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2 O PROFISSIONAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA: revendo a produção e as propostas

2.1 Contextualização da Formação do Profissional

2.1.2 A relação teoria e prática

A cisão entre concepção e execução no processo de trabalho, própria do capitalismo, apesar de suas mutações, afeta, em particular, a organização do currículo das escolas e universidades, dividido entre disciplinas teóricas e disciplinas práticas. A separação entre os dois elementos constitutivos do trabalho humano - teoria e prática - determina a maneira como se concebe e se produz conhecimento no interior dos cursos de formação de professores. A estrutura curricular dos cursos, via de regra, reproduz esta forma de organizar e conceber o processo de conhecimento: primeiro a teoria e depois a prática, revelando uma concepção de conhecimento como algo dado, pronto e acabado, que separa o sujeito que conhece do objeto a conhecer.

Essa estrutura atual dos cursos de formação dos profissionais da Educação Física alija o aluno do trabalho, separando o mundo do trabalho - trabalho pedagógico que se realiza na escola - do mundo da educação e da ciência. Toda esta fragmentação da ciência e a separação entre trabalho, educação, ciência e trabalho não podem ser superadas no interior do próprio regime que as engendra, o capitalismo.

A ANFOPE (Associação Nacional pela Formação do Profissional de Educação) defende que a reformulação dos cursos de formação de profissionais da educação se fundamente na concepção crítica, capaz de articular o conhecimento teórico com a prática educativa.

[...] a formação do profissional da educação procura superar a dicotomia teoria/prática, construindo a identidade desse profissional através de um trabalho coletivo interdisciplinar, articulado com o princípio da gestão democrática" (CONARCFE,1990, p.16). (Grifos do autor)

A desconexão na relação teoria e prática emerge de forma recorrente nos trabalhos analisados: Faria Júnior (1981), Tojal (1989), Silva (1989), Barella (1992), Shigunov (1992), Taffarel (1992 a,b), Sant’anna (1994), Costa (1994), Dias (1995), Guimarães (1995), Jeber (1995), Kunz (1995), Magalhães (1995), Marcellino (1995), Melo (1995), Macedo (1995), Luiz (1995), Nozaki (1995) Pires (1995 a, b), Rosa (1995), Santos (1995), Santos (1995 a), Silva (1995), Silva (1995 a,b), Colyniak (1996), Loureiro (1996), Lovisolo (1997), Borges (1997) e Pinto (1997).

Gallardo (1988), após o exame do currículo de 33 escolas de Educação Física do Estado de São Paulo e sua relação com a Educação Física na pré-escola e nas quatro primeiras séries do ensino de primeiro grau, concluiu que:

o conteúdo das disciplinas tem pouca relação com a Educação Física na pré-escola e nas quatro primeiras séries do ensino de primeiro grau; as disciplinas de orientação acadêmica dão grande ênfase aos aspectos

biológicos, o que, por si só, são insuficientes para a compreensão mais global da criança;

embora os cursos analisados sejam todos de licenciatura, as disciplinas de orientação pedagógica são as de menor carga horária.

Assim, com um pouco de bom senso, relativo conhecimento de desporto e muita intuição, o profissional de Educação Física é formado numa concepção artesanal do ensino em que o ensaio e o erro são normas metodológicas, em lugar de uma sólida formação e de uma intensa atividade reflexiva (COSTA, 1994). A passagem da condição de estudante para a de professor torna-se problemática à medida que aos professores em início de carreira pede-se que sejam capazes de assumir e realizar as mesmas tarefas que os professores experientes realizam.

