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Sobre a etiopatogenia do autismo

NEUROPSICANALÍTICA AS PERTURBAÇÕES DA CONSCIÊNCIA

2. Para uma neuropsicanálise do autismo

2.1. Sobre a etiopatogenia do autismo

Apesar de, como referem Vidigal e Guapo (2003), ainda não sabermos como é que uma criança entra no quadro do autismo, os diversos estudos (Houzel, 1991; Meltzer et al., 1991; Tustin, 1972/1975, 1981/1984, 1986/1990; Winnicott, 1979/1988) que incidem sobre a etiopatogenia do autismo referem-se a graves perturbações da relação e da interação entre a mãe e a criança, a graves perturbações da vinculação. A questão que se coloca é saber como é que surgem estas perturbações. Decorrem de fatores constitucionais, derivam de dificuldades da mãe (meio), ou há uma interação entre ambos?

Kanner (1943), apesar de considerar o autismo como uma perturbação inata do contacto afetivo, provavelmente de causa orgânica (cerebral), faz referência a modalidades

relacionais dos pais, marcadas por frieza afetiva e por fraco interesse pelas relações. Outros estudos (Houzel, 1991; Mahler, 1965/1984; Meltzer et al., 1991; Tustin, 1972/1975, 1981/1984, 1986/1990; Winnicott, 1979/1988) referiram-se também a dificuldades dos pais na promoção de uma relação de intimidade, em particular, da mãe, descrita muitas vezes como uma mãe deprimida, preocupada, ocupada, e, portanto, sem lugar para a criança. As consequências desta depressão, que por vezes já existe antes do parto e que continua depois deste (Tustin, 1986/1990), manifestam-se no desenvolvimento da preocupação maternal primária, nas dificuldades de estabelecer uma vinculação estável e de garantir uma segurança básica.

Se estes estudos, por um lado, fazem referência a algumas características psíquicas das mães de crianças com quadros de autismo ou de psicoses precoces, que se repercutem em determinados estilos de relação, por outro, alguns destes mesmos estudos (Mahler, 1965/1984; Meltzer et al., 1991; Tustin, 1986/1990) dão também uma grande importância a fatores constitucionais (inatos) que, desde o nascimento, predispõem a criança à entrada nestes quadros psicopatológicos. Relativamente a estes fatores constitucionais no autismo, Meltzer et al. (1991) e também Tustin (1986/1990) referem-se a uma hipersensibilidade constitucional como facilitadora de tendências autistas da criança. São estudos que sublinham a interação destas características com as alterações psíquicas do objeto maternal, interação que prepara o cenário para que, caso surja alguma circunstância especial (como uma doença), mãe e filho se tornem isolados um do outro. Mahler (1965/1984), embora considerando que um dos fatores determinantes do autismo (e da psicose simbiótica) é uma grave deformação da relação mãe-filho, também não deixa de se referir à importância de fatores constitucionais (intrínsecos), sendo, por vezes, estes os fatores desencadeantes: “Parece que há crianças com uma deficiência inata do ego que, desde o começo mesmo da vida - quer dizer, desde a fase de indiferenciação -, as predispõe a permanecer alienadas da realidade ou a alienar-se dela” (p. 119).

Também Soulé (1978/1985) se refere à importância dos fatores constitucionais da criança na relação com a mãe. Através de entrevistas prolongadas e repetidas a mães de crianças cujo autismo foi detetado precocemente, e através da recolha de observações longitudinais com pediatras que acompanharam essas crianças, percebeu que muitas destas apresentavam, desde o nascimento, distúrbios funcionais graves que se repercutiram na relação. A partir daqui, e através da análise das principais etapas de evolução e das

vicissitudes por que passa a fantasia da mulher que vai ter um filho - relação entre bebé imaginário e bebé real -, concluiu que as frustrações que estas perturbações funcionais impunham, tanto no plano libidinal como no narcísico, foram para além do tolerável, pelo que a mãe desinvestiu o bebé real e contra-investiu o bebé imaginário, facto que se repercutiu na relação. São, assim, instaurados “circuitos reverbatórios patogénicos” que alteram, progressivamente, as personalidades tanto da mãe como da criança, e que se repercutem no estabelecimento de uma relação de proximidade afetiva.

