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A Crítica Literária e Social de A Rainha dos Cárceres da Grécia

1. A Crítica Literária Brasileira

Começaremos falando do surgimento da crítica literária enquanto prática corrente no mundo ocidental, e esboçando seu surgimento e desenvolvimento em terras brasileiras; faremos isso segundo um enfoque que, esperamos, nos permita entrar com mais segurança na análise do romance e do modo como sua concepção crítica está ali delimitada.

A crítica literária está hoje dividida entre uma prática jornalística e outra acadêmica, com raros momentos de confluência dos dois espaços dentro dos cadernos de cultura semanais. A prática jornalística, em sua grande maioria, 1) distorce as obras em um intento publicitário e ideológico, ligado à indústria do livro, ou 2) as denigre de modo pouco fundamentado e espetacular. A crítica acadêmica, por sua vez, está distante da sociedade e acaba, em geral, permanecendo desconhecida até mesmo por parte dos pesquisadores que trabalham em outras áreas dentro da academia, segundo uma compartimentalização do conhecimento que dificulta o diálogo e entrava sua devida difusão. Como disse o próprio Osman Lins em uma entrevista, respondendo sobre o que pensava sobre a crítica de seu tempo: “a jornalística, industrializada (...) a universitária, restrita a círculos intelectualizados”(LINS, 1979: 267).

Não obstante, a crítica literária possuiu importância decisiva em determinados momentos da história ocidental. Enquanto mediação judicativa, reguladora e opinativa, ela fez parte, na Inglaterra, do surgimento, por parte da burguesia, de uma “opinião pública polida, informada”, “contra as imposições arbitrárias da autocracia” (EAGLETON, 1991: 4). Com seu forte desenvolvimento capitalista e industrial, a Inglaterra, segundo T. Eagleton, tornou-se o local onde, pela primeira vez, nos primórdios do século XVIII, a

literatura serviu ao movimento de emancipação da classe média como instrumento de aquisição de amor-próprio e de articulação de suas exigências humanas contra o Estado absolutista e uma sociedade hierarquizada. O debate literário, que anteriormente servira como forma de legitimação da sociedade cortesã nos salões da aristocracia, tranformou-se numa arena que preparou o caminho para a discussão política nas classes médias (EAGLETON, 1991: 4).

No Brasil, a crítica surge no início do romantismo, em seu propósito de edificação nacional. O intuito de formar uma literatura brasileira criou, necessariamente, parâmetros sobre os quais o passado deveria ser resgatado, e sobre os quais o presente e o futuro literários deveriam ser edificados a partir de então. Esses parâmetros críticos surgem, ou melhor, são introduzidos pela primeira vez na Résumé de l´histoire littéraire du Portugal suivi du résumé de l´histoire littéraire du Brésil, de 1826. Escrita pelo francês Ferdinand Denis, a obra, segundo Antonio Candido, “fundou a teoria e a história de nossa literatura”(CANDIDO, 2002: 21). Estava baseada no princípio, à época influente, de que um país com uma fisionomia geográfica e étnica como o Brasil deveria ter uma literatura que lhe retratasse os costumes e as peculiaridades próprias, dando

atenção especial ao índio – que, segundo Denis, era nosso habitante primitivo e autêntico. Baseado nessa premissa, indicou os poemas de Basílio da Gama – Uraguai – e Santa Rita Durão – Caramuru – como obras fundantes de nossa história literária: “até o fim do romantismo, a crítica se baseou nas suas idéias e não fez mais do que glosá-las, parecendo ter como pressuposto um de seus conceitos fundamentais: ‘A américa deve ser livre na sua poesia como no seu governo’ ”(CANDIDO, 2002: 22).

Cresce então o desejo de ter autonomia literária, bem como política. Com a guerra do Paraguai, duas questões fundamentais se colocam: o debate sobre a abolição do regime escravagista, e a propaganda republicana, que alcança em 1889 o fim da Monarquia. Nessa época, a vida cultural torna-se movimentada, começam a chegar as idéias do positivismo e surge Sílvio Romero, polêmico e controverso. Romero promoveu uma campanha contra o romantismo, mostrando-o como algo que obliterava o pensamento sadio e prejudicava o avanço da razão, do progresso e da compreensão do país. Em seu livro de 1880, chamado A Literatura Brasileira e a Crítica Moderna, Romero propunha que a literatura deveria acompanhar os novos tempos; esse impulso modernista e ferrenhamente combativo o destaca dentro de sua época. Como afirma Antonio Candido, “Sílvio Romero errou quanto às sugestões que fez para a renovação literária, mas os seus escritos valem como ‘sintoma’, para usar o seu conceito, de um esgotamento da estética romântica” (CANDIDO, 2002: 84).

