoxia necessita do Estado para a prática de suas políticas, assim como, também depende do mesmo para alterações, de forma que intervenha menos na economia (EVANS, 1998).

A democracia é apresentada não como um conceito matriz, mas como uma forma funcional de governo para a implementação de políticas neoliberais através do Estado. Sua operacionalização é discutida a partir do conceito de democracia de

procedimentos, no sentido de demonstrar que foram em governos legitimados pelo povo que ocorreram as mudanças neoliberais mais profundas.

Harvey (2008) afirma que o neoliberalismo poderia ser caracterizado como

[...] em primeiro lugar uma teoria de práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor alcançado pela liberação de liberdades empreendedoras individuais e capacidades dentro de uma estrutura institucional caracterizada por fortes direitos de propriedade privada, mercados livres e livre comércio (Ibid., s/p).

Conforme o autor, o Estado tem o papel de criar e preservar uma estrutura institucional apropriada para essas práticas, garantindo assim, a qualidade e a integridade do dinheiro. Desta forma, deve “estabelecer as estruturas e funções militares, de defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento adequado dos mercados” (Ibid., s/p).

Na obra Neoliberalismo, história e implicações, Harvey discorre sobre como os ideais políticos, fundamentado sobre dois valores centrais - a dignidade humana e liberdade individual - tornaram-se um hegemônico modo de discurso baseado em “valores centrais da civilização”, que estavam na época ameaçados pelo fascismo, pelas ditaduras e pelo comunismo, como também por todas as formas de intervenção do Estado que substituíssem os julgamentos de indivíduos dotados de livre escolha por juízos coletivos.

Assim, a constituição de um consenso sobre a livre escolha, segundo Harvey, ocorreu através de:

[...] poderosas influências ideológicas que circularam através de corporações, mídia e numerosas instituições que constituem a sociedade civil, tais como: universidades, escolas, igrejas e associações profissionais. A „longa marcha‟ das ideias neoliberais através destas instituições que Hayek tinha previsto em 1947, a organização de think-tanks, a captura de certos segmentos da mídia e a conversão de muitos intelectuais ao modo neoliberal de pensar criou um clima de opinião em apoio ao neoliberalismo como exclusivo garantidor da liberdade. Estes movimentos foram depois consolidados através da captura de partidos políticos e, por último, do poder do estado (HARVEY, 2008, s/p).

O “Consenso de Washington” representou o “Agora somos todos neoliberais” (Ibid., s/p), pois com a crise iniciada na década de 1970, os Partidos comunistas e socialistas ganhavam terreno, ameaçavam as elites econômicas e classes dirigentes em todo o mundo. A explicação-padrão para a neoliberalização girava em tono do

excesso de intervencionismo estatal e relações de corrupção entre o Estado e os homens de negócio.

Para Harvey (2008) as intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) deviam ser mantidas num nível mínimo, porque, de acordo com a teoria, o Estado, possivelmente, não possuía informações suficientes para entender devidamente os sinais do mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse vão inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções do Estado (particularmente nas democracias) em seu próprio benefício.

Neste sentido, que Evans (1998, p. 55) anuncia que “as relações de troca entre governantes e aqueles que lhes dão apoio é a essência da ação do Estado”. Para sobreviver, as autoridades precisam de suporte político e aqueles que prestam tal apoio devem receber incentivos suficientes para evitar um possível apoio a outros candidatos potenciais aos cargos de governo, por meio de empréstimos, empregos, contratos ou prestação de serviços, “ou usar sua autoridade para criar regras que privilegiem grupos favorecidos, restringindo a capacidade operacional das forças do mercado”.

A busca de privilégios, que Evans (2008, p. 56) chamava de “corrupção”, sempre foi uma faceta conhecida da forma de operação dos Estados do Terceiro Mundo. Não há dúvida que alguns “Estados consomem os recursos que extraem, encorajam os atores privados a trocarem suas atividades produtivas pelo rentismo improdutivo e falham em prover os bens coletivos”.

A implementação prática das proposições políticas neoliberais, quando da liberalização, da privatização e outras políticas associadas a essas perspectivas, contou com os dirigentes governamentais que formaram o núcleo do “time de mudanças” que tornou possível as transformações (Ibid., p. 60).

Para a consolidação desses processos, a democracia procedimental (estrutura formal de legitimação do poder), presidiu ao processo de transformações políticas e institucionais, através do qual a burguesia modificou e, do seu próprio “ponto de vista racionalizou, a estrutura social e política que precedeu à sua ascensão: o método democrático foi à arma política dessa reconstrução” (SHUMPETER, 1984).

