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3. O ESPAÇO RIZOMÁTICO DE VASTO MAR DE SARGAÇOS

3.5. O ESPAÇO POLIFÔNICO DE VASTO MAR DE SARGAÇOS

trabalho. Ademais, a discussão a respeito da imbricação entre espaço e linguagem, enfatizada por Carter, é ampliada neste capítulo através do exame da estrutura narrativa e do espaço discursivo polifônico de Vasto Mar de Sargaços como um espaço marcado pela diversidade de pontos de vista e de vozes narrativas. A espacialização da história de Bertha só é possível através deste mosaico discursivo.  

3.5. O ESPAÇO POLIFÔNICO DE VASTO MAR DE SARGAÇOS  

Os caminhos trilhados pelo romance Vasto Mar de Sargaços, através do diálogo intertextual com Jane Eyre, descortinam espaços marginais inexplorados pelo romance vitoriano. Pode-se dizer que a narrativa ficcional de Vasto Mar de Sargaços revela a alteridade que foi suprimida no texto de Brontë, ao substituir o discurso autorizado da protagonista Jane Eyre por um mosaico de narrativas de sujeitos coloniais subalternos. Nesse sentido, Vasto Mar de Sargaços pode ser lido como o relato de uma comunidade marginal, sobrepujada e abandonada pela História, que faz emergir histórias submersas, recalcadas pela história vencedora dos colonizadores, que de diversas maneiras foi endossada pela visão colonial do romance canônico Jane Eyre. A intrusão de múltiplas vozes no romance de Rhys corroboram a noção de espaço rizomático, uma vez que permite uma leitura rizomática segundo a qual diferentes sentidos vêm à tona a partir das interações entre sujeitos e espaços.  

Além disso, o caráter polifônico de Vasto Mar de Sargaços é enfatizado por sua estrutura narrativa segmentada em três partes desiguais, e com duas vozes narrativas principais em primeira-pessoa. Vale a pena examinar a organização dessa estrutura, uma vez que ela é crucial para a problematização no romance da noção de “verdade”, através do confronto entre os discursos dissonantes dos protagonistas, assim como das vozes que se agregam a cada um deles.  

A primeira parte de Vasto Mar de Sargaços, que ocupa cerca de um-quarto da narrativa, é a versão de Antoinette. Nesta seção, o leitor se familiariza com as histórias sobre o lugar da infância da protagonista, a Fazenda Coulibri e, após o incêndio que destruiu a propriedade, os relatos sobre a sua vida no convento, onde estudou durante a adolescência como interna. A segunda e mais longa parte do romance é a história contada a partir do ponto de vista do marido inglês de Antoinette, não nomeado, mas identificado intertextualmente

como Edward Rochester201. No seu relato, o jovem inglês, recém-chegado no Caribe, conta a própria versão da sua história, assim como das histórias sobre o estranho mundo caribenho e a mulher com quem se casou, além de discorrer sobre as motivações que culminam com a sua decisão de roubar os bens, a identidade, e por fim o corpo e o espírito de Antoinette, ao encarcerá-la como louca. A última parte, e mais curta do romance, é narrada novamente por Antoinette/Bertha, já confinada e diagnosticada como louca, que fala a partir do seu quarto- prisão localizado no sótão da casa onde vive, supostamente há muito tempo202, na propriedade de Rochester na Inglaterra. A última narrativa de Antoinette/Bertha é entrecortada pelo relato de sua cuidadora e vigia, Grace Poole, também personagem do romance Jane Eyre.

Em termos espaciais, o jogo intertextual com o romance Jane Eyre evidencia o aspecto relacional do espaço em Vasto Mar de Sargaços, um romance que deve ser lido a partir da relação que estabelece com outro romance. A este respeito, é interessante observar que o próprio Mar de Sargaços é, antes de tudo, um espaço relacional, uma vez que só existe no romance em relação a dois mundos conflitantes, o mundo do inglês vitoriano Rochester e da caribenha Antoinette/Bertha. O caráter relacional do espaço no romance de Rhys é tensionado pela justaposição do tempo-espaço do romance Jane Eyre, orientado pela razão cartesiana e pelos valores vitorianos, ao tempo-espaço caribenho, constituído por dimensões imprevistas pelo romance vitoriano, como a dimensão dos sonhos, da magia, do silêncio203.  

