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7. PROBLEMATIZAÇÃO: CONFLITO DE “COISAS

7.13 A sentença como norma jurídica e sua revogabilidade

Apesar de divergências doutrinárias, uma sentença deve ser enxergada como norma jurídica. Não se olvide, a propósito, a disposição contida no art. 468 do CPC:

Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.

Ou, como está no art. 503 do Novo CPC, de 2015, a vigorar a partir de 16 de março de 2016:

Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida.

Na hipótese do julgamento da mesma causa, por mais de uma vez, daí decorrendo decisões díspares, antagônicas, contraditórias, ambas transitadas em julgado, pode-se dizer

185NUNES, Leonardo Silva; THIBAU, Tereza Cristina Sorice Baracho. Panorama e tendências sobre a tutela

jurisdicional de direitos coletivos. In: MPMG Jurídico. Revista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, Edição nº 23, 2012.

que ambas, nos termos dos dispositivos colacionados, têm força de lei. Neste caso, qual delas deve prevalecer?

Tratando da matéria na esfera do processo penal, anotou Jorge Alberto Romeiro186que esse caso de inconciliabilidade de julgados, é determinante da revisão no direito positivo italiano, mas que esse instituto, como notou Manzini, nem sempre tem o fim de reparar um erro judiciário, pois a dita inconciliabilidade deve sempre ser resolvida pela prevalência do julgado mais favorável ao condenado. A revisão, como escreveu Manzini,

[...] nel caso dell’inconciliabilità dei giudicati, se talora fornisce il

mezzo per eliminare l’errore, talaltra può far prevalere l’erroneo sul

giusto, perchè nel detto caso la legge mira sopra tutto a far cessare um intollerabile contrasto giurisdizionale.

Segundo Carnelutti,187

No puede excluirse la hipótesis del conflito entre cosas juzgadas. No hay necessidade de agregar que el tal conflito debe resolverse bajo pena de hacer incurable la litis, lo cual no se puede obtener de outro modo que admitiendo la extinción de la eficácia de la primera decisión por efecto de la segunda.

Ou, para Chiovenda,188verbis:

Quanto alla contrarietá della sentenza ad un precedente giudicato, per diritto romano era questo un caso di nullitá della sentenza, per cui il primo giudicato conservava il suo vigore. Nel nostro sistema la contrarietà dei giudicati può farsi valere come motivo di revocazione (quando una sentenza non abbia pronunciato su questa eccezione, art. 494, n. 5) o come motivo di cassazione (quando pronunció sulla eccezione relativa, art. 517, n. 8): ma decorsi i termini senza che

l’impugnativa sai proposta, questa nullità é sanata, onde il primo

giudicato perde valore perchè il secondo giudicato implica negazione di ogni precedente giudicato contrario.

No Direito brasileiro, a revisão criminal dos processos findos será admitida nas hipóteses do art. 621 do Código de Processo Penal – CPP, em desfavor do réu jamais foi admitida, atribuída legitimidade para requerê-la apenas ao próprio réu ou ao procurador 186ROMEIRO, Jorge Alberto. Elementos de direito penal e processo penal. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 40-41.

In: FUX, Luiz. Jurisdição Constitucional, p. 310-311

187CARNELUTTI, Francesco. Instituciones del processo civil. Buenos Aires: Europa-América, 1989, v. 1, p.

146. In: FUX, Luiz. Jurisdição Constitucional, p. 313

188CHIOVENDA, Giuseppe. Principii di diritto processuale civile. Napoli: Jovene, 1923, p.900. In: FUX, Luiz.

legalmente habilitado ou, no caso de morte do réu, ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, não dispondo o Ministério Público e o ofendido de legitimação para tanto (art. 623 do CPP). Nossa legislação, por isso mesmo, não admite a revisão criminal pro societate.

A propósito, curioso caso foi submetido a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, através do Habeas Corpus nº 101.131: um indivíduo foi submetido a dois processos penais pelo mesmo fato, em ambos restando condenado; no primeiro feito, a uma pena maior do que no segundo feito, tendo ambas as sentenças condenatórias transitado em julgado.

