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7. PROBLEMATIZAÇÃO: CONFLITO DE “COISAS

7.8 A relativização da coisa julgada material em face de outras

Vem de longa data a ponderação da coisa julgada material em face de outras regras e princípios, tanto na doutrina como na jurisprudência. Lembra Guilherme Jales Sokal171que, no ano de 2011, essa discussão recebeu incremento rico e muito aguardado: a manifestação do Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 363.889/DF, relatado pelo Min. Dias Toffoli, cujo acórdão, de 165 páginas, publicado em 16 de dezembro daquele ano, destacou, na respectiva ementa, a possibilidade da repropositura da ação de investigação de paternidade, quando anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes, foi julgada improcedente, por falta de provas, em razão da parte interessada não dispor de condições econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado não ter custeado a produção dessa prova. Acentuou aquele julgado que deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo. Segundo aquele julgado, não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável.

Aquele aresto permitiu o afastamento da coisa julgada material em prol do prestígio aos valores que lhe eram contrapostos, destaca Guilherme Jales Sokal, alertando, porém, que o precedente em comento tem de ser compreendido em seus devidos termos, para evitar o equívoco de aplicação desautorizada da tese firmada pela Corte, devendo ser apurada a ratio decidendi que guiou a prolação daquele leading case.

Tem-se observado atualmente uma espécie de realinhamento do sistema jurídico brasileiro com determinados institutos e técnicas do direito anglo-saxão, especialmente do direito norte-americano. A atividade de compreensão do sentido e do alcance dos precedentes consiste em exemplo emblemático desse fenômeno e reclama cuidadoso manejo dos conceitos com os quais o tradicional ensino jurídico romano-germânico ainda não se mostra

171SOKAL, Guilherme Jales. Coisa julgada, paternidade e parâmetros de ponderação. In: FUX, Luiz, Jurisdição Constitucional, Ed. especial: Belo Horizonte: Fórum, 2012.p. 139-142.

familiarizado, exigindo, pois, prudência do intérprete a respeito da denominada relativização da coisa julgada, assinala Sokal172.

A despeito dessa advertência de Guilherme Jales Sokal, chama-se aqui a atenção para a reconhecida possibilidade de permitir o afastamento da coisa julgada material, para a prevalência de princípios outros, maiores, insculpidos no texto constitucional pátrio. Naquele julgamento, o voto-vista do Min. Luiz Fux fez uma análise do conflito entre as normas constitucionais que tutelam a garantia da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI) e o princípio da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput), de um lado, e o direito fundamental à filiação (CF, art. 227, caput e § 6º) e a garantia da assistência jurídica integral aos desamparados (CF, art. 5º, LXXIV), de outro lado, destacando o status constitucional da proteção da coisa julgada material, mas vinculando-a, ainda que de forma indireta com o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e com o substrato social do direito à tutela jurisdicional efetiva (art. 5º, XXXV), pregando a pacificação dos conflitos sociais, para admitir, em resumo, a flexibilização da coisa julgada.

Discorrendo sobre a matéria, Leonardo Prieto Castro173 destaca que o fundamento

substancial da coisa julgada, na realidade, é eminentemente político, uma vez que o instituto visa à preservação da estabilidade e segurança sociais, revelando fato de equilíbrio social na medida em que os contendores obtêm a última e decisiva palavra do Judiciário acerca do conflito intersubjetivo. Chiovenda174 assentava a explicação da coisa julgada na exigência

social de segurança no gozo dos bens da vida.

Para Luiz Fux,175 no voto-vista aqui analisado, politicamente, a coisa julgada não está comprometida nem com a verdade nem com a justiça da decisão. Para ele, uma decisão judicial, malgrado solidificada, com alto grau de imperfeição, pode, perfeitamente, resultar na última e imutável definição do Judiciário, porquanto o que se pretende através dela é a estabilidade social.

172Idem, ibidem.

173PRIETO CASTRO, Leonardo. Derecho procesal civil, 1946. V. 1, p. 381. In: FUX, Luiz, Jurisdição

Constitucional, Ed. especial: Belo Horizonte: Fórum, 2012.p. 153.

174CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, 1942, v. 1, p. 512-513. In: FUX, Luiz,

Jurisdição Constitucional, p. 153.

175FUX, Luiz. Jurisdição Constitucional. Democracia e Direitos fundamentais. Ed. especial: Belo Horizonte:

Mas, pondera ele, citando Adriano Pilatti,176 nenhuma norma constitucional, nem mesmo a regra da coisa julgada ou o princípio da segurança jurídica, pode ser interpretada isoladamente:

A Constituição brasileira em vigor caracteriza-se como um típico compromisso entre forças políticas divergentes, que em 1988 se uniram para definir um destino coletivo em comum, balizando a atuação dos poderes políticos, através das regras e dos princípios definidos no pacto constitucional. Trata-se de compromisso porquanto a base plural da sociedade, no momento constituinte, assinalava a relevância a valores díspares, sem uma univocidade ideológica, provocando a convivência, por exemplo, da liberdade de expressão (CF, art. 5º, IV) e do direito à intimidade (CF, art. 5º, X), da proteção do consumidor (CF, art. 5º, XXXII, e art. 170, V) e do princípio da livre iniciativa (art. 170, caput), e de outros casos mais.

Em outras palavras, sustenta Luiz Fux,177 cabe ao intérprete conciliar as normas constitucionais cujas fronteiras não se mostram nítidas à primeira vista, assegurando a mais ampla efetividade à totalidade normativa da Constituição, sem que qualquer de seus vetores seja relegado ao vazio, desprovido de eficácia normativa.

Reportando-se ao ensinamento de Cláudio Pereira de Souza Neto,178 destaca Fux que todo o caminho lógico a ser percorrido para a harmonização de comandos normativos, indicando soluções opostas, impõe ao aplicador da Constituição a reconstrução do sistema de princípios e regras exposto no seu texto, guiado por um inafastável dever de coerência.