• Nenhum resultado encontrado

DA PSICANÁLISE À NEUROPSICANÁLISE DO INCONSCIENTE À CONSCIÊNCIA

3. O nascimento da consciência de s

3.1. A relação precoce

A teoria das relações de objeto precoce marca uma rutura epistemológica com a teoria pulsional freudiana, mudando, de forma radical, a conceção do psiquismo, já que preconiza a existência, desde o nascimento, de relações de objeto. Com efeito, se a teoria pulsional freudiana postulava que o bebé procura a satisfação pulsional, sendo o objeto, fundamentalmente, um meio para atingir essa mesma satisfação, Klein (1935/1992, 1940/1992, 1952/1987, 1957/1987) e Fairbairn (1941/1986, 1944/1986), mas também Balint (1952/1994, 1968/1999), mostraram que o bebé procura, essencialmente, contactos emocionais com o objeto - “O objetivo final da líbido é o objeto” (Fairbairn, 1941/1986, p. 31, grifo do autor) -, mostraram que o bebé busca uma relação afetiva com os objetos. E se, como vimos, há em Klein (1935/1992, 1940/1992) um privilegiar da realidade fantasmática do bebé, em detrimento da realidade dos objetos, os desenvolvimentos da teoria psicanalítica, em parte protagonizados por Bion (1962/1987), levaram a deslocar o vértice da relação para a interação, sublinhando a importância dos vínculos estabelecidos entre a mãe e o bebé. Bégoin (1993/2005) fala de “mutualidade” e de “reciprocidade” do investimento mútuo da mãe e do filho e da importância da partilha emocional desde o nascimento, de forma a permitir à criança criar e desenvolver a sua vida psíquica.

Mas será que o nascimento, enquanto momento que introduz um corte, uma separação (física) entre a mãe e o bebé, anuncia o início da vida psíquica? Ou esta vida inicia-se antes do nascimento, ainda no mundo fetal?

Abordar a questão do início da vida psíquica impõe a necessidade de se conciliar e articular as teorias que decorrem da prática clínica psicanalítica com as teorias e métodos da psicologia do desenvolvimento e da psicologia cognitiva, relacionando, como sugere Stern (1985/2005), os dados (inferidos) que decorrem da experiência intrapsíquica, da experiência subjetiva, com os comportamentos que decorrem da observação naturalista e experimental.

A conjetura de uma vida protomental foi, inicialmente, esboçada por Freud (1926/1996), embora este nunca a tenha desenvolvido: “Há muito mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos teria feito acreditar” (p. 137). Considera, ainda, que conservamos traços de memória, sob

a forma de fantasias inconscientes inerentes a processos biológicos fundamentais do nascimento e da vida intrauterina.

Mas, para existirem traços de memória de acontecimentos da vida intrauterina, tem que existir um “aparelho psíquico” para os guardar. Ora, será que podemos considerar que o ego precoce de que fala Klein (1935/1992, 1940/1992, 1952/1987, 1957/1987), já existe, ainda que de forma muito imatura, nos últimos tempos de vida intrauterina? Conjeturar a existência deste ego constutuir-se-ia como a base conceptual para pensar que o recém-nascido dispõe de meios suficientes para experimentar emocionalmente uma mudança de estado, de meio e de modo de contacto; no fundo, para experimentar uma descontinuidade, uma cesura, isto é, uma experiência sentida como uma mudança “catastrófica” (Bion, 1965/1991), no sentido em que há turbulência emocional. Seria, então, este ego que armazenaria as experiências emocionais antes e depois do nascimento, que experienciaria as experiências emocionais que surgem na altura do nascimento, experiências de angústia inimaginável ou de angústia catastrófica (Bick, 1967/1991; E. O´Shaughnessy, 1994; Klein, 1940/1992; Tustin, 1986/1990; Winnicott, 1979/1988), experiências que vão ser, no decurso do desenvolvimento normal, e através do uso de mecanismos de defesa (inicialmente primitivos e depois mais evoluídos) ligadas, elaboradas e modificadas.

É com base em estudos sobre a vida fetal, que Meltzer e Williams (1988/1994) colocam a hipótese de que, nos últimos meses da vida intrauterina, exista já alguma vida emocional. Também Bégoin-Guignard (1989) refere que “pesquisas recentes levam a pensar que existem já, no decurso das últimas semanas de vida intrauterina, premissas de relação de objeto do feto com a placenta, não só enquanto precursora do seio, mas ainda enquanto duplo” (p. 1687). Por sua vez, Imbasciati (1998/2003) sublinha que, a partir do sexto mês de gestação, é possível falar de mente fetal e, portanto, de experiência, de aprendizagem, de elaboração e de comunicação (gestante-feto). Levin e Trevarthen (2000) acentuam mesmo que os estudos sobre a vida intrauterina evidenciam a existência de um diálogo motor precoce entre o bebé e a mãe, e parecem apoiar a ideia da existência de alguma forma de consciência embrionária, presente na escuta da voz da mãe e na reação ao toque.

