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1.3 O CAMPO LITERÁRIO

1.4.1 A “guinada espacial”

“Espacialidade” (“spatiality”) tornou-se um conceito chave para os estudos literários e culturalistas. Apesar de “espacialidade”, assim como “temporalidade”, ser um termo bastante amplo e inclusivo, é importante situá-lo, destacando algumas noções e teorias que orientaram a abordagem da espacialidade realizada neste trabalho.

No século XIX predominaram os discursos sobre o tempo, a história e o desenvolvimento teleológico, e a estética modernista coroou a temporalidade como a dimensão mais importante, como atesta a influente obra de Proust Em busca do tempo perdido. Entretanto o “espaço” ganhou terreno depois da Segunda Guerra, quando passou a predominar uma nova sensibilidade estética, bastante influenciada pelas teorias críticas pós- estruturalistas, e que impulsionou o que se convencionou chamar de “spatial turn”(“guinada espacial”). Como declara Foucault no ensaio “Outros espaços”, “a época atual [é] a época do espaço.” (FOUCAULT, 1984, p. 411) A “guinada espacial” é um processo, que ocorre após a década de 1960, de convergência de linguagens e teorias sobre a espacialidade, que tem como principal efeito a ênfase nas relações de poder implícitas na paisagem, concebida tradicionalmente como espaço abstrato. Nas ciências humanas e sociais este processo deve muito da sua força à ideia dominante de que o espaço não é apenas um cenário ou um pano de fundo no qual os eventos se desenrolam, um receptáculo vazio a ser preenchido com ações e movimentos. O espaço passa a ser concebido como produto e produtivo, ou seja, um meio fluido através do qual as forças sociais se movem. A “guinada espacial” foi provocada pela teoria francesa, principalmente através do trabalho de teóricos como Foucault, Lefebvre e De Certeau, que formularam teorias sobre a espacialidade com a atenção voltada para questões que envolviam o capitalismo, a vigilância, o poder. Esta prática, até antes da década de 1960, havia ficado restrita ao domínio da história social, e através do trabalho desses teóricos passou a fazer parte da história da literatura e das artes. Cosgrove, Harvey, Jameson e Soja destacam- se como críticos que dedicaram especial atenção e desempenharam um papel importante para promover a “guinada espacial”. Eles contribuíram para expandir e atualizar as teorias pioneiras acerca da espacialidade de Lefebvre. (cf. TALLY, 2013, p. 11 – 43; p. 159)

Na área da Geografia, a “guinada espacial” está refletida no surgimento de novas teorias com foco na relação entre espaço e poder, como atestam, por exemplo, aquelas formuladas por Doreen Massey, ganhadora do prêmio Vautrin Lud, o “Nobel” da Geografia, e

também pelo brasileiro Milton Santos. Esses impulsos espaciais foram revigorados e ganharam novas facetas a partir do avanço das tecnologias da comunicação e da informação, e de novos investimentos na história urbana, que passou a ser estudada com interesse renovado nos microcosmos da vida cotidiana e nos macrocosmos dos fluxos globais.

Em sintonia com os termos de Jameson, que identifica uma nova espacialidade implícita no “pós-moderno” (cf. JAMESON, 1997), é possível afirmar que a “guinada espacial” é um produto e uma resposta à condição “pós-moderna”. Jameson argumenta que a ênfase que antes era dada às categorias de tempo cede lugar na contemporaneidade às categorias de espaço, o que, segundo ele, marca uma das diferenças entre modernismo e pós- modernismo: “nossa vida cotidiana, nossas experiências psíquicas, nossas linguagens culturais são hoje dominadas pelas categorias de espaço e não pelas de tempo, como o eram no período anterior do alto modernismo” (JAMESON, 1997, p. 43). Este argumento conduz a uma reflexão sobre as narrativas ficcionais de Rhys, que privilegiam o emprego de categorias espaciais em detrimento de categorias temporais. Ao fazê-lo, esses textos identificam-se também com aquilo que Foucault, em consonância com o pensamento de Jameson, denomina modos espaciais de pensamento, que privilegiam o simultâneo, a justaposição, a conjunção do próximo e longínquo, a dispersão. (cf. FOUCAULT, 1984, p. 411) A sintonia com o modo espacial de pensamento permite ao leitor trafegar de maneira mais suave pelos territórios fragmentados da ficção de Rhys.

