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1.3 O CAMPO LITERÁRIO

1.3.2 Jean Rhys como escritora caribenha

Jean Rhys viveu o bastante para testemunhar o fim do Império Britânico e enorme fluxo de imigrantes das antigas colônias para a Inglaterra nas décadas de 1950 e 1960. Mas a escritora migrou para a Inglaterra bem antes disso. Deixou a Dominica para viver no coração do Império em 1907, quando era muito raro encontrar um imigrante caribenho. Na maioria dos trabalhos e pesquisas críticas das décadas de 1960 e 1970, ela é a única mulher representada. A literatura caribenha das décadas de 1950 e 1960, período em que a literatura anglófona caribenha torna-se um novo cânone, é escrita por homens e retratam primordialmente a experiência masculina de exilados vivendo em Londres. (cf. DONNELL, 2006) São representativos desse período os romances In the castle of my skin (publicado em 1953) de George Lamming, A brighter sun (1952) e The lonely londoners (1956) de Samuel Selvon e a coleção de contos Miguel Street (1959) de V.S. Naipaul.

Em sua abordagem sobre os momentos críticos da história da literatura anglófona caribenha em Twentieth-century Caribbean literature, Donnell (2006) ressalta a maneira como os imperativos teóricos e históricos determinam a visibilidade e invisibilidade de autores e textos. Dentro dessa perspectiva, ela observa o apagamento e a marginalidade das mulheres escritoras e de experiências femininas na história da literatura e da crítica literárias caribenhas. Donnell identifica três enfoques pelos quais a tradição literária caribenha foi abordada ao longo do tempo. Primeiro, através das lentes da crítica tradicional, que tinham por objeto o trabalho de alguns proeminentes escritores, todos do sexo masculino. Segundo, através de uma narrativa cronológica que não aborda quase nenhum texto de mulheres, exceto por um capítulo anexo intitulado “textos de mulheres” [“women’s writing”]. O terceiro enfoque examina apenas textos de mulheres e os situa no paradigma de “textos de mulheres negras” [“black women´s writing”] (cf. DONNELL, 2006, p. 4). O único enfoque no qual Rhys é contemplada é o terceiro, ainda assim a identidade étnico-cultural da escritora a coloca

numa posição ambígua diante da política cultural caribenha, conforme será abordado a seguir. Jean Rhys é hoje uma escritora canônica. A sua presença na grande maioria das

antologias e nas principais publicações envolvendo a crítica e a história da literatura caribenha pode ser justificada pelo seu pioneirismo e influência como escritora caribenha, a atualidade e o enorme potencial dos seus textos para explorar questões e debates acerca da política cultural, etnia, raça, gênero e sexualidade, que continuam urgentes no século XXI. Em Twentieth-century Caribbean literature, Donnell cita Walcott, Lamming, Naipaul e Rhys

como os escritores que compõem a “linha de base da literatura anglocrioula caribenha”. (DONNELL, 2006, p. 7, tradução nossa)13 O crescente interesse em estudos críticos e acadêmicos centrados no Caribe sobre a obra da escritora confirmam a permanência de Rhys como uma referência importante dentro da tradição literária caribenha.

Rhys só alcançou visibilidade e reconhecimento tardiamente na sua carreira, depois do enorme sucesso de Vasto Mar de Sargaços em 1966, quando a escritora já tinha setenta e seis anos. Mesmo após ter publicado os romances metropolitanos e vários contos no período entre- guerras, Rhys era praticamente desconhecida em 1939, quando lançou seu último romance, Bom dia, Meia-noite. Neste ano, com a eclosão da Segunda Guerra começa também o longo período de silêncio da escritora, que se estendeu pelas décadas de 1940 e 1950, quando foi considerada morta na guerra. Esse período também marca a emergência da literatura de orientação pós-colonialista, conforme atesta a publicação de Things fall apart do escritor nigeriano Chinua Achebe em 1958, um marco da ficção pós-colonial.

O escritor trinidadiano V.S. Naipaul oferece um bom argumento para a pouca projeção de Rhys como escritora, mesmo com a publicação de quatro romances e vários contos de grande valor literário entre 1927 e 1939. Numa revisão do segundo romance de Rhys, After leaving Mr. Mackenzie, feita pelo escritor em 1972, período marcado por um renovado interesse na obra da escritora, Naipaul comenta que Rhys estava muito além do seu tempo. (cf. SAVORY, 2009, p. 109) A projeção que Rhys atingiu com a publicação de Vasto Mar de Sargaços foi acompanhada de muita atenção da mídia, que viu na escritora uma fonte fértil para atrair o público. A mídia explorou as imagens de Rhys como uma escritora “morta” que ressuscitou, uma mulher-fatal, uma pessoa exótica. Com o sucesso alcançado com seu último romance, todos os seus textos já publicados ganharam novas edições. Trabalhos críticos sobre a sua obra se multiplicaram e contribuíram para construir a sua identidade como escritora, a partir de três enfoques: modernista, feminista e pós-colonialista.