Para Meltzer e Williams (1988/1994), o nascimento é uma experiência de grande intensidade e beleza - beleza pelo deslumbramento face ao estranho e desconhecido novo mundo, o “admirável mundo novo” - e, ao mito do “paraíso perdido” (mundo intrauterino), que o recém-nascido deverá deixar, opõem a pulsão para nascer, para escapar ao claustrum

uterino. De facto, na sua perspetiva, o afluxo de estímulos sensoriais que se apoderam do bebé, depois do nascimento, daria lugar a uma experiência estética de extrema intensidade. Esta seria, porém, uma experiência enigmática e perturbadora, passando-se tudo como se o bebé ficasse maravilhado com a beleza do mundo, fundamentalmente com a beleza do seu primeiro objeto de ligação, a “mãe ordinariamente bela e devotada”, a que Meltzer e Williams (1988/1994) chamam “objeto estético”; por outro lado, e porque as qualidades internas do primeiro objeto lhe são enigmáticas, o bebé procura desvendá-las: “Isto é o conflito estético, que pode ser enunciado de modo mais preciso em termos de impacto estético do exterior da ‘linda’ mãe, disponível aos sentidos, e do enigmático interior que precisa de ser construído com a imaginação criativa” (p. 44). A atualização das pulsões epistemofílicas far-se-ia ao serviço da resolução, sempre parcial, deste conflito, que diz respeito à adequação das qualidades sensoriais do objeto e das suas qualidades psíquicas internas. Porém, a primeira incapacidade do bebé de resolver este enigma levá-lo-ia a entrar num profundo sofrimento depressivo, que os mecanismos da posição esquizoparanoide - clivagem e projeção - viriam atenuar. Neste sentido, a posição esquizoparanoide seria posterior à depressiva, a qual não estaria, como na óptica kleiniana, em relação com a frustração e a perda do objeto, mas com o impacto do objeto estético e o conflito que ele suscita.

Na opinião de Meltzer e Williams (1988/1994), a potencialidade estruturante do conflito estético está muito dependente da reciprocidade entre a mãe e o bebé, da apreciação estética um do outro. Fazem, assim, ressaltar, por um lado, o carácter iminentemente sensorial do investimento mútuo entre a mãe e o bebé e, por outro, a necessidade de este investimento mútuo ser suficientemente idealizado para resistir ao impacto da cesura do nascimento, ao impacto de um outro espaço e de um outro tempo que se aplicam às condições elementares do nascimento da vida psíquica extra-uterina. A experiência deste encontro e desta apreciação estética foi realçada por Bégoin (2005b), encontro entre as capacidades de amor no estado nascente do bebé e as capacidades de amor já construídas dos seus pais, a que chama a “experiência estética primária”, encontro que garante a segurança de base necessária ao sentimento de identidade existencial. É um encontro facilitado pela “preocupação maternal primária” (Winnicott, 1979/1988), entendida como uma condição psicológica de apurada sensibilidade que se instala no fim da gravidez e que se prolonga durante algumas semanas após o nascimento. Esta condição psicológica da mãe, facilitadora do encontro entre mãe e o bebé, é a garantia de uma adequada “cicatrização” da cesura do nascimento.

Também Tustin (1986/1990) refere que, no desenvolvimento infantil precoce normal, há uma consciência de separação que se torna suportável por atividades autossensuais e pela interação física com outras pessoas, particularmente com a mãe - “fase de autossensualidade”. Esta fase (ou período) - que se caracteriza por um estado de sensação dominada e centrada no corpo - constitui a essência do ego, sendo a mãe experimentada como um “objeto sensação”, constituindo parte do seu corpo. Esta construção autossensual da mãe capacita o bebé a sentir que a experiência com a mãe é contínua e ininterrupta e, subjetivamente, a sentir-se completamente mergulhado na mãe circundante, não percebendo onde é que esta começa e acaba, não sabendo sequer que começa e acaba; no fundo, sente-se um só com a mãe, tal como o foi, de facto, antes de nascer. Com a noção/fase de autossensualidade, Tustin (1986/1990) aproxima-se do conceito de “holding”, de Winnicott (1979/1988), conceito que expressa os cuidados prestados pelo meio à criança e que asseguram o cumprimento satisfatório e adequado das suas necessidades fisiológicas e psicológicas, neste período de absoluta dependência. Winnicott (1979/1988) fala de uma mãe “normalmente devotada ao seu bebé” e, para ele, esta capacidade de adaptação da mãe às necessidades do bebé - “identificação empática” - decorre da preocupação maternal primária, estado de “loucura” normal da mãe.