Contemporâneo de Sílvio Romero e de outros críticos importantes, como José Veríssimo e Araripe Júnior, Machado de Assis também exerceu a atividade de crítica literária: seus textos, como “O Ideal do Crítico” e “Literatura Brasileira: Instinto de Nacionalidade”, testemunham algumas das importantes inquietações daquele que viria a consolidar nosso sistema literário. Antes de tudo, lamenta o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas a inexistência, em seu tempo, de uma prática crítica consistente, duradoura, que estabelecesse um diálogo sério e responsável com os escritores, servindo como uma espécie de “musa” e de “farol seguro” sem o qual a produção termina correndo o risco de naufragar:

estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade; estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada, – será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos; condenai o ódio, a camaradagem, a indiferença – essas três chagas da crítica de hoje, – ponde em lugar deles a sinceridade, a solicitude e a justiça, – é só assim que teremos uma grande literatura (ASSIS, 1962: 12).

O crítico deveria meditar profundamente sobre a obra, procurando não a desqualificação desonrosa ou o elogio interesseiro, adulador – ou mesmo fruto de uma impressão apressada –, mas sim os argumentos bem embasados, de que nos dá um bom exemplo o próprio Machado, em seu “Instinto de Nacionalidade” (1962). Elogiando e defendendo com entusiasmo a busca pelos temas indianistas, o autor não se exime, no entanto, de demonstrar que reconhecer o espírito nacional unicamente nas obras “que tratam de assunto local” é um erro e um empobrecimento: “perguntarei (...) se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu tem alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês” (ASSIS, 1962: 135). A idéia é simples e evidente: falando de outros sítios, não poderá o espírito nacional manifestar-se tão bem quanto no tratamento dos temas locais, senão até com maior clareza a respeito do que somos enquanto nação, e de nossa condição frente aos outros países? O que se critica aqui são aquelas tendências locais e nacionalistas que terminam paradoxalmente impedindo o entendimento de nossa realidade.

No século vinte, com preocupações semelhantes a essas, mas adaptadas à sua época – quando algumas tendências críticas regressivas permaneciam, enquanto outras estreavam com a força perversa da novidade estrangeira – encontramos Antonio Candido. Desde sua estréia como crítico na imprensa, em 1943, com o artigo intitulado Overture, Candido se mostrava preocupado em se destacar da crítica “impressionista” que então prevalecia: “a tarefa do crítico será porventura mais de integrar a significação de uma obra no seu momento cultural do que, tomando-a como um pretexto, procurar tirar dela uma série de variações pessoais” (CANDIDO, 2002a: 25).

Com o tempo e o desenvolvimento da crítica literária dentro das universidades brasileiras, Candido passa a opôr-se também, inevitavelmente, ao estruturalismo e ao formalismo, tendências que A Rainha dos Cárceres da Grécia também critica implícita e explicitamente. A oposição de Candido fica clara em texto resgatado recentemente na excelente antologia de Vinicius Dantas – Textos de Intervenção –, no qual temos a oportunidade de ver duas introduções diferentes ao célebre ensaio De cortiço a cortiço. Com o título Duas vezes a passagem do dois ao três, a recuperação dessas introduções – depois editadas para a versão final a que hoje temos acesso – permite que analisemos com clareza o modo como se posiciona Candido frente aos procedimentos estruturalistas.

Nessas duas introduções, Candido polemiza a respeito do também famoso ensaio de Affonso Romano de Sant`Anna sobre O Cortiço, de viés estruturalista. Embora reconheça a análise estrutural enquanto momento necessário e útil ao estudo acurado, Candido entende que deve haver algo mais que permita desvelar as implicações sociais das estruturas que porventura se encontrem na análise formal, caminhando na direção a que chegou “Lukács e depois Adorno ao ver a forma enquanto verdadeira manifestação do social na obra” (CANDIDO, 2002a: 54) e abrindo a possibilidade de análises ideológicas mais profundas. Os estratos ideológicos da obra não deveriam ser vistos como meras manifestações reflexas. A obra, ela mesma manifestação ideológica, dialoga com outras esferas da superestrutura, entre as quais o próprio curso vivo da língua. Não por acaso, o ensaio De cortiço a cortiço toma como ponto de partida de análise da obra um pequeno ditado popular que abre novas perspectivas de interpretação ao texto, em um procedimento que Roberto Schwarz, evocando W. Benjamin, chamou de “estereoscópico” (SCHWARZ, 1999: 28).

