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A NATUREZA E A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO DOCENTE

2.2 A natureza do trabalho docente

A partir da discussão realizada sobre o trabalho entendido como protoforma da atividade humana, cabe problematizarmos a natureza do trabalho docente. Destaca-se que na forma social capitalista, a concepção de trabalho se “ramifica” em conceitos mais específicos e complexos – dentre eles, trabalho concreto e abstrato (tratados anteriormente), material e imaterial, produtivo e improdutivo, manual e intelectual, entre outros – acerca dos quais não há unanimidade entre os autores que discutem esse assunto no âmbito do marxismo. Constituem categorias de difícil compreensão, pois se relacionam dialeticamente. Não se pretende aqui estudar cada uma delas, mas apontar aspectos relevantes para tratar a questão do trabalho docente.

Marx (2013) define a conceituação de trabalho produtivo, afirmando que,

A produção capitalista não é apenas produção de mercadorias, ela é essencialmente produção de mais-valia. O operário não produz para si, mas para o capital. De modo que já não basta que ele, pura e simplesmente, produza. Ele tem de produzir mais-valia. Só é produtivo o operário que produz mais-valia para o capitalista ou que serve para a autovalorização do capital (Ibid., p. 158).

Marx analisa o trabalho produtivo sem fazer diferenciação entre trabalho intelectual e material, pois, do ponto de vista de sua análise, esta diferenciação entre a natureza do conteúdo e o resultado concreto/objetivo do trabalho em nada altera a relação social estabelecida,

Se for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produção material, então um mestre-escola é um trabalhador produtivo se ele não apenas trabalha as cabeças das crianças, mas extenua a si mesmo para enriquecer

o empresário. O fato de que este último tenha investido seu capital numa fábrica de ensinar, em vez de numa fábrica de salsichas, não altera nada na relação (MARX, 1996a, p. 138).

Concorda-se com Gramsci (1988, p. 7) que não “existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens”, embora determinadas funções sociais incidam graus diferentes de elaboração intelectual-cerebral e esforço muscular-nervoso.

Tumolo e Fontana (2008) realizaram um estudo sobre trabalho docente e capitalismo na produção acadêmica da década de 90, identificando quatro tipos de trabalho docente:

1º) O professor que ensina o seu filho a ler, ou seja, a docência como um processo simples de trabalho. Trata-se da produção de um valor de uso e não de uma mercadoria e, por isso, não há produção de valor e nem de mais-valia, o que caracteriza este professor como um trabalhador não produtivo.

2º) Um professor que ministra aulas particulares, ou seja, o professor que produz o ensino como um valor de troca, como uma mercadoria vendida. Embora produza valor, não produz mais-valia, uma vez que, sendo proprietário de meios de produção, não necessita vender sua força de trabalho e, por isso, não estabelece uma relação assalariada, constituindo-se também como um trabalhador não produtivo.

3º) O professor de escola pública, que, embora venda sua força de trabalho ao Estado, produz um valor de uso e não um valor de troca e, portanto, não produz valor e nem mais-valia. Como não estabelece a relação especificamente capitalista, não pode ser considerado um trabalhador produtivo.

4º) O professor que trabalha na rede privada de ensino, ou seja, o professor que vende sua força de trabalho ao proprietário da escola, produz uma mercadoria – ensino –, que pertence ao proprietário e que, ao fazê-lo, produz mais-valia e, consequentemente, capital, o que o caracteriza como um trabalhador produtivo.

Nesta lógica, se o trabalho do professor gera mais-valia, é considerado um trabalhador produtivo, porque é essa a noção de produtividade do trabalho que norteia o capital, mas, se este professor é um trabalhador assalariado cuja atividade é consumida apenas como valor de uso, como é o caso dos professores que se encontram a serviço do Estado, seu trabalho não seria produtivo, pois não produziria mais-valia.

É importante destacar, que mais de um tipo de trabalho dos citados acima podem ser realizados pelo mesmo professor, que pode ter sua carga de trabalho elevada para compensar a defasagem salarial, trabalhando ora em um tipo de instituição, ora em outra. A grande maioria dos professores é assalariada da rede pública de ensino, com contratações do tipo: Estatutária, feita por concurso público (o trabalhador torna-se efetivo no cargo se conseguir ser aprovado no estágio probatório, após três anos de trabalho); Celetista (regida pelas leis trabalhistas da CLT); e Temporária (o trabalhador supre temporariamente a falta de professores e não possui nenhum tipo de direito trabalhista).

Lessa (2007), ao tratar do conteúdo material da riqueza social, diz que a forma de riqueza da sociedade burguesa, o capital, possui uma peculiaridade fundamental: “possibilita à classe dominante se enriquecer tanto na exploração do trabalho como intercâmbio orgânico com a natureza, como também em outras atividades, como a do professor, que não realiza qualquer transformação da natureza” (Ibid., p. 164). Este fato faz com que uma análise mais superficial apenas consiga captar a identidade dos trabalhadores que, assalariados, produzem mais- valia para seus patrões. Esta verdade parcial corresponde ao fato de que, para o capitalista individual, pouca diferença faz se a sua mais-valia teve origem na "fábrica de ensinar" ou na "fábrica de salsichas".

