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1.3 O CAMPO LITERÁRIO

1.4.2 A relação lugar-identidade nos textos de Jean Rhys

Jean Rhys confessa, na sua autobiografia, que durante toda a sua vida buscou pertencer a algum lugar, mas que no fundo sempre soube que seria uma estrangeira onde quer que vivesse: “Eu nunca faria parte de nada. Eu nunca realmente pertenceria a lugar algum, e sabia disso, e toda a minha vida seria a mesma, tentando pertencer, e falhando. [...] Sou uma estranha e sempre serei”. (RHYS, 1981, p. 124, tradução nossa16)17

No conto “I used to live here once” [“Eu já morei aqui antes”] (RHYS, 1987, pp. 387– 388), a protagonista decide visitar, depois de um longo tempo de ausência, o local onde havia morado na infância, e com o qual possuía uma forte ligação afetiva. No entanto, para sua surpresa, ao tentar falar com as crianças que brincavam no local, então moradores da sua antiga casa, ela descobre que é invisível. A imagem de um fantasma visitando um lugar que não é mais seu é bastante significativa para a obra de Rhys, que coloca em primeiro plano a experiência subjetiva de desterritorialização e desorientação espacial diante da precariedade de uma identidade que não pode conferir uma relação de pertencimento ao lugar.

                                                                                                               

16 Todas as traduções doravante citadas foram feitas por mim. Caso contrário, a referência do texto em português

será diferente daquela do texto em inglês citado em notas de rodapé. Isso acontece por exemplo nas citações da edição brasileira do romance Vasto Mar de Sargaços, único texto da escritora traduzido no Brasil.

17 “I would never be part of anything. I would never really belong anywhere, and I knew it, and all my life would

Desse modo, a busca em vão, configurada como uma errância, por um lugar de pertencimento é comum a todas as protagonistas dos romances da escritora. No entanto, as viagens das protagonistas são viagens na escuridão, ou que acabam na escuridão, como sugerem os títulos dos romances Voyage in the Dark [Viagem na escuridão] (RHYS, 2000) e Good morning, Midnight [Bom dia, Meia-noite] (RHYS, 2000). A escuridão pode ser uma metáfora para o desespero, a solidão, a incomunicabilidade, a loucura, ou para a morte física, simbólica ou espiritual. A experiência desorientadora vivida por essas personagens está intimamente associada à condição de exílio, ao sentimento de alienação e não-pertencimento. No lamento da heroína de Good Morning, Midnight (RHYS, 2000), ecoam as vozes das outras protagonistas dos romances metropolitanos da escritora: “Eu não tenho dignidade, nem nome, nem rosto, nem país. Eu não pertenço a lugar nenhum.” (RHYS, 2000, p. 38, tradução nossa)18 A condição de exílio também marca a personagem de Vasto Mar de Sargaços: “Então muitas vezes me perguntei quem eu sou e onde é o meu país e a que lugar eu pertenço e por que eu nasci” (RHYS, 2012, p. 99)19.

A questão do lugar e localização é fundamental em todos os textos de Rhys. Isso acontece precisamente pela dificuldade encontrada pelas personagens em equacionar a relação entre lugar e identidade. Como afirmam Ashcroft, Griffiths e Tiffin,

Uma das principais características das literaturas pós-coloniais é a preocupação com lugar e deslocamento. É aqui que a crise pós-colonial especial de identidade passa a existir; a preocupação com o desenvolvimento ou a recuperação de uma relação de identificação eficaz entre o eu e o lugar (ASHCROFT et al., 2002, p. 8, tradução nossa)20.

A preocupação com lugar e deslocamento está em primeiro plano na ficção de Rhys porque é negado às protagonistas um lugar de pertencimento. A precariedade do pertencimento é uma questão bastante explorada nos seus textos, e esse aspecto está associado principalmente à falta de uma conexão nacional sólida e clara para as personagens. Essa falta é explorada pelo escritor trinidadiano Sam Selvon em An island is a world (1993), publicado em 1955. O personagem Foster denuncia a desvantagem da falta de afiliação a uma nacionalidade definida: “Você não pode pertencer ao mundo, porque o mundo não vai acolher

                                                                                                               

18 “I have no pride, no name, no face, no country. I don’t belong anywhere.” (RHYS, 2000, p. 38)