O romance caribenho de Rhys conta a história de um relacionamento amoroso corrompido pelas diferenças culturais irreconciliáveis entre os mundos do casal protagonista. O espaço simbolicamente intransponível entre o mundo da caribenha Antoinette e o do seu marido inglês Rochester constitui uma questão central no romance, sinalizada desde o início pela imagem do Mar de Sargaços. A impossibilidade de entendimento entre a “crioula selvagem” e o “jovem aventureiro” da Inglaterra, que vai para o Caribe vender-se como noivo desejável em troca do dote, reflete a trajetória de duas culturas assimétricas, que estão ligadas por uma história de dominação que Rochester procura perpetuar na sua relação com a esposa.

                                                                                                               

201 O marido de Antoinette permanece inominado ao longo de todo o romance. Essa escolha pode ser

interpretada como uma resposta da escritora à renomeação e ao apagamento de tantos nomes através do processo de colonização.

202 Em Jane Eyre sabemos que Bertha está enclausurada há dez anos, através da fala de Rochester no tempo

presente da narrativa (BRONTË, 2014, p. 534). Em Vasto Mar de Sargaços o tempo cronológico é uma categoria propositadamente ignorada. Os marcadores temporais são substituídos por marcadores espaciais. Desta forma, o tempo cronológico é também substituído pelo tempo lógico da experiência.

203 A dimensão do silêncio refere-se à opacidade do Caribe de Rhys, que será abordado mais adiante. A história

(cf. De FREITAS, 2014, p. 164)204 A tensão gerada pelos conflitos sociais entre os mundos dos protagonistas é acompanhada pela presença da morte, seja a morte física, simbólica ou espiritual. A morte está presente desde o título do romance, uma vez que a própria topografia do Mar de Sargaços traz consigo a sua imagem, com seus navios abandonados, destroços de embarcações, restos de naufrágios, que boiam embaraçados na rede flutuante de algas de sargaço. Nesse sentido, é significativo que Vasto Mar de Sargaços seja uma história em que a morte prove ser mais forte que o amor205.

O espaço rizomático de Vasto Mar de Sargaços, concebido em termos de “entrelaçamentos e configurações de trajetórias múltiplas, de histórias múltiplas” (MASSEY, 2013, p. 212) é, portanto, também um espaço polarizado por culturas e visões de mundo que se chocam. Nessa perspectiva, pode-se dizer que os protagonistas Antoinette e Rochester representam a subjetividade dos sujeitos colonial e colonizador respectivamente. Na ficção rhysiana, que coloca em primeiro plano a associação entre lugar e identidade, os valores conflitantes dos protagonistas aparecem associados às questões históricas, sócio-políticas, e culturais, que definem a relação de poder estabelecida entre os seus lugares de origem, e que por sua vez se repete entre os protagonistas.

A(s) história(s) de Vasto Mar de Sargaços é (são) contada(s) através de diferentes perspectivas. À narrativa em primeira pessoa de cada um dos protagonistas, somam-se outros falantes, interlocutores e tópicos de fala. A palavra que abre o romance, “Dizem [...]” (RHYS, 2012, p. 11)206, assinala, logo no início, a polifonia que caracteriza o romance de Rhys. Ainda nas primeiras páginas, “na opinião [das damas jamaicanas]” (RHYS, 2012, p. 11)207, “Outro dia eu a ouvi conversando...”208, “Logo os negros começaram a dizer” (RHYS, 2012, p. 12)209 definem uma narrativa marcada pela presença de muitas vozes. Nesse mosaico narrativo, muitas vezes o sujeito da locução não é logo determinado, mas apenas inferido pelo contexto, como por exemplo no enunciado “ – Morar em Repouso do Nelson? Por nada neste mundo. É um lugar azarado” (RHYS, 2012, p. 11)210. O leitor sabe que esta fala não é da narradora, pois                                                                                                                

204 A discussão sobre choque cultural, relação de dominação e incomunicabilidade entre o casal protagonista foi

tema central do artigo “Tradução e diferença: o mais além da linguagem em Vasto Mar de Sargaços de Jean Rhys” (De FREITAS, 2014, p. 161 – 181)

205 Uma alusão à expressão “o amor é tão forte quanto a morte”, Cantares de Salomão, capítulo 8, versículo 6, do

livro Cânticos da Bíblia. O romance expõe também o fracasso das relações entre pais e filhos (Antoinette, Rochester e Daniel são crianças negligenciadas) pela falta de amor.

