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Um Manifesto Literário: A Rainha dos Cárceres da Grécia

2. A Representação de Alguns Problemas de Representação

Há um aspecto fundamental na voz de Maria de França: sua loucura. Submetidos a esta, mas não menos importantes, estão o tom paródico da incorporação do discurso radiofônico e dos jargões jurídico e médico. Falemos primeiro da incorporação do discurso radiofônico. A personagem Maria de França assimila em sua voz os jargões dos locutores de rádio, veículo à época preponderante:

Ninguém me ama? Ninguém me quer? Quer sim. Alô, ouvintes, ouçam, vocês estão por longe, fora do Globo da morte, mas agora abro a porta de aço e vou até aí, meu homem e anjo ordena,

vou de chapéu de palha e entro na ciranda, coroa de pessoas, dedos dados, jogo flores nos telhados, no rio e nas ruas do Recife (LINS, 1986: 25).

A rádio é colocada como a “voz da cidade” (LINS, 1986: 78), e chega à periferia como apaziguadora, lenitivo, balsâmico. Citando um estudo sociológico, o ensaísta diz que “o silêncio da cidade representa uma forma de negação do ser; para existir, é necessário que a cidade fale” (Idem: 78). Esse estatuto privilegiado da rádio propicia à cidade uma unidade artificial circunscrita pelo alcance das ondas, metonímia da relativa unidade nacional mantida até hoje pelos meios de comunicação.

O tom de paródia da narrativa radiofônica e de tudo o que ela representa será tecido na voz de Maria de França, por meio da assimilação de dois aspectos próprios a esse veículo de comunicação, a saber: a rádio, enquanto instrumento da indústria cultural, exerce seu papel de controle ideológico pela onipresença; além disso, a estrutura da rádio implica em uma voz que não recebe resposta, e que se impõe de modo fundamentalmente impessoal, apesar da retórica utilizada para seduzir o ouvinte. Esses dois aspectos da rádio possibilitam em sua apropriação irônica no discurso de Maria de França não apenas a paródia crítica mas também recursos efetivamente narrativos. Por um lado, a onipresença da rádio, que a personagem e narradora simula ao falar, permite um olhar generoso por parte de Maria de França sobre a cidade e sobre os personagens que se relacionam com ela; por outro, a voz que se comunica sem obter resposta, recurso possivelmente totalitário e ideológico na rádio, é, na apropriação por parte de seu discurso narrativo, a expressão de uma desolação, abandono e falta de resposta na sociedade real.

Portanto, as tensões do veículo radiofônico são introjetadas na forma, desvelando o que se esconde dentro de determinadas práticas sociais automatizadas. A tradução de uma linguagem para outra – seja do ensaio literário para a literatura ficcional, seja da rádio para a narrativa literária – desvela, pela própria presença dos elementos de resistência dessas traduções, uma possibilidade de implosão de suas contradições de fundo social e artístico.

Demonstrando mais uma vez sua preocupação com o sistema literário brasileiro, o ensaísta fictício faz uma comparação fundamental dessa voz narrativa com o narrador Riobaldo, de Grande sertão: veredas, e com Paulo Honório, de São Bernardo. Se em São Bernardo o escrito de um homem rudimentar deve ao mesmo tempo alcançar alto nível expressivo – impasse embaraçoso “que ascende ao plano temático da obra” (LINS,

1986: 69), em Grande Sertão: veredas há uma oralidade declarada que, no entanto, é contestada pela surpreendente complexidade do texto apresentado.

Essa rápida exposição serve ao ensaísta como contraponto à peculiaríssima narrativa de Maria de França, estabelecendo diferenças e expondo as novas necessidades que se impõem ao escritor de sua época. A incorporação do discurso radiofônico por parte de Maria de França serve para recolocar no centro do debate a contraposição entre oralidade e escrita, já presentes tanto na forma de Grande Sertão: veredas quanto na de São Bernardo. Atendendo a um período histórico diferente, a recolocação do problema, que se dá na forma do romance em uma contraposição a essas realizações anteriores, pode ser rapidamente resumida – assumindo alguns riscos – do seguinte modo: em A Rainha dos Cárceres da Grécia não está posta em questão a dificuldade com a língua escrita de Paulo Honório, ou a primazia da vivacidade oral de Riobaldo; o contexto é outro, e a indústria cultural assustadoramente crescente durante a ditadura militar exigia outras soluções formais. A oralidade é colocada em questão por Osman Lins ao problematizar sua apropriação por parte dos meios de comunicação de massa, que começavam a invadir com força a cultura popular – questionamento feito pela assimilação e tradução investigadas acima. A escrita, similarmente, aparece problematizada também de modo diferente do adotado na obra de Graciliano e de Rosa, com uma ênfase maior no poder do Estado que subjaz à linguagem institucional e oficial em suas contradições, hipocrisias e fraquezas.