19 “So between you I often wonder who I am and where is my country and where do I belong and why was I

ever born at all.” (RHYS, 1997, p. 64)

20 “A major feature of post-colonial literatures is the concern with place and displacement. It is here that the

special post-colonial crisis of identity comes into being; the concern with the development or recovery of an effective identifying relationship between self and place.” (ASHCROFT et al., 2002, p. 8)

você. O mundo é composto por diferentes nações, e você tem que pertencer a uma delas, e danem-se as outras.” (SELVON, 1993, p. 107, tradução nossa)21

Além da falta de uma identidade nacional definida, a questão do pertencimento está também em foco nos textos de Rhys, uma vez que é negado às protagonistas um lugar seguro para morar. Desse modo, a ausência de uma conexão mais duradoura é determinante para o estado emocional e psíquico das protagonistas e também para a configuração de espaço e lugar nesses textos. Se a paisagem é usada constantemente para refletir a condição emocional das personagens principais dos romances de Rhys, os quartos e casas são os mais aterrorizadores. Nesse ponto, é curioso notar que os espaços privados da ficção de Rhys são uma antítese dos espaços domésticos acolhedores de A poética do espaço de Bachelard (1969), associados ao aconchego, satisfação emocional e segurança. Para Bachelard, a casa é o espaço fundamental da imaginação humana, “a casa protege o sonhador, a casa permite que ele sonhe em paz (BACHELARD, 1969, p. 115-116, tradução nossa)22. Bachelard cunhou o termo topoanálise, que traz na sua raiz a relação que ele estabelece com a psicanálise, para abordar os espaços interiores da mente e da imaginação. Entretanto, se os espaços domésticos da ficção de Rhys são, assim como descrito por Bachelard, carregados de qualidades interiores, certamente os efeitos dessas qualidades nas protagonistas não são reconfortantes, mas “inquietantes”. Eles encontram ressonância nas elaborações de Freud sobre o termo alemão unheimlich (FREUD, 2010), e no termo inglês unhomely, desenvolvido por Bhabha a partir de Freud (BHABHA, 1998), conforme será explorado neste trabalho.

A posição marginal e a identidade cultural indefinida das personagens de Rhys estão registradas através da sua experiência espacial errática. A experiência subjetiva de alienação, bem como a existência descentrada das personagens de Rhys pode ser mapeada através da investigação de uma variedade de espaços, sejam eles espaços materiais – coloniais, metropolitanos – ou metafóricos. É fundamental considerar, nas narrativas ficcionais da escritora, a representação ficcional do movimento entre diversos espaços, como o espaço pessoal da memória, a experiência feminina de espaços nos grandes centros metropolitanos, tais como a rua, bares, quartos de hotel, ou ainda o espaço em que se desenha a história do imperialismo, o Caribe e as metrópoles coloniais. Ao embaralharem espaços materiais e metafóricos, essas configurações espaciais e de lugar constroem cartografias alternativas que desafiam a ordem do discurso racional e cientificista de orientação eurocêntrica.

                                                                                                               

21 “You can’t belong to the world, because the world won’t have you. The world is made up of different nations,

and you´ve got to belong to one of them, and to hell with the others.” (SELVON, 1993, p. 107)

Jean Rhys nasceu e viveu a sua infância e adolescência na Dominica, então colônia do Reino Unido. Seu senso de pertencimento é marcado pela situação ambígua vivida pelo sujeito colonial no contexto imperial, cuja terra natal é considerada um lugar periférico, parte acessória ou complementar do império. Rhys é filha de pai galês e mãe crioula23, e como crioula branca também ocupa uma posição marginal no contexto da história e da sociedade caribenhas. Desta forma, a relação da escritora com a sua terra natal é problemática, tanto pela sua identidade como crioula branca, quanto pela sua educação e herança cultural e linguística inglesas, que a impedem de conceber o Caribe como sua “casa”.