Todavia, para esse autor, na vida cotidiana há uma diferença fundamental entre a produção de mais-valia na "fábrica de salsichas" e na "fábrica de ensinar". Em ambos os casos o que é produzido é mais-valia. No entanto, as funções sociais que são atendidas em cada caso fazem com que haja uma distinção entre o que foi produzido para que o capitalista extraísse mais-valia do trabalho abstrato do professor, e o que foi produzido para que a mais-valia fosse extraída do trabalho do operário da "fábrica de salsichas". Se os trabalhadores assalariados, funcionários públicos, como os professores, paralisam suas atividades, a ameaça à reprodução da sociedade é menos imediata do que quando os operários de uma refinaria de petróleo fazem o mesmo.

No caso do „mestre-escola‟, ao término da aula [...] não resta nenhum novo „conteúdo material‟ para permitir que um novo quantum de riqueza seja acrescido ao montante do „capital social global‟ já existente. Exatamente o contrário ocorre com o trabalho proletário. Ao seu final resulta em um novo quantum de capital que se acumula em uma „coisa‟ (Ding), „meios de trabalho‟ ou „meios de subsistência‟ [...] (LESSA, 2007, p. 169).

Concorda-se com a análise que Prieb e Carcanholo (2011, p. 159) realizam sobre trabalho produtivo ao referirem-se aos trabalhadores da educação pública gratuita como profissionais que “produzem valor e excedente-valor que não são pagos pelos que imediatamente usufruem que, se são trabalhadores, têm o valor da sua força de trabalho reposto ou ampliado”.

Para esses autores:

Não só o excedente, mas o próprio valor produzido pelos funcionários públicos reaparecerá nas mãos dos capitais que contratam os trabalhadores sem que lhes custe nada (salvo quando pagam impostos correspondentes). Se esses trabalhadores são produtivos, aquele valor e aquele excedente se transformam em mais lucros para o capital global. A atividade dos mencionados profissionais funcionários públicos é, então, duplamente produtiva; não só o excedente que produzem, mas todo o valor reaparece como lucro do capital. [...] Isso significa que o que interessa, no capitalismo concreto, não é somente a produção de mais-valia, mas ela e a do resto do excedente-valor apropriado pelo capital. Com isso, a categoria de trabalho produtivo se amplia. Não interessa tampouco, para a determinação de trabalho produtivo, o destino do produto desse trabalho: se consumo produtivo, improdutivo ou suntuário (Ibid., p. 159).

Para Braverman (2011) a educação tem forte impacto econômico imediato, não apenas o dilatamento do limite de escolaridade limita o aumento do desemprego reconhecido, como também fornece emprego para uma considerável massa de trabalhadores. Além desse fator, a educação tornou-se uma área imensamente lucrativa de acumulação do capital para a indústria de construção, para os fornecedores de todos os tipos, e para uma multidão de empresas subsidiárias.

Pode-se recorrer também à outra maneira de compreender o trabalho, a partir da concepção de “superexploração” da força de trabalho, desenvolvida por Marini (2010) para entender a especificidade do capitalismo dependente das sociedades periféricas (relação centro-periferia) como um desdobramento próprio da lógica de funcionamento da economia mundial. Refere-se a métodos de aplicação capitalistas que atuam de maneira conjunta para aumentar o volume total de lucro queobtém do trabalho, pela via da superexploração da força de trabalho.

Marini (2010, p. 125) salienta que, além da necessária observância dos mecanismos de “intensificação do trabalho”, “prolongação da jornada de trabalho” e “expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho”,

[...] a característica essencial está dada pelo fato de que se nega ao trabalhador as condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho: nos dois primeiros caos, porque ele é obrigado a um dispêndio

de força de trabalho superior ao que deveria proporcionar normalmente, provocando-se assim seu esgotamento prematuro; no último porque se retira dele inclusive a possibilidade de consumir o estritamente indispensável para conservar sua força de trabalho em estado normal (Ibid., p. 126).

Para Carcanholo e Sabadini (2011, p. 141), essa ação faz referência a velhas práticas, como a diminuição dos salários reais e a remuneração abaixo do mínimo necessário à subsistência do trabalhador. “O próprio salário mínimo pago a boa parte dos trabalhadores de nossos países revela que o montante recebido por eles não é suficiente para proporcionar as condições adequadas de reprodução de sua força de trabalho”. Em síntese:

A superexploração justamente consiste nisso: em um pagamento de salário insuficiente para que o trabalhador ou trabalhadora e sua família consigam reproduzir adequadamente a sua força de trabalho. Isso significa que a superexploração consiste no pagamento aos trabalhadores de um salário inferior ao valor da sua força de trabalho (Ibid., p. 141).

Assim, numa sociedade em que o trabalhador, para suprir suas necessidades de primeira ordem, precisa se submeter a um trabalho abstrato cada vez mais intenso, sua vida social é degradada e precarizada. Todos os professores, independente da relação de produção que estabeleçam com o capital, ao realizarem seu trabalho concreto – o ensino –, estão passando por novas exigências no cotidiano escolar, provocadas pela reestruturação produtiva.

CAPÍTULO 3