Mau grado a generalidade dos cursos de formação de profissionais de Educação Física apresentem estruturas curriculares organizadas, segundo o modelo científico da racionalidade técnica (Lawson, 1990; Mackay, Gore & Kirk, 1990; Schein, 1973); apesar da maioria da investigação ancorar-se no paradigma behaviorístico, apesar de ainda a imensa quantidade de informação que tem sido desenvolvida sobre a eficácia pedagógica (Brophy & Good, 1986; Costa, 1988; Piéron, 1988; Siedentop, 1991) a verdade é que a inovação tecnológica ou modelo de formação behaviorístico não tem sido adotado na esmagadora maioria dos programas de formação inicial e em serviço[...]. Na realidade, os estudos sobre a formação de professores em Educação Física permitem constatar que

muitos programas de formação não atendem ao conhecimento científico disponível neste domínio (Bain, 1990; Locke, 1984; 1987); tanto os conteúdos como os procedimentos de formação têm sido selecionados com base na tradição, lógica, convicção pessoal e inspiração (Locke,1984, p. 5) (COSTA, 1994, p. 30).

Tani (1988) cita dois pontos como problemáticos na Educação Física: a falta de um corpo de conhecimento e a sua fragmentação. A concepção de ciência que predomina no âmbito da produção do conhecimento ainda é o das ciências naturais de matriz positivista. Uma das principais características desta concepção de ciência é a separação entre a teoria e a prática. Uma das conseqüências desta fragmentação é evidenciada na dissociação entre o que é aprendido e o que a realidade escolar permite. O trabalho continua sendo convencional, com ênfase nos aspectos físicos e no rendimento motor, onde a base é a competição esportiva, conforme indicam os estudos de Souza (1990). Neste mesmo sentido, Oliveira (1988) se reporta ao despreparo dos alunos para enfrentar a realidade do cotidiano, evidenciando também a falta de sustentabilidade na relação teoria e prática.

Valente (1997) ao pesquisar o modo como a disciplina Lazer e Recreação se situa no currículo dos cursos de formação de profissionais de Educação Física em Instituições de Ensino Superior Federais do Nordeste do Brasil, encontrou elementos, que não dão conta de formar o profissional competente nesta área do conhecimento, tais como: o isolamento dentro do currículo, não interagindo com os demais componentes curriculares, e uma dinâmica curricular ancorada na lógica formal, sem que permita aos sujeitos a apropriação do conhecimento pelo pensamento. Entretanto, em alguns cursos encontrou indícios de aproximação com uma Teoria do Conhecimento com base na dialética.

Pellegrini (1988) argumenta que os professores de Educação Física devem estar preocupados com a aplicação dos conhecimentos e os pesquisadores estariam voltados para a produção de conhecimentos relacionados à resolução de problemas da prática profissional. Este posicionamento está de acordo com o explícito na Resolução nº 03/87, que considera que além da educação não-formal, há a intenção de formar o profissional e pesquisador e, não apenas o professor de Educação Física.

Essa proposta reafirma a separação entre teoria e prática e desconsidera a possibilidade do professor refletir sobre a sua própria prática e através dela implementar modificações conforme propostas defendidas por Schön (1992), Elliot (1993) e Zeichner (1995).

Faria Júnior (1987) cita as contradições entre as diferentes concepções de profissional de Educação Física advindas da compreensão oficial sobre a formação do profissional que exigia o Técnico em Educação Física e Desportos (Dec. Lei nº 1.212/1939), e lhe conferia o grau de licenciado em Educação Física. Entretanto, no período compreendido entre os anos 60 e 70, houve o desprestígio do professor de Educação Física em favor do técnico que trabalhasse no desporto de competição. Os militares, ao promoverem o desporto de competição, buscavam um meio para exaltar a excelência do regime e desviar a atenção de críticas sobre a violação de direitos humanos vindas do exterior, principalmente da Europa.

Portanto, a formação do profissional deve garantir a unidade entre teoria e prática, como um projeto de formação cuja tarefa cabe à Universidade cumprir.