Os questionamentos das personagens de Rhys sobre sua nacionalidade, identidade pessoal e até sobre sua existência enquanto indivíduo encontram ressonância na pergunta lançada por Stuart Hall (2003) em “Pensando a Diáspora: reflexões sobre a terra no exterior”:

Como podemos conceber ou imaginar a identidade, a diferença e o pertencimento, após a diáspora? Já que “a identidade cultural” carrega consigo tantos traços de unidade essencial, unicidade primordial, indivisibilidade e mesmice, como devemos “pensar” as identidades inscritas nas relações de poder, construídas pela diferença, e disjuntura? (HALL, 2003, p. 28)

Para Hall, o “hibridismo” e as “configurações sincretizadas da identidade cultural caribenha” não podem ser definidos por uma “concepção binária de diferença” (HALL, 2003, p. 33). Radicada na Europa aos dezessete, onde viveu o resto da sua vida, a identidade cultural caribenha de Rhys ilustra as fragmentações e a dinâmica que constituem a identidade em um contexto pós-colonial.24 Esse aspecto está refletido na complexa identidade cultural de suas protagonistas, bem como na centralidade de questões como raça, nacionalidade, classe, gênero e experiências de exílio nos seus romances.

Em Vasto Mar de Sargaços25 a protagonista Antoinette/Bertha tem a impressão de que o navio em que viajou do Caribe rumo à Inglaterra mudou de curso e jamais chegou ao seu destino final (cf. RHYS, 2012, p. 179). A metáfora de um navio que perdeu o rumo deixando os tripulantes à deriva é ressonante na ficção rhysiana, uma vez que evidencia a errância das                                                                                                                

23 “Crioulo/crioula” é um termo usado nas Índias Ocidentais para se referir tanto aos descendentes de Africanos

quanto aos descendentes de Europeus que nasceram no Caribe e se naturalizaram caribenhos. “Crioulo/crioula” é um substantivo que se refere tanto às pessoas, quanto à língua, e é também um adjetivo. Rhys e sua mãe eram crioulas, mas seu pai não. Os descendentes de escravos são crioulos, mas os povos indígenas remanescentes, arauaques e caribes, não. Os primeiros escritos de Rhys sobre as Ilhas Ocidentais foram a princípio intitulados “Creole”. O título “Wide Sargasso Sea” foi retirado de uma canção criula (cf. SMITH, 1997, p. 134).

24 Vale ressaltar que a Dominica torna-se colônia quando o Reino Unido reassume o controle direto da ilha em

1896 (Rhys tinha 6 anos), e somente em 1978 (um ano antes da morte da escritora), torna-se independente, apesar de já ter se constituído como um Estado Livre Associado ao Reino Unido desde 1967. Neste trecho, estamos comparando a identidade cultural híbrida da escritora (e das protagonistas) à identidade caribenha em um contexto pós-colonial.

protagonistas, a sua impossibilidade de se acomodar a um lugar de pertencimento. Ademais, a metáfora alude à precariedade da identidade provisória e fluida das personagens diante de um mundo definido em termos de categorizações demarcadas e de essencialismos, conforme ressaltado por Hall no trecho acima. A maior questão dessas personagens pode, então, ser resumida pela pergunta feita por Antoinette em Vasto Mar de Sargaços, “O que eu estou fazendo neste lugar e quem sou eu?” (RHYS, 2012, p. 179)26, o que também revela a imbricação entre lugar e identidade, constantemente reiterada em toda a obra de Rhys.

A experiência subjetiva do exílio está constantemente em evidência na ficção rhysiana, seja através do exílio do sujeito colonial, feminino, ou ainda, o exílio determinado pela experiência de alienação num mundo comodificado, dominado pela cultura da mercadoria. Seguindo a tradição filosófica à qual pertence Adorno, Said destaca, entre as experiências de exílio, aquela que parte da consciência de que os indivíduos modernos vivem numa relação alienada no que se refere ao mundo dos objetos, em que “tudo o que dizemos ou pensamos, assim como todos os objetos que possuímos são em última análise, uma mera mercadoria” (SAID, 2001, p. 57 – 58). O exílio determinado pela predominância do mercado e de processos de comodificação será explorado no próximo capítulo, através da leitura de textos metropolitanos da escritora. De diversas maneiras, por diferentes focos, esse trabalho procura abordar as narrativas ficcionais de Jean Rhys como cartografias do exílio, dedicando particular atenção à questão geográfico-espacial e à representação ficcional do movimento entre diversos espaços, privilegiando as categorias espaciais e a complexa imbricação entre lugar, linguagem, identidade e história.