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Você imagina que a coisa cuidadosamente-podada, dada forma que é apresentada a você é a verdade. Isso é exatamente o que não é. A verdade é improvável, a verdade é fantástica; é naquilo que você acha que é um espelho distorcido que você vê a verdade. (RHYS, 2000, p. 63, tradução nossa)27

O caráter autobiográfico da obra de Rhys é destacado por Leonor Arfuch em O Espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea, no qual Arfuch cita a escritora: “Acho que escrevo sobre mim mesma porque é o único assunto que verdadeiramente                                                                                                                

26 “What am I doing in this place and who am I?” (RHYS, 1997, p. 117).

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You imagine that the carefully-pruned, shaped thing that is presented to you is truth. That is just what it isn’t. The truth is improbable, the truth is fantastic; it’s in what you think is a distorting mirror that you see the truth. (RHYS, 2000, p. 63)

conheço”. (RHYS apud ARFUCH, 2010, p. 236) Entretanto, apesar de ser declarado por Rhys o fato de que extraiu da própria vida o material para compor suas personagens, é certo que nenhuma delas é Jean Rhys. Como observa Savory, que é uma das maiores críticas e estudiosas da obra da escritora, suas personagens revelam uma honestidade, uma convincente verdade experiencial, mas Rhys é sobretudo uma escritora que nos ensina como usar a vida pessoal na ficção sem se afundar no atoleiro da subjetividade. (cf. SAVORY, 2009, p. 24) A insistência dos críticos e leitores em geral na “verdade” dos seus textos é desencorajada pela própria escritora numa entrevista dada ao jornal britânico The Guardian em 1968, na qual comenta que se um escritor tenta escrever a verdade, então aquilo que foi escrito permanece verdade para o resto da vida, ou seja, a ficção torna-se um texto datado (cf. SAVORY, 2009, p. 24). Conforme observa a protagonista de Bom dia, Meia-noite, “é naquilo que você acha que é um espelho distorcido que você vê a verdade” (RHYS, 2000, p. 63). De forma análoga, aquilo que você pensa que é a verdade é muitas vezes o reflexo de um espelho distorcido. Os textos de Rhys encontram no caleidoscópio uma metáfora mais fiel do que o espelho. Como um caleidoscópio que a cada movimento cria diversos e impressionantes efeitos visuais, o texto ficcional de Rhys, como toda boa ficção, é o espaço do devir, do “vivido e vivível”. (DELEUZE, 1997, p. 11) Arfuch (2010, p. 116) endossa essa ideia ao citar Barthes, “a narração não ‘representa’ nem imita nada, mas [...] sua função é ‘construir um espetáculo’”.

A noção de escrita como performance e espetáculo ganha novas nuances diante do papel fundamental do teatro e do carnaval caribenho na vida de Rhys. Como nos lembra outra estudiosa da obra de Rhys, Mary Lou Emery, Jean Rhys tinha um gosto pelo disfarce, e sentia-se vulnerável sem trajes femininos da moda, maquiagem, e pseudônimos28. Rhys chegou a estudar teatro na Academia de Artes Dramáticas de Londres (London’s Academy of Dramatic Arts), mas teve que abandonar o curso por questões financeiras quando seu pai, que era médico na Dominica, morre em 1908 um ano após sua chegada em Londres. A partir daí, teve que lutar pela própria sobrevivência, e escolheu trabalhar como corista numa companhia de teatro itinerante, contra a vontade da família, que queria que ela retornasse para a Dominica. O trabalho como corista ofereceu a Rhys não só a possibilidade do sustento financeiro e da permanência na Europa, mas proporcionou uma experiência feminina singular que foi determinante na sua vida e na sua arte.

                                                                                                               

28 Savory destaca que a questão em torno dos nomes reverbera no trabalho de Rhys. “Jean Rhys” é um

pseudônimo. Rhys foi batizada Ella Gwendoline Rees Williams (e era chamada na Dominica da sua infância e adolescência de Gwen Williams). Mais tarde, no palco, ficou conhecida como Ella, Vivien ou Emma Grey. Depois, na vida de casada, Ella Lenglet (Jean Lenglet foi o seu primeiro marido, com quem teve dois filhos) e Ella Hamer (Max Hamer foi seu terceiro marido, com quem se casou após a morte de Leslie Smith, seu segundo marido) (SAVORY, 2009, p. 1). Ver “Anexo A - Cronologia da vida e obra da escritora”.