206 “They say […]” (RHYS, 1997, p. 5) 207 “they thought [...]” (RHYS, 1997, p. 5)

208 “Another day I heard her talking to [...]” (RHYS, 1997, p. 5) 209 “Soon the black people said [...]”(RHYS, 1997, p. 5)

ela aparece destacada num parágrafo e introduzida por um travessão, mas quem fala? Esses modos de enunciação se repetem ao longo da narrativa.

Os conceitos de “polifonia” e “dialogismo” de Mikhail Bakhtin (1997) permitem uma leitura produtiva da cartografia literária de Vasto Mar de Sargaços, uma vez que ressaltam o papel estruturante da interatividade verbal e da presença da alteridade para a construção do discurso. Esses conceitos permitem também uma leitura mais cuidadosa do caráter rizomático da espacialidade em Vasto Mar de Sargaços.

Bakhtin (1997) cunhou o termo “romance polifônico” no estudo realizado sobre a obra do escritor Fiodor Dostoiévski, para discorrer sobre a concomitância de discursos que se cruzavam na prosa literária do romancista, sem que um se sobrepusesse ao outro em termos de dominância. Bakhtin opõe o romance polifônico de Dostoievski ao romance monológico, aquele caracterizado pelo discurso preponderante de um autor-narrador. O conceito de polifonia bakhtiniano evidencia a relação dialógica entre as ideias e pontos de vistas dos diversos sujeitos do discurso. No trecho abaixo, em que o filósofo e pensador russo explora a noção de “dialogismo”, é relevante notar que Bakhtin denomina “heróis”, não apenas os protagonistas ou narradores, mas os diferentes participantes da locução, cujas vozes definem o campo dialógico do texto literário:

Em toda parte é o cruzamento, a consonância ou dissonância de réplicas do diálogo aberto com as réplicas do diálogo interior dos heróis. Em toda parte, um determinado conjunto de ideias, pensamentos e palavras passa por várias vozes imiscíveis, soando em cada uma de modo diferente. O objeto das aspirações do autor não é, em hipótese nenhuma, esse conjunto de idéias em si mesmo, como algo neutro e idêntico a si mesmo. Não, o objeto é precisamente a passagem do tema por muitas e diferentes vozes, a polifonia de princípio e, por assim dizer, irrevogável, e a dissonância do tema (BAKHTIN, 1997, p. 271, grifo do autor).

Em concordância com a definição bakhtiniana da noção de dialogismo no excerto acima, o caráter polifônico de Vasto Mar de Sargaços é evidenciado pela diferentes vozes, que entram em conflito, e que possuem seu próprio ponto de vista, sua validade e seu peso na narrativa. A objetividade de um mundo constituído enquanto unidade pela voz autoral desaparece diante da multiplicidade de consciências, cada uma com a sua própria concepção de mundo. Vasto Mar de Sargaços é um romance marcado pela oralidade e pela linguagem cotidiana de diversos falantes. Além disso, no romance caribenho de Rhys, a interação de perspectivas e ideologias, que subvertem umas às outras, colocam em xeque a noção de verdade. Nesse sentido, é relevante notar que a análise bakhtiniana do princípio dialógico que orienta o texto polifônico é produtiva para a leitura de Vasto Mar de Sargaços, pois ela

também permite contestar o monologismo, ou arborescência (cf. DELEUZE e GUATTARI, 1995), da ideologia imperialista que orienta o romance Jane Eyre. Ainda que o texto de Brontë seja polifônico se visto por outra perspectiva, esse monologismo está presente no projeto imperialista que se impõe, validado pelo discurso religioso, como ideologia dominante. Em Jane Eyre, a visão colonial, assim como o discurso imperialista211 e maniqueísta, por exemplo, se apoiam em uma perspectiva transcendental, conforme visto anteriormente neste trabalho. Essa perspectiva transcendental sobrepõe-se tão decisivamente no texto, que domina todas as práticas, valores, desejos, ideologias, extinguindo ou tornando irrelevante tudo aquilo que a contesta. Nesse sentido, é revelador que a voz de Bertha permaneça inaudível durante toda a narrativa. Da mesma forma, não ouvimos um só falante caribenho. O espaço caribenho retratado em Jane Eyre é monológico, concebido como uma tela plana em que Rochester projeta a sua própria visão imperialista sobre o espaço.