Nesta perspectiva, Schumpeter (1984) esclarece que, a mesma é um mecanismo para escolher e autorizar governos, por meio da existência de grupos que competem pela governança, associados em partidos políticos e escolhidos pelo

voto. O chamado governo pelo povo é uma ficção; o que existe, na verdade, é o governo aprovado pelo povo. “O povo como tal nunca pode realmente governar ou dirigir” (Ibid., p. 308-309). O autor assinala também que a função daqueles que votam é a de escolher homens que decidirão quais são os problemas políticos e como resolvê-los. Trata-se da participação “voltada à tomada de decisões de poder, por meio de representantes escolhidos pelo sistema eleitoral” (Ibid., p. 338), ou seja, “a livre competição pelo voto livre” (Ibid., p. 328).

Com esses argumentos, para Schumpeter (1984, p. 328) a democracia significa um “sistema institucional, para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor”. Diante disso, justifica a existência de um aparato governamental capaz de neutralizar as demandas da vontade política pela estabilização da “vontade geral” através do aparelho de Estado.

A partir dessa ideia, Wood (2006, p. 45) afirma que a própria democracia, no sentido literal de “governo do povo”, não possui, necessariamente, o mesmo significado para todos.

A sociedade precisa ter presente que o sistema capitalista apresenta, como esfera da liberdade, o descomprometimento do Estado com os interesses sociais em nome de um maior espaço que assume duas formas principais relacionadas: por um lado, a minimização para o público, e por outro, a ampliação para o setor privado, o que, de acordo com a autora,

[...] pode designar a própria multiplicidade contra as coerções do Estado e da economia capitalista; ou, o que é mais comum, ele pode englobar a “economia” numa esfera maior de instituições e relações não estatais. Nos dois casos, a ênfase está na pluralidade das relações e práticas sociais, entre as quais a economia capitalista é apenas uma entre muitas (WOOD, 2003, p. 208).

Tal situação se configura como específica do capitalismo, uma totalidade sistêmica dentro da qual se situam todas as outras instituições. A democracia no capitalismo é aparente ou formal, uma unidade contraditória de avanço e recuo, tanto um aperfeiçoamento quanto uma desvalorização da democracia (WOOD, 2003).

Com Wood (2003) entende-se, portanto, que a democracia existente no capitalismo, impede a emancipação humana. Este impedimento se deve ao fato de a democracia dar a “propriedade privada e a seus donos o poder de comando sobre

as pessoas e sua vida diária, um poder reforçado pelo Estado, mas isento de responsabilidade, que teria feito à inveja de muitos Estados tirânicos do passado” (Ibid., p. 218).

A democracia pode expressar um sentido social mais profundo, relacionado com “demos”, o povo comum, desafiando a dominação de classe dos ricos. Esse “governo do povo” ou poder popular é o que a palavra democracia significa literalmente (Ibid., p. 45). Essa autora esclarece a expressão - poder popular – ao afirmar que:

Não existe um capitalismo governado pelo poder popular no qual o desejo das pessoas seja privilegiado aos dos imperativos do ganho e da acumulação e, no qual, os requisitos da maximização do benefício não ditem as condições mais básicas de vida. O capitalismo é estruturalmente antitético em relação à democracia, em princípio, pela razão histórica mais óbvia: não existiu nunca uma sociedade capitalista na qual não tenha sido atribuído à riqueza um acesso privilegiado ao poder. Capitalismo e democracia são incompatíveis também e, principalmente, porque a existência do capitalismo depende da sujeição aos ditames da acumulação capitalista e às “leis” do mercado das condições de vida mais básicas e dos requisitos de reprodução social mais elementar, e esta é uma condição irredutível. Isso significa que o capitalismo necessariamente situa cada vez mais esferas da vida cotidiana fora do parâmetro no qual a democracia deve prestar conta de seus atos e assumir responsabilidades. Toda prática humana que possa ser convertida em mercadoria deixa de ser acessível ao poder democrático. Isso quer dizer que a democratização deve ir da mão da “desmercantilização”. Mas desmercantilização por definição significa o final do capitalismo (Ibid., p. 3).

Dessa forma, sua definição de democracia se aproxima da ideia de “desafio ao governo de classe”, evidenciando que “o capitalismo é, na essência, incompatível com a democracia” (Ibid., p. 3). Sobre isso, a autora justifica: “[...] é incompatível não apenas no caráter óbvio de que o capitalismo representa o governo de classe pelo capital, mas também no sentido de que o capitalismo limita o poder do „povo‟ entendido no estrito significado político” (Ibid., p. 3).