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Das memórias à consciência

NEUROPSICANALÍTICA AS PERTURBAÇÕES DA CONSCIÊNCIA

2. Para uma neuropsicanálise do autismo

2.2. Das memórias à consciência

Consideramos que a descoberta das funções dos circuitos neuronais compartilhados, os neurónios espelho, se pode ligar às conceções sobre o desenvolvimento infantil que preconizam que o bebé já nasce com uma capacidade inata para compartilhar estados mentais (Trevarthen, 1998/2006, 2011b), ou com uma capacidade inata para estabelecer correspondências transmodais, tal como sublinham Meltzoff e Moore (1989, 1997). Esta capacidade inata liga-se a uma característica fundamental do funcionamento do cérebro: a

possibilidade de criar mapas, quando interagimos com objetos, sobretudo no início da vida. Como refere Damásio (2010): “O cérebro humano é um imitador de primeira água. Tudo o que se encontra no exterior . . . é imitado no interior das redes cerebrais. Por outras palavras, o cérebro tem a capacidade de representar aspetos da estrutura de coisas e acontecimentos não-cerebrais” (p. 90). Por sua vez, Rizzolatti et al. (2006) salientam que a imitação é um meio muito importante de aprendizagem de habilidades, linguagem e cultura, e precisam que “a capacidade de criar padrões-espelho de ações observadas parece ser inata” (p. 51).

Se estas correspondências intermodais são inatas, a aprendizagem subsequente pode reforçá-las. É assim que Modell (2005), indo ao encontro de Meltzoff e Moore (1989, 1997), e também de Trevarthen (1998/2006, 2011b), refere que esta sincronicidade propriocetiva fornece o meio inato de vinculação; na sua opinião, nascemos com a capacidade de construir significados intersubjetivos relacionados com o intercâmbio de sentimentos. E, do nascimento em diante, os sentimentos não podem ser separados da memória. É um conhecimento relacional implícito, um conhecimento que fica guardado na memória implícita, memória que, como sublinha Schore (2005, 2011), está envolvida nas experiências afetivas intersubjetivas na relação de vinculação com a mãe, incluindo processos implícitos de comunicação, como a expressão facial, a postura e a tonalidade da voz. Para este investigador, o amadurecimento precoce das funções não-verbais implícitas, que evolui em fases pré-verbais do desenvolvimento, representa o substrato biológico da dinâmica inconsciente.

Podemos igualmente ligar estas noções ao conceito de interafetividade de Stern (1985/2005) - o compartilhar experiências afetivas, a sintonia afetiva, a partilha emocional -, já que aquele tem relações com os conceitos de memória implícita e de memória explícita. Com efeito, o conceito de interafetividade é um processo que se produz quase automaticamente, isto é, de forma inconsciente, e que, portanto, se liga aos processos subjacentes à memória implícita. Neste sentido, as experiências emocionais fundadas na sincronicidade propriocetiva ou as experiências de apego, que fundam a vinculação e que se estabelecem, desde o nascimento, entre o bebé e a mãe, são codificadas como esquemas mentais ou modos de funcionamento afetivo-emocional, na memória implícita, podendo ser transferidas para as mais diversas relações que se estabelecem ao longo da vida. Aliás, também Clyman (1991) refere que, durante o desenvolvimento, as crianças vão desenvolver diferentes maneiras de perceber, sentir, pensar e agir em resposta a diferentes emoções. Para ele, estas respostas são organizadas através de processos implícitos e, com o tempo, vão-se

tornar resistentes à mudança e vão definir a nossa forma de relação e de interação com os outros.

Para Schore (2002, 2005), as experiências emocionais que decorrem da relação primária são influenciadas pela maturação dos circuitos de processamento emocional do sistema límbico do hemisfério direito, afirmando que se trata de uma interação entre dois hemisférios: o hemisfério direito do bebé interage com o hemisfério direito da mãe. E será que não podemos considerar que, inicialmente, é a interação entre inconscientes, isto é, o contacto do inconsciente da mãe com o inconsciente do bebé que, ao ser pensado (conscientemente) pela mãe, vai desenvolver a consciência do bebé? Será que não é desta sequência (feliz) de interações, fundadas na partilha de experiências emocionais, que vai emergir uma cada vez maior consciência de si? Porque falar da consciência implica a memória, ou melhor, as memórias, importa perceber melhor como estas se desenvolvem.