A noção de espaço polifônico é amparada pela teoria bakhtiniana na medida em que seus textos constantemente reiteram a natureza social da língua. Em Marxismo e filosofia da linguagem, as relações entre linguagem e a sociedade são colocadas em primeiro plano na sua abordagem, que desenvolve a concepção de signo enquanto efeito das estruturas sociais. Para Bakhtin, “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (BAKHTIN, 1995, p. 95). Interessa a Bakhtin a especificidade histórica, cultural e social das práticas discursivas, portanto, a sua atenção está voltada para as práticas discursivas enquanto práticas sociais, não individuais. Diferente da concepção saussuriana, Bakhtin não trata a língua como um sistema fechado, um objeto abstrato ideal. No lugar de elementos linguísticos abstratos (palavra e oração), Bakhtin define como unidade real de comunicação o enunciado, que é único e irrepetível. Para Bakhtin, todo enunciado é dialógico, constituído na relação com o outro, e dotado de uma carga histórica: “antes de seu início, há os enunciados dos outros, depois de seu fim, há os enunciados-respostas dos outros (ainda que seja como uma compreensão responsiva ativa do outro).” (BAKHTIN, 1995, p. 293) A própria noção de dialogismo evidencia as implicações sociais das análises literárias feita por Bakhtin. Afinal, a que se refere Bakhtin ao falar do dialogismo, senão do próprio mundo social, composto por múltiplas vozes, pontos de vistas, perspectivas subjetivas, ideologias forjadas a partir dos embates sociais?

                                                                                                               

211 Aquilo que Spivak denomina "axiomática do imperialismo", ou “o terrorismo do imperativo categórico...”

À luz da noção de dialogismo bakhtiniana, é possível contrastar o espaço (social) polifônico do Caribe de Vasto Mar de Sargaços ao espaço (social)212 monológico do Caribe Jane Eyre. Diferente do que acontece em Jane Eyre, na visão de mundo dialógica, as personagens têm voz própria, são concebidas como sujeitos, e não coisificadas, tratadas como objetos, como é o caso da personagem caribenha de Brontë, ou daquelas tornadas invisíveis, como os habitantes caribenhos, sujeitos inexistentes em Jane Eyre. No espaço monológico do Caribe de Brontë, desprovido de identidade e história, destituído das vozes e histórias dos seus habitantes, não é possível uma visão de mundo dialógica que concebe as práticas discursivas a partir da sua especificidade tempo-espacial.

Para Bakhtin, “o ambiente autêntico de um enunciado, o ambiente em que ele vive e toma forma, é heteroglossia dialogizada, anônima e social como a língua, mas ao mesmo tempo [...] um enunciado individual”. (BAKHTIN, 1981, p. 272)213 O próprio conceito de heteroglossia parte da ideia de que cada autor cria uma expressão particular e sincrética de uma heteroglossia social. O conceito, que amplia a análise bakhtiniana sobre o dialogismo, ratifica a noção de que qualquer uso da língua é mediado por formas sociais de ver o mundo. Dessa forma a relação entre cada falante e o mundo é mediada por um espaço social em que visões de mundo competem e interagem (cf. BAKHTIN, 1981, p. 291).

A concepção de espaço polifônico só é possível a partir da noção de espaço como produto socialmente construído, conforme teorizado por Bakhtin (1995; 2003) e por teorias como as de Lefebvre (1991), Massey (2013) Santos (1978, 1979, 1996), abordadas anteriormente neste trabalho. No excerto abaixo, essa noção é endossada pela imbricação entre lugar e cultura. A ideia de espaço polifônico deve ser pensada a partir da noção de lugar vivo, habitado, em constante construção e transformação pelas história, cultura e identidade das pessoas do lugar:

Lugar nunca é simplesmente localização, nem é estático, uma memória cultural que a colonização enterra. Assim como a própria cultura, lugar é um estado contínuo e dinâmico de formação, um processo intimamente ligado à cultura e à identidade de seus habitantes. Acima de tudo o lugar é um resultado da habitação, uma consequência das maneiras com que as pessoas habitam o espaço (ASHCROFT, 2001, p. 156, tradução nossa)214

                                                                                                               

212 Os parêntesis são uma alusão à Lefebvre: “(Social) space is a (social) product”, “espaço (social) é um

produto (social)” (LEFEBVRE, 1991, p. 26, tradução nossa).

213 “The authentic environment of an utterance, the environment in which it lives and takes shape, is dialogized

heteroglossia, anymous and social as language, but simultaneously […] an individual utterance” (BAKHTIN, 1981, p. 272).