A atual LDB fundamenta a formação dos profissionais da Educação, conforme art. 6º, inciso I: “a associação entre teoria e práticas, inclusive mediante a capacitação em serviço e aproveitamento da formação e experiências anteriores em instituições de ensino e outras atividades.” Entretanto, o que causa preocupação é a excessiva praticidade emprestada aos fundamentos, em especial com relação ao treinamento em serviço, que poderá ser interpretado de forma enviesada pelos interessados em substituir a indispensável base teórica da formação pela simples prática em sala de aula ou pelas experiências acumuladas em instituições de ensino e, o que é mais grave, pelas experiências acumuladas em outras atividades que não sejam docentes.

Segundo Young (1990), a formação de professores, centrada em atividades essencialmente práticas, que se baseiam em "habilidades" e "competências", pode ser adquirida pela experiência. A consistente formação do professor, no entanto, exige o domínio da teoria que dá sentido à prática. Sustenta o autor que a teoria, como elemento de reflexão da prática e esta prática como interrogadora da teoria, fazem parte de toda experiência bem sucedida de formação de professores.

O distanciamento existente entre formação acadêmica e realidade escolar, reflete a dicotomia na relação teoria e prática, tem como pano de fundo, o trato com o conhecimento nos currículos dos cursos que formam os docentes. De um modo geral, os saberes são vistos como

resultado da produção científica e alheios à formação dos professores. Os professores, nesse sentido, desenvolvem uma relação de exterioridade com os saberes que possuem e transmitem e tendem a desvalorizar a formação acadêmica (formação inicial), à medida em que, ao se depararem com a realidade escolar, encontram um universo inteiramente novo, no qual, sem uma habilidade de problematização e compreensão do contexto educativo, não é possível a aplicação de teorias e técnicas. Entretanto, por mais que se radicalize a separação entre ensino e pesquisa, entre docentes e pesquisadores, por mais que se reduza a função do professor à simples transmissão de conhecimentos, o processo de formação nos saberes não se separa do processo de construção dos saberes, uma vez que a relação dos professores com os saberes não se reduz a mera transmissão de conhecimentos já sistematizados.

Tardif; Lessard; Lahaye (1991) afirmam que os professores tendem a valorizar o conhecimento que é produzido ao longo de sua prática e assim se expressam: “O que caracteriza, de um modo global, esses saberes práticos ou da experiência, é o fato de originarem da prática cotidiana da profissão, e serem por ela validados” (p.227). A esse respeito, também Elliot (1993) fala de uma espécie de estranhamento entre os saberes produzidos na academia, por especialistas, e aqueles produzidos e referendados pelos professores em sua prática docente.

Neste sentido, parece-nos mais apropriada a posição assumida por Carr; Kemmis (1988), que concebem a educação como práxis. Desse modo, argumentam, que são valorizados tanto os conhecimentos produzidos por teorias que recortam a realidade, quanto aqueles produzidos pelo professor no trabalho docente. O professor assume então uma prática reflexiva crítica em relação aos conhecimentos teóricos e a sua própria prática. Zeichner (1995) reconhece este posicionamento como válido, argumentando que os professores não podem assumir a posição de tarefeiros das idéias concebidas em outras partes.

No dizer de Marx (1984), o educador se forma na práxis. Seu fazer deve ser crítico, traduzindo-se numa articulação entre os aspectos teóricos e práticos. Assentados na reflexão permanente, a partir de pressupostos teóricos sistematizados sobre a prática pedagógica e a própria ação enquanto uma atividade prática, objetiva a transformação histórica do contexto social. Isso implica conhecer a realidade que se pretende mudar, pela ação e reflexão, molas propulsoras da práxis, sem a qual a ação do homem resulta em mera reprodução daquilo que se lhe apresentar no cotidiano.

A dualidade entre teoria e prática leva a destacar algumas premissas imprescindíveis para repensar a formação de docentes. São elas: buscar novas e possíveis formas de articular as diferentes áreas de conhecimento que constituem o núcleo básico da formação de professores; integrar a formação de professores na dinâmica da sociedade moderna, contemplando a multiplicidade de novas exigências técnicas e culturais; mudar a concepção dos cursos de formação de educadores, levando-se em conta que o paradigma da centralidade do conhecimento exige que os docentes tenham uma formação de qualidade, fundada na interdisciplinaridade, na flexibilidade curricular e no incentivo ao desenvolvimento de capacidades criativas, seja no ensino fundamental ou no ensino técnico; desenvolver condições para que novos conteúdos, relacionados ao processo de transformação contínua da sociedade, possam ser difundidos na escola através de recursos metodológicos mais criativos e diversificados.