Se entendermos a empatia e a disponibilidade psíquica no sentido lato, aproximamo-nos da capacidade de rêverie de Bion (1962/1987), o que mostra a importância do investimento materno através do estabelecimento de ligações psíquicas com o bebé, no sentido de o ajudar a suportar a experiência emocional da separação inicial da mãe, aquando do nascimento, e nos momentos oscilantes de consciência de separação física que o bebé vai experienciando nos momentos iniciais da vida, formando o fundo sobre o qual serão constituídas as bases do sentimento de continuidade. Sentimento que, para Tustin (1986/1990), embora se possa fundar nesta adaptação da mãe, originada pela preocupação maternal primária, necessita de se combinar com a sensualidade do bebé, adquirindo este, assim, a ilusão de unidade com a mãe: “A perda da conexão umbilical com a mãe é compensada pela conexão sensual com o bico do seio, que tem uma significação inata” (p. 18). Para Tustin (1986/1990), o que se encontra assim preservado é a ilusão da unidade com a mãe, ilusão que capacita o bebé a sentir que a sua experiência com a mãe é ininterrupta. Também Winnicott (1971/1975) se tinha referido à importância desta ilusão, mostrando que, na sua origem, está uma criação primária. Esta criação, que decorre da

capacidade empática da mãe - mãe suficientemente boa -, posta hipersensivelmente ao serviço da criança - preocupação maternal primária -, faz coincidir no tempo a sua presença com as necessidades da criança, proporcionando-lhe uma experiência de omnipotência, a experiência de que os objetos de que precisa são criações suas: “A mãe coloca o seio real exatamente onde o bebé está pronto para criá-lo, e no momento exato” (p. 26). Bion (1962/1988, 1970/1991) expressa esta ideia quando refere que a pré-conceção do seio se associa a uma realização positiva, isto é, quando o bebé é posto em contacto com o seio, tendo uma vivência emocional de satisfação, forma-se uma conceção.

Estes investigadores mostram, assim, uma forma de experiência de relação que, para além de ser fundada no prazer e na necessidade, é criadora de um objeto - o objeto subjetivo -, que surge no “espaço e tempo enquadrados” (Milner, 1987/1991) - enquadrados pela mãe - e, por isso mesmo, simultaneamente criado e encontrado. É, então, esta criatividade primária que vai proporcionar ao bebé a ilusão de unidade com a mãe - a ilusão da subjetividade pura -, e que constitui, através desta mutualidade de investimentos, a “trama narcísica” (Jeammet, 1991), alimentada através da relação com os objetos, levando, portanto, a partir desta identificação recíproca, ao sentimento de “ser o mesmo” (Tustin, 1986/1990; Winnicott, 1971/1975), ao “sentimento de ser um” (Milner, 1987/1991). É a identificação primária.

Para Winnicott (1971/1975), só depois de cumprida esta ilusão primária, a criança poderá ir corrigindo as suas ilusões, na medida em que a mãe suficientemente boa lhas for corrigindo, de modo adequado ao desenvolvimento do seu aparelho psíquico - “desmame psicológico”; no decurso deste processo de “ilusão/desilusão”, sublinha a importância dos “fenómenos transicionais” e dos “objetos transicionais”, no sentido de estes servirem de ponte para a transição de, na mente do bebé, a mãe ser percebida em vez de ser concebida, de servirem de ponte para o percurso que vai da subjetividade à objetividade, da omnipotência ao reconhecimento da realidade do outro e do mundo, o que pressupõe alguma capacidade de tolerância à frustração e, simultaneamente, implica que esta tolerância se desenvolva (pelo confronto com o facto de que a satisfação nem sempre acontece no tempo desejado). O objeto transicional seria, assim, um símbolo de união do bebé e da mãe, ou parte desta, no tempo e no espaço em que se inicia a separação, e a relação com este objeto constituiria a primeira experiência de brincadeira, assistindo-se, portanto, ao primeiro uso de um símbolo - o que permitiria, face às descontinuidades inevitáveis da relação com os objetos externos, manter uma continuidade de outra ordem, uma continuidade na relação com o objeto interno -,

estando, assim, a presidir ao desenvolvimento do pensamento. O desenvolvimento do pensamento, que se inscreve numa capacidade para pensar simbolicamente, depende, então, da inter-relação entre a capacidade de representação do objeto ausente e a tolerância à frustração.

Porque o objeto transicional permite superar a ausência da mãe (impedindo que a ausência seja sentida como uma falta, uma perda), inscreve-se no paradoxo da presença-ausência, paradoxo que configura a ausência como condição da presença e, em última instância, condição do ser. É um objeto que nasce no espaço e no tempo da ilusão, ou melhor, espaço-tempo porque na formulação de Winnicott (1971/1975) estão inseparavelmente ligados, são interdependentes e são eles que organizam a “área intermediária” - a “terceira área”, a área que contrasta com a realidade psíquica interna, ou pessoal, e com o mundo real em que o indivíduo vive, que pode ser objetivamente percebido -, ou o “espaço transicional” ou, ainda, o “espaço potencial” - porque espaço de brincadeira que se expande no viver criativo, sendo, portanto, o espaço da metáfora. Espaço-tempo que, ao inaugurarem a experiência fundadora do sentimento íntimo do Eu - o seu sentido interno de lugar e integração -, ele próprio consubstancial ao sentimento do real - o seu sentido de realidade externa e a capacidade de agir sobre esta de forma imaginativa e criativa -, vão permitir uma progressiva diferenciação entre interior e exterior, nomeadamente a firmação dos limites do corpo e a sua representação metafórica - os limites do Eu e do aparelho psíquico como continente. Porque são o espaço e o tempo os elementos fundadores do sentimento do Eu, importa compreendermos melhor como se criam, como se constroem, como se desenvolvem.