Candido não tanto opõe quanto assimila ao conceito de estrutura o conceito de função em artigo de 1972 (CANDIDO, 2002a), defendendo que a estrutura da obra e a História não são mutuamente exclusivos. A função da obra, ou seja, o processo de sua produção dentro de um contexto social, histórico e econômico específico deveria ser considerado enquanto momento necessário a toda atividade crítica: “a obra literária significa um tipo de elaboração das sugestões da personalidade e do mundo que possuí autonomia de significado: mas esta autonomia não a desliga das suas fontes de inspiração do real, nem anula sua capacidade de atuar sobre ele” (CANDIDO, 2002a: 85). Para Candido, aquele que estuda a autonomia da obra deve se perguntar como aquela obra chegou a essa autonomia – historicizando a própria procura por autonomia dentro da arte – enquanto um dado histórico como qualquer outro – e vendo de que modo e sob quais critérios ela é considerada autônoma em um determinado momento.

Um modo de perceber isso é atentar para a própria busca de independência e autonomia da literatura brasileira, delineada por Candido em seu Formação da Literatura Brasileira. Avesso aos reducionismos e às soluções fáceis, Candido procura ver, ao longo dos textos de nossa história literária, contradições sociais internalizadas na forma – ao invés de optar por uma leitura nacionalista ou colonialista das obras, que as dividiria de modo estanque. Dessa maneira, o crítico percebe no cosmopolitismo de muitas das manifestações da literatura brasileira algo que pode tanto assumir uma atitude alienadora, que nos afaste de nossa realidade nacional, quanto significar uma

maior compreensão de nosso papel na conjuntura mundial, assumindo assim uma qualidade emancipadora; do mesmo modo, o regionalismo assume feição positiva enquanto valorização interna dos traços particulares e populares de nossa cultura, mas pode ser prejudicial quando compromete a visão real do país dentro de sua complexidade efetiva.

Não é por acaso que encontramos nessa formulação reflexos tanto das proposições de Machado, responsável segundo Candido pela consolidação do sistema literário brasileiro, quanto de Sílvio Romero – guardadas as inevitáveis ressalvas – cujo repúdio ao nacionalismo artificioso permitiu, também nas palavras de Candido, “compreender tão bem a literatura como feito social e, no caso do Brasil, sua função na formação da consciência do país” (CANDIDO, 1980: XXIII).

Em vários sentidos, Candido resume o retrato do crítico feito por Machado no trecho transposto mais acima: sem malícia, desrespeito e nutrido do mais honesto sentimento de avaliação, Candido influiu na produção do seu tempo, alcançando, portanto, o objetivo máximo do crítico. Para ilustrar essa assertiva, tomemos mais um texto resgatado em Textos de Intervenção, datado de 1944. Nele, Candido aponta para a tendência na poesia brasileira da época para o lirismo intimista e alienado, privilegiando de forma totalitária e excessiva “a carícia poética, a solução feliz e sintética; a notação rápida; o despojamento excessivo (...) a fim de criar beleza acessível a uma elite intelectual e social enervada, gasta, ou a uma classe perdida pela sua imitação” (CANDIDO, 2002a: 132). Essa consciência estética, assim delimitada, havia feito com que – em artigo datado um ano antes – o crítico recomendasse ao estreante João Cabral de Melo Neto, “o trabalho de olhar um pouco à roda de si, para elevar a pureza de sua emoção a valor corrente entre os homens” (CANDIDO, 2002a: 141), de modo a escapar do “individualismo e personalismo narcisista” que sua primeira publicação deixava entrever. Não obstante, o artigo é extremamente elogioso, evitando deixar de ver as qualidades de “talento feito” – como diz Machado – desse poeta que, como que atendendo as indicações de Antonio Candido, iria se tornar o autor de Vida e Morte Severina.

Passamos agora à análise do romance de Osman Lins, para que estas idéias introdutórias sejam desenvolvidas com maior profundidade, à luz da complexa problematização de A Rainha dos Cárceres da Grécia.