214 Place is never simply location, nor is it static, a cultural memory which colonization buries. For like culture

Há um momento crucial na narrativa de Vasto Mar de Sargaços, quando o espaço da Fazenda Coulibri sofre uma transformação radical, a partir da chegada do Sr. Mason, o padrasto inglês de Antoinette. Uma das primeiras providências do Sr. Mason foi reformar a propriedade arruinada de Coulibri. Entretanto, a transformação sofrida por Coulibri com a chegada do Sr. Mason foi muito mais complexa e profunda do que a mudança do espaço físico. O comentário de Antoinette, destacado abaixo, chama a atenção para a noção de espaço como produto social e revela a complexidade do tratamento dado à espacialidade nos textos de Rhys. Ao retornar para casa e reencontrar a propriedade modificada pelas reformas feitas pelo seu padastro, Antoinette observa:

Coulibri parecia igual quando eu tornei a vê-la, embora estivesse limpa e arrumada, sem capim no meio das pedras e sem goteiras. Mas parecia igual215. [...] Foi o falatório

das pessoas sobre Christophine que mudou Coulibri, não os consertos, nem a mobília nova, nem as caras estranhas. O falatório deles sobre Christophine e obeah216 foi o que mudou a casa. (RHYS, 2012, p. 25)217

O “eles”, referido por Antoinette em “falatório deles” diz respeito aos ingleses recém- chegados na Jamaica, parentes e amigos do Sr. Mason. Numa das conversas entre “eles”, sobreouvidas por Antoinette, uma mulher ironicamente atribui a escolha insensata do Sr. Mason em casar-se com uma mulher falida aos poderes de feitiçaria de Christophine.

A ideia de que o espaço da fazenda Coulibri foi transformado pelo “falatório” dos ingleses recém-chegados sobre Christophine e obeah coloca em evidência a imbricação entre linguagem e espaço (social), tão cara a Bakhtin, e sublinha a associação entre a palavra e a invenção do lugar, destacada por Paul Carter no ensaio “Naming Place” (CARTER, 1995, p. 402 – 406). Além disso, o excerto chama a atenção para o fato de que o lugar, que é fisicamente localizável e palpável, é definido através da cultura e da identidade dos seus habitantes, ou seja, é determinado por processos invisíveis cotidianos, crenças e valores                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

identity of its inhabitants. Above all place is a result of habitation, a consequence of the ways in which people inhabit space (ASHCROFT, 2001, p. 156).

215 Na versão inglesa é feita a diferença entre “look the same” e “feel the same”, conforme tradução abaixo

(RHYS, 1997, p. 14)

216 De forma superficial, pode-se dizer que obeah é um termo usado nas Índias Ocidentais que se refere a

práticas religiosas, espiritualistas, de feitiçaria e magia popular que têm suas origens na África Ocidental e que foram trazidas para o Caribe pelos escravos. O lugar ocupado pelas práticas de obeah em Vasto Mar de Sargaços será mais explorado mais adiante neste trabalho.

217 “Coulibri looked the same when I saw it again, although it was clean and tidy, no grass between the

flagstones, no leaks. But it didn´t feel the same. […] It was their talk about about Christophine that changed Coulibri, not the repairs or the new furniture or the strange faces. Their talk about Christophine and obeah changed it.” (RHYS, 1997, p. 14)

inconscientes, formas interiorizadas de conceber o mundo, e também por relações complexas e multifacetadas de poder. A (in)definição de lugar no excerto acima endossa, portanto, o caráter rizomático do espaço, evidenciando a natureza dinâmica do espaço como produto (cf. LEFEBVRE, 1991; MASSEY, 2013; SANTOS, 1978, 1979, 1996). O comentário de Antoinette sobre a transformação de Coulibri ilustra a ideia de espaço polifônico defendida neste trabalho ao colocar em primeiro plano os processos invisíveis e cotidianos, como os relatos dos habitantes locais, por exemplo, que fazem o espaço existir como dimensão do vivido, da experiência histórica dos sujeitos que nele habitam.

A transformação de Coulibri também evidencia o caráter rizomático do espaço em Vasto Mar de Sargaços, através dos movimentos de desterritorialização e reterritorialização. Nesse sentido, o processo de reterritorialização da propriedade Coulibri, efetuado pelo Sr. Mason, acarreta a mudança na maneira com que a família de Antoinette habitava o espaço, o que fez com que Coulibri se tornasse o alvo do ódio e do rancor da comunidade local. Com a chegada do Sr. Mason, Coulibri deixa de ser a propriedade falida de uma família crioula de ex-donos de escravos, ou seja, uma propriedade que simbolizava as ruínas do sistema