Já que não era hipótese legal de revisão criminal e como inadmissível a revisão em favor da sociedade, em voto vencido, proferido nesse julgamento, o Min. Luís Fux pontuou que, em sendo também norma jurídica, a decisão proferida no segundo processo, deveria ser respeitada. Segundo lição de Barbosa Moreira,189 trazida a lume naquele voto, ”na sentença formula o juiz a norma jurídica concreta que deve disciplinar a situação levada ao seu conhecimento”, de sorte que a sentença transitada em julgado é a norma jurídica para o caso concreto.

Naquele caso, havia, pois, duas decisões, de igual hierarquia e especialidade, impassíveis de impugnação, impondo-se, face à natureza normativa dessas decisões a aplicação do princípio norteador do conflito aparente de normas penais no tempo, vale dizer, deveria prevalecer a norma posterior sobre a anterior. Foi a solução hábil encontrada pelo Min. Fux,190 para não prejudicar o réu, embora tivesse ficado vencido naquele julgamento A

propósito, conhecida é a regra contida no § 1º do art. 2º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB):

A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

Mutatis mutandis, a decisão, no processo coletivo, de procedência do pedido, transitada em julgado, posterior no tempo, há de prevalecer em detrimento da decisão de improcedência do mesmo pedido na ação individual, dado o caráter de norma que se lhes atribui.

189MOREIRA, José Carlos Barbosa. Eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada. Revista de Processo, n.

34, p. 279. In: FUX, Luiz. Jurisdição Constitucional, p. 311.

No campo do processo civil, Cândido Rangel Dinamarco191 sustenta a prevalência da segunda coisa julgada, ressaltando essa possibilidade de um ato estatal revogar o anterior. A sentença posterior, por não ter sido rescindida no prazo legal, teria o condão de revogar a sentença anterior. Baseando-se nas formulações de Liebman, assim doutrina Dinamarco:192

Disse ele, realmente, que uma sentença proferida depois de outra tem a eficácia de cancelar os efeitos desta, como todo ato estatal revoga os anteriores. Assim como a lei revoga a lei e o decreto revoga o decreto, assim também a sentença passada em julgado revoga uma outra, anterior, também passada em julgado. Estamos, pois, fora do campo específico do direito processual, em uma visão bastante ampla dos atos estatais de qualquer dos três Poderes e sempre segundo uma perspectiva racional e harmoniosa do exercício do poder. Na nova lei há uma nova vontade do legislador, que sobrepuja a vontade dele próprio, contida na lei velha. No novo decreto, nova vontade da Administração. Na nova sentença, nova vontade do Estado-juiz.

Igualmente, Pontes de Miranda193 entende prevalecer a segunda coisa julgada sobre a

primeira, porque a norma processual somente prevê a possibilidade de desconstituir a segunda coisa julgada dentro de um prazo específico e, se isso não ocorrer, a anterior é revogada pela posterior. Confira-se a lição:

Dissemos que falta o segundo elemento ‘sentença trânsita em julgado que se quer rescindir’, se precluiu o prazo para a rescisão de tal

sentença. Uma vez que se admitiu, de lege lata, com o prazo preclusivo, a propositura somente no biênio a respeito da segunda sentença, o direito e a pretensão à rescisão desaparecem, e a segunda sentença, tornada irrescindível, prepondera. Em consequência, desaparece a eficácia da coisa julgada da primeira sentença. Esse é um ponto que não tem sido examinado, a fundo pelos juristas e juízes: há duas sentenças, ambas passadas em julgado e uma proferida após a outra, com infração da coisa julgada. Se há o direito e a pretensão à rescisão da segunda sentença, só exercível a ação no biênio e não foi exercida, direito, pretensão à rescisão e ação rescisória extinguiram-se. A segunda sentença lá está, suplantando a anterior.