Segundo Kandel (1999/2005), nos primeiros anos de vida, a criança depende primeiramente da sua memória procedimental ou implícita já que, como afirma, a memória declarativa ou explícita se desenvolve mais tarde. E, como precisam Goleman (1995/2001) e também Mancia (2006), as primeiras experiências emocionais e afetivas, em particular as que decorrem das relações primárias, são armazenadas na amígdala. Este facto fica a dever-se a que, durante o primeiro ano de vida, as outras estruturas do cérebro, particularmente o hipocampo - essencial para as memórias declarativas - e o neocórtex - sede do pensamento racional - não estão, ainda, plenamente desenvolvidas, ao passo que a amígdala já está quase completamente formada na altura do nascimento. Podemos ir mais longe e, se admitirmos a existência de uma vida protomental no feto, temos que considerar que é, fundamentalmente, na amígdala que as experiências deste se armazenam, principalmente as experiências derivadas das últimas semanas de gestação, altura em que o feto já é sensível aos ritmos e a determinados estímulos, como o toque e, em particular, a voz da mãe. Estas experiências são consideradas por Levin e Trevarthen (2000) como a primeira forma de consciência embrionária. É, portanto, na memória implícita que as experiências do feto são armazenadas e é esta memória que, nos primeiros tempos de vida, o bebé mobiliza para se relacionar com os objetos. É, então, sobre esta memória que o sentimento de si se começa a desenvolver; no fundo, que o sentimento de ser um Eu com consciência de si se alicerça.

Mas, para que a consciência se desenvolva, mesmo que seja a perspetiva subjetiva organizadora (Stern, 1985/2005), não terá que haver um outro sistema de memória para além

do implícito, não terá que haver um sistema de memória explícito, ainda que muito rudimentar? Estudos de Rovee-Collier, Hayne e Colombo (2001) apresentam dados experimentais que sugerem que ambos os sistemas de memória estão presentes desde os primeiros meses de vida, referindo que os bebés têm, desde cedo, alguma capacidade de representação, uma representação pré-simbólica. São estudos que vão no mesmo sentido das investigações realizadas por Meltzoff e Moore (1989), que evidenciam que, desde cedo (seis semanas) as imitações podem ser mediadas por representações pré-simbólicas. Fosshage (2005) refere mesmo alguns estudos que indiciam a existência de uma capacidade de representação simbólica rudimentar já in utero.

É, contudo, com o aparecimento das protoconversações (Trevarthen, 1998/2006) e dos jogos imitativos entre o bebé e a mãe que a representação simbólica ganha um grande impulso e, finalmente, se estabiliza com o desenvolvimento da linguagem, instrumento fundamental para o desenvolvimento do pensamento simbólico, base de um Eu neuropsíquico com uma consciência em expansão. Com efeito, é a linguagem que, ao abrir a possibilidade de nomear o que está a ser vivido e sentido, potencia o desenvolvimento do Eu com consciência reflexiva. É um desenvolvimento que decorre e é favorecido na e pela relação, e é na relação que se vai modulando a maturação das estruturas e das redes neuronais necessárias ao desenvolvimento destas funções. Podemos ainda considerar que a maturação de certas áreas cerebrais - principalmente o córtex pré-frontal -, decorrente das experiências relacionais possibilita as representações simbólicas que vão fortalecer o Eu neuropsíquico; este, por sua vez, ao tornar-se mais forte, adquirindo a capacidade de regulação e de reflexão, estabiliza e potencia o desenvolvimento das estruturas e das redes neuronais. É, assim, um processo de inter-regulação mútua, de potencialização mútua, de desenvolvimento integrado e integrativo.