Dar voz ao professor, ouvir o que tem a dizer a respeito dos seus saberes e dos saberes da formação acadêmica, retraduzidos em sua prática. Dar voz aos alunos, refletir a respeito das suas experiências anteriores à formação acadêmica e dos saberes que estes vêm acumulando em suas trajetórias. Buscar a formação de profissionais reflexivos (SCHÖN, 1992), a partir de uma nova compreensão do trato com o conhecimento na universidade e de uma nova visão dos saberes docentes.

A formação de professores para todos os níveis de escolaridade deverá ter como pressuposto a indissociabilidade entre teoria e prática [...] Os conteúdos curriculares dos cursos de formação e suas estratégias de ensino devem ser revistos, de modo a formar um professor capaz de preparar a clientela escolar para a cidadania e a convivência com a modernidade, sem perder de vista a dinâmica preservação/transformação da cultura nacional (BRASIL, 1993, p.872).

Os currículos devem ter como referência o trabalho pedagógico, significando produção de conhecimento, a teoria e a prática como núcleo integrador e o compromisso social. A esse respeito, concorda-se com Brzezinski (1994), quando afirma ser uma política salutar a integração entre disciplinas curriculares e a criação de espaços de aplicação do conhecimento específico, como também o fomento às atividades de extensão como marco unificador entre formação e realidade, evitando deixar para as atividades de estágio (prática de ensino) as únicas oportunidades de serem vivenciadas situações proximais de “trabalho”.

A questão está em criar mecanismos de atuação onde o futuro profissional possa realizar a confrontação entre teoria e prática e substanciar, através de suas próprias vivências, o caminho para a definição do profissional que deseja ser, ao invés de seguir a lógica que lhes é imposta. Hoje essa lógica aponta para um foco restrito, a escola. Acredita-se que a universidade não pode estabelecer esse vínculo estreito entre formação e mercado de trabalho, pois na área de Educação Física as possibilidades de atuação profissional crescem de forma excepcional, indo desde a escola até o ambiente hospitalar. Dessa forma, exige-se que esse profissional tenha uma amplitude de vivências, segundo o interesse do mesmo, que lhe permita flexibilizar o seu campo de atuação, e romper com a fragmentação que hoje perpassa a sua formação acadêmica, como bem explora Coelho (1994). O que importa é que se ofereçam oportunidades para que o aluno desenvolva a sua intencionalidade e dirija-se para práticas que o liberte da estreiteza de possibilidades que hoje se apresentam na sua vida acadêmica. Não basta formar pessoas que dominem uma área de conhecimento, os trajetos de um fazer científico e uma linguagem identificadora. É necessário formar homens, e isso consiste em lhes ofertar uma base civilizatória que lhes permita perceber o significado social do conhecimento.

Sobre a relação teoria-prática, Candau; Lelis (1990, p. 55) dizem que: “é indispensável que a teoria tenha nascido de uma prática real naqueles a quem se dirige, que seja tomada a consciência da prática ou, pelo menos, dos sentimentos que os animam e que eles gostariam de ver encarnados na prática”.

Em relação às questões específicas tratadas na literatura, quase nenhuma bibliografia se refere às disciplinas que integram a formação dos profissionais. Convém salientar que, dentre o material examinado, além das referências à Prática de Ensino, não foram encontrados trabalhos que abordassem a problemática interna das demais disciplinas. As experiências vividas na Prática de Ensino demonstram as contradições existentes nos currículos dos cursos de formação de profissionais em Educação Física, no Brasil.