Jean Rhys notoriamente privilegia as categorias espaciais em detrimento das categorias temporais nos seus textos14. Isso significa dizer que a temporalidade nos textos de Rhys não é linear, nem isolada do espacial. A integração tempo-espacial nos seus textos encontra eco nas elaborações de Massey (2013) acerca do conceito de “tempo-espaço”, e também na ideia de uma unidade espaço-temporal explorada por Harvey e Santos, conforme veremos adiante. A respeito da integração tempo-espacial também ganha relevância neste trabalho o tratamento dado por Bhabha à espacialidade em O local da cultura. Em diversos momentos em “DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna” (BHABHA, 1998), Bhabha refere-se à palavra “temporalidade”, como em “temporalidade do entre-lugar” (BHABHA, 1998, p. 209), “temporalidade disjuntiva da nação” que permite “representar aqueles significados e práticas residuais e emergentes [localizados] nas margens da experiência contemporânea da sociedade” (BHABHA, 1998, p. 210), ou ainda “uma temporalidade de representação que se move entre formações culturais e processos sociais                                                                                                                

14 Nesse sentido, nos termos de Jameson (1997), a ficção de Rhys assume características da ficção “pós-

sem uma lógica causal centrada” (BHABHA, 1998, p. 201). No entanto, é o espaço que integra essa temporalidade que está em foco. Esse aspecto é endossado pelo título do seu volume de ensaios, O local da cultura, que chama a atenção para a questão espacial.

Bakhtin (2003) refere-se à conectividade intrínseca às relações espaço-temporais através do conceito de cronótopo, termo composto pelas palavras gregas cronos (tempo) e topos (lugar). Bakhtin utiliza-se do cronótopo como um operador de leitura da assimilação pela literatura do tempo e do espaço históricos. Em “O tempo e o espaço nas obras de Goethe” (BAKHTIN, 2003, p. 225 – 258), Bakhtin desenvolve uma reflexão sobre “a natureza cronotópica excepcional da visão e do pensamento de Goethe” (BAKHTIN, 2003, p. 245). A ideia de unidade “tempo-espaço” é elaborada a partir da abordagem da visão do tempo e do espaço no mundo de Goethe, que é classificado pelo escritor e teórico russo como um “cronótopo autêntico”:

Por isso tudo é intensivo no mundo de Goethe: nele não há lugares mortos, imóveis, paralisados, não existe fundo imutável, não existe decoração nem ambiente que não participe da ação e da formação (nos acontecimentos). Por outro lado, em todos os seus momentos essenciais esse tempo está localizado em um espaço concreto, marcado nele; no mundo de Goethe não há acontecimentos, enredos, motivos temporais que sejam indiferentes a um determinado lugar no espaço da realização, que possam realizar-se em toda parte e em lugar algum (os “eternos” enredos e motivos). Tudo nesse mundo é tempo-espaço, cronótopo autêntico. (BAKHTIN, 2003, p. 245, grifo do autor)