Savory (2009, p. 109-110) destaca três momentos que colocaram em evidência as principais vertentes da crítica de Rhys. Em 1974, no influente New York Times Book Review, A. Alvarez declara que Rhys é a melhor dentre os romancistas ingleses vivos, deixando de lado a sua identidade caribenha. No mesmo ano, o escritor jamaicano John Hearne destaca Wilson Harris e Jean Rhys como os dois mais importantes escritores de ficção do Caribe. Savory observa que Hearne fez uma escolha audaciosa, uma vez que o título poderia ter sido dado a George Lamming, Austin Clarke, Samuel Selvon, V.S. Naipaul, ou mesmo a Paule                                                                                                                

Marshall, que apesar de não ter nascido no Caribe, é uma escritora da diáspora. Ao nomeá-la, Hearne posicionou Rhys como escritora caribenha de maneira significativa, fazendo também com que ela conquistasse um lugar privilegiado aos olhos da crítica literária caribenha. A partir de 1974, a escritora também passa a atrair mais simpatia da crítica feminista. Nancy J. Casey identifica, em contos da escritora, focos políticos importantes para o movimento de liberação das mulheres da década de 1970. Judith Thurman escreve um ensaio sobre a natureza das protagonistas dos romances de Rhys na revista feminista MS.

Além das vertentes críticas acima, Savory (2009, p. 110) destaca o final da década de 1970 como o momento em que os textos de Rhys começam a atrair o interesse da crítica pós- colonial. A escritora indiana Eunice de Souza elogia a complexidade do tratamento dado por Rhys à questão racial em seus textos. Helen Tiffin, por sua vez, defende que na ficção de Rhys as dicotomias homem/mulher, indianos ocidentais/ ingleses refletem a relação senhor/escravo e colonizador/colonizado. Este mesmo argumento é endossado por Gayatri Spivak em 1985. No entanto, em relação às leituras de Tiffin e Spivak, Savory observa que apesar de estarem em sintonia com as preocupações da década de 1970, hoje elas são consideradas redutoras. A crítica de Savory estende-se à teoria e à crítica pós-coloniais de forma mais geral, que aponta o risco de esquemas muito abrangentes para dar conta da experiência do colonialismo, o que por vezes contribui para dissolver a complexa interrelação de textos particulares com a especificidade da localização cultural no espaço e no tempo.

Em meados da década de 1990, o influente escritor, crítico e historiador barbadiano Kamau Brathwaite denomina Rhys a “Helena de Tróia de nossas guerras” em resposta a uma crítica de Peter Hulme feita a ele. A crítica de Hulme dirige-se basicamente à ênfase dada por Brathwaite à questão racial nos debates envolvendo a recepção de Vasto Mar de Sargaços. (SAVORY, 1998, p. 216; 2009, p. 113) A metáfora de Rhys como uma Helena de Tróia caribenha aparece no contexto das “guerras culturais” que surgem a partir da década de 1970 no Caribe, envolvendo os debates entre discursos caribenhos com questões relacionadas ao imperialismo cultural ocidental. Para Brathwaite, Rhys, assim como Helena, foi roubada ou raptada do Caribe pelo gosto literário ocidental, e como uma escritora branca, como uma mulher branca simbólica, é particularmente desejada pela Europa. O principal dilema caribenho seria resgatar Rhys, ou não, de volta para o mundo caribenho e pós-colonial.

A despeito da posição ambígua ocupada por Rhys diante dos debates envolvendo a política cultural caribenha, a escritora recebeu o importante reconhecimento de críticos e escritores caribenhos como Derek Walcott, Kenneth Ramchand, Lorna Goodison, Olive Senior, Wally Look Lai, Wilson Harris, dentre outros. Savory aponta como um aspecto

importante da recepção da obra da escritora os inúmeros escritores caribenhos que respeitam e admiram seu trabalho e a reconhecem como uma influência importante. A influência de Rhys é declarada pela escritora jamaicana Margaret Cezair-Thompson (1956- ) e pelo americano-bahamiano-tobaguino Robert Antoni (1958- ) nos seus respectivos romances The true history of paradise, publicado em 1999, e Blessed is the fruit (1997). Além disso, Rhys é assunto dos poemas “Jean Rhys”, do escritor santa-lucense Derek Walcott (1930- ), “Lullaby for Jean Rhys” da escritora jamaicana Lorna Goodison (1947- ) e “Meditation in Red” da escritora também jamaicana Olive Senior (1941- ).