Sem entrarmos demasiado nas controvérsias entre inato versus adquirido, investigações genéticas sobre o autismo concluem que este é um dos transtornos psiquiátricos com maior influência genética (Carroll & Owen, 2009; Miles, 2011; Persico & Napolioni, 2013). No entanto, e apesar da enorme influência dos fatores hereditários, há evidências de uma interação destes com fatores ambientais (Deth, Muratore, Benzecry, Power-Charnitsky, & Waly, 2008; Rodier, 2000). Também estudos com gémeos (Rodier, 2000) apontam para a interação de uma componente hereditária com uma componente ambiental. Com efeito, estes estudos, ao mostrarem diferenças nos percursos evolutivos de gémeos monozigóticos, levaram a concluir que, se fosse apenas a componente genética envolvida na etiopatogenia, ambos os gémeos deveriam ter o mesmo diagnóstico; este facto não se verifica, dado que a percentagem de o segundo gémeo ter esse diagnóstico é de 60% e a percentagem de ter alguns sintomas de autismo é de 86%. Estes estudos levam ainda ao questionamento sobre a forma como se processa a transmissão dos fatores hereditários, sugerindo que o que é herdado não é o défice em si mas características que podem conduzir a fragilidades ou, até mesmo, a incapacidades em determinadas áreas. Esta eventual transmissão de fragilidades poderá ou não ser mobilizada no decurso do desenvolvimento, na relação com o meio (Rodier, 2000). Assim, as fragilidades herdadas podem interagir ou, até mesmo, ser o resultado de fatores externos que atuaram in utero, como a exposição à rubéola ou a substâncias como o etanol ou o ácido valpróico, ou decorrentes de doenças genéticas, como a fenilcetonúria e a esclerose tuberosa (Rodier, 2000). Trata-se, no fundo, de uma hereditariedade que vai interagir com uma grande diversidade de fatores que sobrevêm in utero ou após o nascimento, hereditariedade que se pode repercutir numa provável desregulação na formação e na diferenciação neuronal, em estádios de desenvolvimento pré-natal (e, naturalmente, também depois do nascimento), o que nos permite considerar a etiopatogenia do autismo como sendo altamente complexa e multideterminada.

Relativamente aos aspetos do desenvolvimento cerebral, estudos realizados por Waterhouse, Fein e Modahl (1996) e, mais recentemente, por Schumann et al. (2004), utilizando imagens obtidas através da ressonância magnética, parecem revelar evidências de uma alteração do sistema hipocampial (dificultando a integração da informação) e de uma disfunção do sistema amigdalóide (prejudicando a atribuição do significado afetivo). Outros estudos (Zilbovicius, Meresse, & Boddaert, 2006), utilizando a neuroimagem, demonstram que as crianças com autismo, quando comparadas a crianças com desenvolvimento normal, apresentam uma diminuição significativa da concentração de substância cinzenta, ao nível do sulco temporal posterior. Porque esta região é responsável pela escuta da voz humana, coloca-se a hipótese de que estas alterações impeçam as crianças com autismo de procederem ao reconhecimento da voz e do rosto humanos, bem como de realizarem julgamentos ou de fazerem inferências sobre as informações sociais. Também estudos de Just, Cherkassky, Keller, Kana e Minshew (2007) se referem à existência de uma deficiente integração das informações, resultante de uma reduzida conectividade intra-cortical, tendo estes investigadores encontrado, ainda, alterações da estrutura e da funcionalidade do corpo caloso. Mais recentemente, estudos post-mortem (Stoner et al., 2014) revelaram alterações focais na arquitetura cortical de crianças e jovens que tinham tido autismo, tendo-se verificado que essas alterações ocorrem em regiões que medeiam as funções perturbadas no autismo (social, emocional e linguagem).