Entretanto, a abordagem de Bakhtin reforça a crença em estruturas transparentes e relativamente constantes do espaço e tempo históricos, o que não é condizente com o tratamento dado à espacialidade nesta pesquisa, apesar de Bakhtin ser uma referência fundamental, como atesta a relevância das suas elaborações acerca do dialogismo, polifonia e heteroglossia neste trabalho. Desse modo, o conceito de cronótopo não foi utilizado como operador de leitura para fins da abordagem da espacialidade na ficção de Rhys. Segundo Bakhtin, o espaço traz aquilo que ele denomina “os visíveis indícios complexos do tempo histórico” (BAKHTIN, 2003, p. 225), que contrasta com a opacidade que caracteriza os espaços da memória histórica recalcada dos sujeitos subalternos que protagonizam as narrativas ficcionais da escritora. A afirmação de que “o vestígio autêntico, o sinal da história é humano e necessário, nele o espaço e o tempo estão ajustados num bloco indissolúvel” (BAKHTIN, 2003, p. 242) também é problemática, pois a natureza opaca e densa do espaço caribenho rhysiano e também dos espaços irrequietos e não-mapeados da experiência feminina na sua ficção desafiam a imagem homogênea de um “bloco indissolúvel” em que tempo e espaço estão ajustados. De forma análoga, a ilegibilidade do Caribe ficcional e dos

espaços subalternos explorados por Rhys contestam as ideias de visibilidade e uniformidade sugeridas por Bakhtin ao descrever “a capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no todo espacial do mundo e [...] perceber o [...] espaço não como um fundo imóvel [...] mas como um todo em formação, como acontecimento” (BAKHTIN, 2003, p. 225). O espaço palimpséstico do Caribe de Rhys, que esconde por baixo da camada visível a dimensão de um passado histórico condenado ao esquecimento, não encontra eco na descrição feita por Bakhtin em relação à “visão concreta integral de Goethe”, em que “o espaço terrestre e a história humana são inseparáveis entre si [...] o tempo histórico tão denso e materializado e o espaço tão humanamente compreendido e intensivo” (BAKHTIN, 2003, p. 242). Finalmente, a afirmação de Bakhtin de que a capacidade de ler os indícios do curso do tempo no todo espacial “[começa] pela natureza e [termina] pelas regras e ideias humanas (até conceitos abstratos)”, só encontra eco no espaço rizomático e polifônico da ficção de Rhys se a imbricação entre espaço e linguagem, aludida acima por Bakhtin, for capaz de desafiar qualquer noção de estabilidade que as referidas regras, ideias humanas e conceitos abstratos possam sugerir.

A declaração da protagonista de Vasto Mar de Sargaços de que “O tempo não significa nada” (RHYS, 2012, p. 183) pode ser lida como uma crítica ao tratamento dado, no século XIX, aos discursos sobre o tempo, a história e o desenvolvimento teleológico, e que exerceu uma influência determinante na estética modernista. O que vale nos textos de Rhys é o tempo-espaço, ou ainda o tempo da poesia, conforme simbolizado nesta passagem de Vasto Mar de Sargaços pelo vestido vermelho, que, ao contrário do tempo que passou, perdido, “tem um significado” (RHYS, 2012, p. 183) conferido pela memória da experiência vivida. Nesse sentido, ao privilegiarem as categorias espaciais como aquelas responsáveis pelo nexo das suas narrativas, as narrativas ficcionais de Rhys desafiam a linearidade temporal e as regras de causa e efeito que caracterizaram o historicismo do século XIX. Esse aspecto pode ser ilustrado por um dos flashbacks da protagonista de Bom dia, Meia-noite, que recorda os “acontecimentos” que marcaram o seu passado através da descrição minuciosa de uma sequência de quartos de aluguel que serviram de residência provisória para ela e seu antigo companheiro (RHYS, 2000, p. 118 – 120).

Diante dessa perspectiva, ganham ressonância neste trabalho as teorias e críticas acerca da espacialidade que permitem explorar as imbricações do espaço e lugar15 com questões associadas à linguagem, identidade, história e às relações de poder que constituem a experiência espacial.