Mary Lou Emery (1990, p. 3-5) faz uma análise instigante dos efeitos da experiência no teatro na vida e na ficção da escritora. Emery observa que a rua e o teatro tornam-se locais de performance em que predominam a ilusão e transformações radicais. No entanto, Emery ressalta que o teatro opera de formas contraditórias para as mulheres que nele trabalham. Como um entrelugar, ele está posicionado entre o que os vitorianos consideravam como o espaço doméstico feminino e o domínio público masculino, e também caracteriza-se por ser um espaço em que as tradicionais demarcações entre as esferas de classe social se dissolvem, uma vez que o teatro atraia mulheres de todas as classes, para as audiências, pelo poder de encantamento e sedução, e para o palco, pela promessa de trabalho, independência. Nesse sentido, Emery defende que o teatro institucionaliza a marginalidade feminina. Apesar de poder tornar legítimas e agradáveis as identidades fraturadas de mulheres socialmente deslocadas, o teatro não pode fornecer um status social nem respeitabilidade sexual.

Os efeitos da experiência do teatro na vida de Rhys são examinados por Emery em relação à ligação da escritora com o carnaval caribenho, presente em textos ficcionais e na sua autobiografia. Emery argumenta que, assim como os carnavais caribenhos da terra natal de Rhys, o teatro pode transformar as máscaras impostas aos “outros” marginalizados em mascarados potencialmente subversivos. Esse aspecto encontra ressonância nas narrativas ficcionais de Rhys, que levantam questionamentos a respeito da força política dos mascarados e das massas, seja através dos nativos caribenhos ou das mulheres no século XX. A tese defendida por Emery é a de que os romances de Rhys justapõem cenas de carnaval e alusões ao carnaval a metáforas do teatro europeu como uma maneira de desafiar a cultura colonizadora, como uma forma alternativa de comunidade e como uma visão de mundo frequentemente eclipsada por aquilo que Bakhtin chamaria de “festa oficial” [“official feast”] em Rabelais and his world29 (BAKHTIN, 1984).

A escritora hoje conhecida como Jean Rhys era muito reservada sobre sua vida privada e acreditava que os únicos aspectos que importavam sobre um escritor estavam em seu trabalho (cf. SAVORY, 2009, p. 1). Além disso, determinou que nenhuma biografia fosse escrita a seu respeito. Com o propósito de se salvaguardar e principalmente como medida de proteção em benefício de sua filha, a escritora fez questão de escrever uma autobiografia, intitulada Smile please (RHYS, 1981), numa idade já bastante avançada, que deixou inacabada e que foi publicada postumamente no ano da sua morte. A principal biografia da escritora é a de Carol Angier (1992), que também é uma grande estudiosa da sua obra. Angier                                                                                                                

29 Traduzido no Brasil como Cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François

recolheu muitos depoimentos de conhecidos de Rhys, e dessa forma forneceu dados valiosos que até então eram desconhecidos sobre a vida da escritora, principalmete sobre o hiato entre 1939 e 1966, os anos de silêncio em que Rhys foi considerada morta. Além disso, Angier desmistificou ideias e dados sobre a vida da escritora que não correspondiam à realidade. No entanto, apesar da sua importância, Angier é criticada justificadamente por cobrir lacunas da vida de Rhys usando a ficção da escritora.

O espaço biográfico é sem dúvida um terreno fértil que merece toda a atenção, ainda mais quando se trata de uma escritora como Jean Rhys, que deixou material abundante para a exploração deste espaço, que inclui, além da sua autobiografia, um volume de cartas, Letters 1931 – 1966 (RHYS, 1985), inúmeros manuscritos, cadernos e cartas, e materiais relacionados à revisão dos seus textos, todos mantidos na “Coleção Rhys” [“Rhys Collection”] na biblioteca McFarlin da Universidades de Tulsa, Oklahoma.

Neste trabalho, aspectos da biografia de Rhys são trazidos em alguns momentos, quando achei que poderiam contribuir de forma significativa para uma leitura mais abrangente e multifacetada dos seus textos ficcionais e mais nítida da abordagem que estava sendo feita.