Os estudos efetuados parecem, então, revelar a importância da predisposição de fatores neurobiológicos, presentes também nas investigações realizadas por Ramachandran e Oberman (2006). Com efeito, uma linha de pesquisas (Ramachandran & Oberman, 2006; Rodier, 2000) tem-se centrado na importância destes fatores no autismo e, apesar de estes estudos serem inconclusivos, apontam para o estabelecimento de uma relação estreita entre os sintomas comuns do autismo - a falta de expressão facial, as dificuldades na linguagem, a hipersensibilidade, a interpretação das experiências emocionais dos outros, as perturbações do sono - e os correlatos neuronais que suportam estas funções. Ramachandran e Oberman (2006) revelaram que as crianças que sofrem de autismo parecem ter uma disfunção no sistema de neurónios espelho, o que explicaria, segundo eles, a dificuldade na interpretação de intenções complexas e a grande falta de habilidade social que caracteriza estas crianças.

Porque a hipótese da existência de uma disfunção destes neurónios não consegue explicar outros sintomas do autismo, como os movimentos repetitivos, as contorções, a

ausência de contacto visual, a hipersensibilidade, a aversão a determinados sons, Ramachandran e Oberman (2006) desenvolveram a “teoria do mapa topográfico emocional”. Esta teoria procura explicar como a amígdala cria um mapa topográfico pormenorizado dos significados emocionais do ambiente de cada um de nós, a partir da enorme informação sensorial que chega às regiões sensoriais do cérebro, e que lhe é transmitida, sendo com base neste mapa topográfico que a amígdala determina como devemos reagir emocionalmente. Ora, para estes investigadores, as crianças com autismo têm este mapa distorcido, facto que se deve a conexões deformadas entre as áreas corticais, que processam os dados sensoriais, ou entre as estruturas límbicas e os lobos frontais, que regulam o comportamento. Esta distorção explicaria a razão por que um objeto ou um episódio banal podem desencadear uma resposta emocional extremada. Como explicação para esta deformação do mapa topográfico emocional, apontam episódios de epilepsia do lobo temporal, na primeira infância - detetados em cerca de um terço das crianças com autismo -, cuja origem parece ser de ordem genética e ambiental: alguns genes levariam a fragilidades que tornariam a criança susceptível a infeções virais que, por sua vez, a podiam predispor a crises epilépticas.

De qualquer forma, as duas teorias - disfunção dos neurónios espelho e mapa topográfico emocional distorcido - complementam-se, sendo ainda possível pensar que as fragilidades génicas podem predispor a que a mesma ocorrência, ou diversas ocorrências, danifiquem tanto as regiões responsáveis pelo mapa topográfico como aquelas onde se situam, predominantemente, os neurónios espelho. Como explicação para a deformação do mapa topográfico emocional ou do sistema de neurónios espelho, podíamos também pensar, para além das questões genéticas, na interação destas com as dificuldades da mãe em favorecer o estabelecimento da relação e da interação com a criança. Estas dificuldades dever-se-iam a alguma doença da mãe (depressão) ou a uma reação de desinvestimento (frustração) da mesma perante as dificuldades do bebé em interagir, dificuldades que, pela sua gravidade, se tornam difíceis de ser superadas pela mãe. Consideramos, assim, que a forma como a mãe reage à criança com autismo (ou com núcleos autistas) se pode revelar determinante para o desenvolvimento, podendo, quando os fatores inatos/constitucionais não originarem barreiras rígidas e impenetráveis ao contacto e à comunicação, inverter o processo autista, impedindo, portanto, que a criança se feche para o mundo e para a relação. Vejamos o caso do Tiago, criança de oito anos que esteve em psicoterapia psicanalítica devido a dificuldades na relação com os colegas.