                                                                                                               

15 A distinção entre espaço e lugar será feita no próximo capítulo através das elaborações de Michel de Certeau.

Em Humanismo e critica democrática, Edward Said revela que a sua prática humanista envolve um modo de pensar “em termos espaciais e geográficos” (SAID, 2007, p. 107). Citando Pierre Bourdieu, o escritor palestino destaca que “[é] possível romper com as aparências desorientadoras e com os erros inscritos no pensamento substancialista [...] sobre lugar apenas por meio de uma análise rigorosa das relações entre as estruturas do espaço social e aquelas do espaço físico” (BOURDIEU apud SAID, 2007, p. 108). Em Cultura e Imperialismo, Said descreve o objetivo do livro como “uma espécie de exame geográfico da experiência histórica” (SAID, 2011, p. 39). Sua afirmação de que “a luta pela geografia” (SAID, 2011, p. 40) envolve um conjunto de “ideias, formas, imagens e representações” encontra bastante eco neste trabalho.  

O pensamento de Michel Foucault sobre a espacialidade é condizente com o de Said e também bastante influente neste trabalho. Em “Sobre a geografia”, Foucault argumenta que “decifrar [o discurso] através de metáforas espaciais, estratégicas, permite perceber exatamente os pontos pelos quais os discursos se transformam em, através de e a partir das relações de poder.” (FOUCAULT, 1993, p. 158) Foucault critica a noção de que o espaço é o que está “morto, fixo, não dialético, imóvel”, enquanto o tempo é “rico, fecundo, vivo, dialético”. (FOUCAULT, 1993, P. 159) Além disso, o seu interesse é examinar como as metáforas espaciais e os espaços materiais interagem a partir de relações de poder. A sua concepção social e histórica do espaço fundamenta-se na consciência de que espaço é poder e de que o poder é localizável espacialmente, por isso declara que a geografia está no centro das suas preocupações. (FOUCAULT, 1993, p. 165) Foucault reforça essa visão em “O olho do poder”, no qual argumenta que “seria preciso fazer uma ‘história dos espaços’ – que seria ao mesmo tempo uma ‘história dos poderes’”, e lamenta que o “problema dos espaços” tenha durante tanto tempo sido desqualificado, esvaziado do seu sentido histórico e político. (FOUCAULT, 1993, p. 212)  

Ao lado do pensamento de Said e Foucault, constituíram instrumentos valiosos para o estudo da relação entre a condição de exílio e a experiência espacial errante nas narrativas ficcionais de Jean Rhys, as reflexões e os conceitos sobre espacialidade formulados por Lefebvre e De Certeau, que serão explorados principalmente nos primeiros capítulos. Além disso, compõem a base teórico-crítica deste trabalho as elaborações acerca da espacialidade desenvolvidas por escritores e pensadores pós-colonialistas, como Benítez-Rojo, Bhabha, Brathwaite, Carter, Glissant, Hall, Harris, Nailpaul, Spivak, Walcott, dentre outros. Esses escritores dedicam considerável atenção às consequências das conquistas geográficas pelo

imperialismo, colocando em primeiro plano as implicações políticas, ideológicas e históricas dos espaços.  

Ademais, o tratamento dado à espacialidade nesta pesquisa deve à contribuição da metodologia crítica e inventiva de Bakhtin, com sua ênfase nos aspectos sociais e ideológicos da interação verbal, e ao pensamento dos teóricos pós-estruturalistas, como Deleuze, Guattari e Derrida, cujas reflexões e operadores teóricos permitiram interrogar às narrativas ficcionais de Jean Rhys, cuja matéria é o espaço vivido, maneiras de mapear a experiência subjetiva das personagens e, desta forma, dar visibilidade a dimensões da experiência suprimidas na historiografia tradicional que contribuiu para situar o discurso patriarcal eurocêntrico como padrão de universalidade e normalidade.  

Finalmente, é relevante ressaltar que diante das muitas possibilidades de leitura do conceito de espaço e suas diversas acepções, uma preocupação constante neste trabalho foi deixar o texto literário falar e apontar as suas próprias concepções e funções da espacialidade através dos seus procedimentos de linguagem e das suas estratégias narrativas.