Estudiosas da obra da escritora que dedicam especial atenção à influência caribenha na sua ficção, como Angier (1992), Emery (1990) e Savory (1990), reconhecem que, apesar dos limites da posição de Rhys em explorar o espaço cultural afro-caribenho, ela indicou insistentemente na sua escrita a importância desse espaço e o seu poder de transformação. Savory afirma que, assim como Brathwaite, Rhys considera a questão racial dolorosamente crucial, um resultado da história, e que de diversas formas a escritora revelou a presença da África no seu Caribe colonial. (cf. SAVORY, 1998, p. 216) Além disso, observa que, como as “guerras culturais”, referidas por Brathwaite, são sobretudo disputadas com a linguagem, o seu resultado no Caribe irá determinar quais direções a cultura irá considerar importantes no próximo século (cf. SAVORY, 1998, p. 216).

O fato é que trabalhos críticos e acadêmicos sobre a obra de Rhys centrados no Caribe, e explorando focos diversos, têm surgido em número crescente desde a publicação de Vasto Mar de Sargaços, e principalmente a partir da década de 1990. Eles revelam sobretudo a busca por uma linguagem que possa elaborar a história caribenha e as complexas identidades que dela resultaram. Esses aspectos contribuem para a significativa posição ocupada pela escritora no cenário cultural caribenho e a produtividade dos seus textos em estudos críticos e acadêmicos engajados com questões sociais e políticas da luta anti-colonial.

Nesta pesquisa, o tratamento dado ao Caribe de Rhys foi orientado pelo conceito de “opacidade” de Édouard Glissant (2010), e também pelas elaborações de Bhabha sobre o efeito do “estranho” [“unhomely”] (Bhabha, 1998) e seus desdobramentos em relação à noção de “inquietante” (“unheimlich”) de Freud (Freud, 2010). O Caribe de Rhys é lido neste trabalho, nos termos de Glissant, como um espaço “opaco”, que foge à capacidade de compreensão pelo conhecimento ocidental. É também um espaço “inquietante”, marcado pela presença do “estranho”, assombrado pelos fantasmas da história e seus recalques, que vêm à tona de maneiras inusitadas, mas cujas marcas estão cravadas na paisagem caribenha.

Arrisco afirmar que ainda há muito a ser dito sobre o espaço estranho e opaco do Caribe rhysiano. Esse espaço imenso na imaginação da escritora certamente diz algo importante sobre os intervalos significativos de silêncio da sua ficção, que causaram tanta estranheza nos leitores da primeira metade do século XX, quando foram publicados suas primeiras narrativas ficcionais. Os espaços suspensos desses textos, as famosas reticências, ou asteriscos seguidos por um espaço em branco que caracterizam a sua ficção, aludem à presença daquilo que não pode ser dito ou ser representado pelo Humanismo e pela lógica cartesiana do cientificismo ocidentais. As rupturas e omissões desses textos ganham eco na abordagem realizada por este trabalho, diante do contraste, evidenciado pela própria ficção da escritora, entre a experiência fragmentada e emudecida do exílio feminino e colonial e as ideias de unidade, coesão e continuidade propagadas pelo discurso transparente das narrativas que deram sentido ao nacionalismo, ao imperialismo, ao colonialismo. A profusão de trabalhos sobre a escritora certamente revelam que ainda há muitos caminhos para adentrar os territórios opacos da sua ficção.

A noção derridiana de “espaçamento”, que “designa a intervenção regulada do branco, marcando a suspenção e o retorno na cadê(nc)ia textual” oferece uma perspectiva produtiva para a leitura dos espaços em branco que caracterizam os textos de Rhys. O “espaçamento” aponta para “um fora e uma alteridade irredutíveis, impossibilitando a uma identidade fechar- se sobre si própria, sobre sua coincidência consigo mesma.” (GLOSSÁRIO DE DERRIDA, 1983, p. 33) A noção de espaçamento relaciona-se à noção de différance, que reivindica que “o movimento da significação só seja possível se cada elemento dito ‘presente’, aparecendo no cenário da presença, relacionar-se com algo que não seja ele próprio.” (GLOSSÁRIO DE DERRIDA, 1983, p. 24) É nesse movimento de jogo que produz as diferenças e os efeitos de diferença, que se estabelece a escrita rhysiana, uma escrita marcada pela produção dos intervalos como meio de significação geradora. Os intervalos do espaço do texto de Rhys conferem ao não-dito uma significação ativa de força produtiva, configurando narrativas ficcionais como performance de um sujeito da escritura que encarna uma identidade e alteridade que lutam por simbolizar a existência e a experiência não ditas, não representadas, aquela zona de silêncio assombrada pelos descaminhos da História.

Se os silêncios que caracterizam a ficção de Rhys aludem à sua tentativa de cartografar, no sentido de fazer existir, tornar visíveis, territórios da experiência que se situam para além daqueles já mapeados, defendo neste trabalho a ideia de que uma das principais estratégias encontradas por Rhys para cartografar essas experiências foi o tratamento dado à espacialidade nos seus textos.

1.4 ESPACIALIDADE