A crítica à linguagem institucional e oficial, junto a seus recursos retóricos e obscurantistas enquanto mecanismo de dominação, aparece, em sua expressão mais direta, na assimilação irônica por parte de Maria de França dos discursos jurídico e médico. Diz Maria de França:

Se estou ante o Juiz e o juiz me fala, conclui-se, ouvintes, que o juiz tem boca e eu ouvidos. Como falar, ele, despojado de seu orgão emissor, a alguém que, por dolo ou má fé, privou-se de ouvidos? (...) Portanto, não só fica provado que ele fala, e que fala a alguém na situação de receber sua judiciosa preleção, como, para que não se conteste, ou negue, ou ab juris se tente distorcer os fatos, transmito para longe das janelas seladas e lacradas deste seleto recinto o seu princípio – sábio, pois vem de doutor – de que toda e qualquer lei, minha filha, se for clara, atua contra o réu, pois aí é pão-pão e queijo-queijo, não havendo escapatória ou apelação possível. (...)A lei, distintos jurados, tem de ser escrita numa língua nobre, se possível morta e enterrada, desconhecida das gentes, porque senão perde a graça. O modelo das leis são o oráculo e cada servidor será um interprete. Por isso, todos são iguais perante a lei e, sem razão alguma, pode-se

ter ganho de causa ou ser absolvido, tudo dependendo de nós, seus humildes guardiões e hermeneutas uti posidetis ( LINS, 1986: 92).

Percebe-se, na passagem acima, que Maria de França dirige-se aos “ouvintes”, e diz que envia suas transmissões para fora “das janelas seladas e lacradas deste seleto recinto”, ou seja, o tribunal, difundindo os princípios que o regem por meio do que seria uma apropriação popular do veículo de comunicação, aqui apenas simulada. Maria de França incorpora a linguagem oficiosa para satirizá-la, colocando-a à mostra, em tom de burla, para aqueles necessitados – como ela mesma – para os quais as leis são incompreesíveis e em nada favorecem.

Como disse Bakhtin em Da Pré-história do discurso romancesco, o discurso da paródia é duplo:

duas linguagens, que nele se cruzam, estão relacionadas umas com as outras, como réplicas de

uma diálogo; trata-se de uma luta entre linguagens e entre estilos de linguagens. Porém, não se

trata de um diálogo do sujeito, nem de uma abstração semântica, e sim do diálogo entre dois pontos de vista linguísticos que não podem se traduzir reciprocamente (BAKHTIN, 1990: 390).

No caso de Maria de França, o que temos é a luta entre seu ponto de vista de classe e a linguagem jurídica; essa tensão, por sua vez, encontra-se mediada pela forma radiofônica.

Similarmente, a linguagem médica que Maria de França imita instaura uma incompreensão que vai muito além da dificuldade com as bulas. Assim como a paródia à linguagem jurídica descende da incursão da personagem em um inferno burocrático e corrupto, a paródia à linguagem médica acompanha o percurso da personagem pelos hospitais, em busca de um atendimento que sempre se prorroga indefinidamente:

Abre-se a porta e avanço pelo centro, cara terapêutica esse alguém de quem falo, olhos sedativos, voz de beladona, manda sentar-se a paciente, tudo bem com você?, que acha a ouvinte?, se estivesse tudo bem eu aqui? Aqui?

– Respire. Abra a boca. Cristais ausentes. Agora, gemer. Abra os olhos. Esclerótica e retina. – Doutor! A passiflora responde pelo epitélio mucoso?

– Completamente. Do reto à árvore pulmonar. Respire. Abra a bunda. Parasitas presentes e cromatina uniforme. Volte outro dia (LINS, 1986: 90).

Os termos médicos são aqui abertamente parodiados, no sentido que dá Bakhtin à paródia, e toda a situação é ironizada de modo evidente, pondo em relevo o descaso médico e a utilização de uma linguagem que, assim como a jurídica, se encontra distante da população; do mesmo modo, permanece a referência aos “ouvintes”, mantendo o tom de praça pública de seu intento.

Como já dissemos anteriormente, tanto a assimilação da rádio quanto dos discursos oficialescos vistos acima estão submetidos a um grande tema: a loucura de Maria de França. Nesse ponto, além da crítica social, está presente também, de forma profunda e contundente, uma postura frente à literatura, da qual trataremos a seguir.