Tiago era o segundo filho de uma fratia de dois irmãos (tinha uma irmã quatro anos mais velha) e desde cedo revelou dificuldades na relação e na comunicação com os outros. Da sua história infantil, destaca-se, desde o nascimento, uma diminuída capacidade de resposta às interações. “Desde que nasceu que o Tiago não reagia quando nos aproximávamos dele, não reagia aos outros”, refere a mãe. Para além de não reagir à interação, quando se entrava em contacto físico com ele, chorava muito, o que tornava a relação e a interação muito difíceis. Contudo, os pais nunca desistiram de estabelecer a interação: “Sempre procurámos muito estar com ele . . . ele não respondia, ficava muito parado, mas interagíamos muito com ele e conseguíamos acalmá-lo. Nunca desistimos de procurar a sua atenção, estimulando-o, falando com ele. Ao estarmos com ele, fomos percebendo a sua maneira de ser e foi melhorando” - acrescenta a mãe. Apesar da relação e da comunicação terem sido muito difíceis nos primeiros tempos de vida, pensamos que foi o grande investimento dos pais que impediu que o Tiago se fechasse para a relação, se isolasse do mundo. A mãe refere, ainda, que desde cedo não se detetavam gestos antecipatórios e que não imitava os outros: “não dava os braços, não batia palmas, não dizia adeus, não imitava os animais, só utilizava uma palavra que era ca”.

Sabemos que na base dos comportamentos de imitação estão capacidades inatas, como as correspondências transmodais e os mapas de equivalência intermodal (Meltzoff & Moore, 1989, 1997), que dão acesso à consciência transmodal. Ora, porque pensamos que o substrato neuronal necessário ao desenvolvimento adequado destes processos tem relação com o sistema de neurónios espelho, então, dadas as dificuldades do Tiago, desde o nascimento, de responder interativamente à mãe, conjeturamos que, devido a fatores genético-constitucionais, este sistema pode não se ter desenvolvido de forma suficiente e adequada (atrofia do sistema de neurónios espelho). E pressupomos que foi a capacidade empática dos pais, através do exercício da função α (procurando sempre estabelecer um ajustamento afetivo com o Tiago, desenvolvendo expectativas de reciprocidade e inferindo os seus desejos), que levou a que o sistema de neurónios espelho se fosse, gradualmente, desenvolvendo, com consequências, naturalmente, na construção de uma subjetividade e de uma intersubjetividade, na criação de significados intersubjetivos, logo, na formação e no desenvolvimento da consciência de si.

A análise do caso do Tiago permite-nos, então, inferir que, além dos fatores inatos/constitucionais subjacentes ao sistema dos neurónios espelho, a ativação e o desenvolvimento destes grupos de neurónios (ou o seu enfraquecimento e mesmo atrofia), parecem depender da natureza e da qualidade das interações mãe-bebé, em particular, da

capacidade empática da mãe, através do exercício adequado da função α, mas também da disponibilidade emocional do bebé para interiorizar esta capacidade. Com efeito, é esta função que, no decurso do desenvolvimento, vai ser gradualmente interiorizada pela criança que, deste modo, fica com os meios para poder pensar sobre as suas próprias experiências emocionais e sobre as experiências emocionais do outro. A relação entre a interiorização da função α, o exercício adequado desta e o funcionamento do sistema dos neurónios espelho levam a que se considere que a organização e o desenvolvimento do cérebro e da mente ocorram no seio de uma relação estreita entre a mãe e o bebé.

O desenvolvimento destas conjeturas leva-nos ainda a pensar nas possíveis ligações entre as investigações sobre os neurónios espelho e os estudos de Bick (1967/1991) e de Meltzer et al. (1991) sobre a identificação adesiva. Em particular, será que existe alguma relação entre o desenvolvimento defeituoso do sistema de neurónios espelho, os mecanismos de identificação adesiva e a permanência no mundo bidimensional? Por outro lado, tal como Meltzer et al. (1991) referiram, associado à identificação adesiva e à permanência no mundo bidimensional, está o desmantelamento. Ora, se atentarmos nos estudos de Damásio (2010), podemos pensar que o desmantelamento pode ser a expressão de uma falta de estabilização do proto-eu que, por isso mesmo, não levaria a uma integração adequada do eu-nuclear e, naturalmente, do eu-autobiográfico. Com tudo isto é o desenvolvimento de uma consciência de si (e dos outros) que fica comprometida. E, se as crianças com autismo não conseguem aceder à consciência reflexiva de si, como podem saber de si, como podem sentir-se? Pensamos que é a identificação adesiva que garante as sensações que permitem à criança sentir-se, isto é, sentir-se soma e, assim, sentir-se viva.