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Um Manifesto Literário: A Rainha dos Cárceres da Grécia

3. Literatura e Loucura

Dentro dos hospícios de Recife, local onde prevalece a “imundice”, a “comida ruim” e a “venda de cadáveres”, ocorre um fenômeno curioso: a linguagem de Maria de França volta-se para uma sobriedade lógica e descritiva que, “sob a aparente normalidade, expressa o horrível da loucura – e do isolamento” (LINS, 1986: 100). Essa sobriedade de Maria de França dentro do hospício é um indício de que sua loucura, supostamente manifesta em sua fala, está lucidamente consciente a respeito dos parâmetros e critérios sobre os quais se determina a loucura, ou seja, sobre aquilo que socialmente se considera como “razão”. Esse distanciamento de sua própria loucura, presente na personagem, desvela atrás de si, inevitavelmente, um forte questionamento da racionalidade aceita enquanto norma, na qual estão presentes muitos dos “mecanismos de dominação” de nossa sociedade ocidental. Perguntar-se sobre a história da loucura talvez seja um bom modo de começar a perceber os fundamentos da profunda crítica de Osman Lins.

A criação das clínicas de tratamento é um fenômeno recente, moderno, e contém em si algumas das chaves do modo como constituímos nossa sociedade moderna. Para Michael Foucault, até a Revolução Francesa inexistia a categoria psiquiátrica de doença mental (MACHADO, 2004: 15): a loucura era considerada simplesmente doença como tantas outras, situada no “jardim das espécies patológicas.” Apenas a partir do século XVIII e XIX, surge a psicologização da loucura, resultado de um processo de “humanização de regimes punitivos que, na época da Revolução Francesa, instaurou

novas técnicas sociais de controle e de assistência. Isto é, foi menos o exame médico que individualizou o louco, constituindo-o como doente mental, do que a organização, o funcionamento e a transformação das instituições de reclusão” ( MACHADO, 2004: 19).

Diz ainda Foucault, comparando o classicismo com a modernidade: “É originária a cesura que estabelece a distância entre razão e não-razão: quanto à captura da não-razão pela razão, para lhe arrancar sua verdade de loucura, ela deriva de longe da primeira” (MACHADO, 2004: 20). Baseado nessa idéia, Foucault defende que a psicologia jamais enunciará a verdade da loucura, porque é a loucura que detém a verdade da psicologia. Essa afirmação procura evidenciar a importância da linguagem da loucura e da transgressão – presentes em parte na literatura. A linguagem, enquanto parte da loucura de Maria de França, representa a possibilidade de ruptura e de transgressão tanto dos engessamentos da expressão convencional quanto das estruturas lógicas do tempo e espaço da maneira como dispostas pela razão dominante, incluindo a história oficial; nessa ruptura, indo aos limites de sua execução, a linguagem é encenada ao invés de instrumentalizada.

Essa encenação, nos vários níveis dispostos por Lins, está elaborada justamente para problematizar, a partir de dentro da própria enunciação, uma questão que permeia nossa sociedade sob as mais diversas formas, e que está em seus alicerces. Vivemos em uma organização social baseada em uma racionalidade que não se questiona e não se historiciza, aparecendo como fundamento absoluto, a priori e inquestionável. A Rainha dos Cárceres da Grécia denuncia o que se esconde por trás desse fundamento e de sua automatização.

É quando percebemos a razão como algo que constitui sua estrutura pela via da “exclusão dos elementos heterogêneos e da concentração monádica sobre si mesma” (HABERMAS, Cit. por MACHADO, 2004: 56), ou seja, apenas como um dos momentos possíveis no pensamento do homem, e não necessariamente seu objetivo final, que começamos a entender grande parte do propósito crítico do livro de Lins. Ao processo de valorização da razão instrumental (HORKHEIMER, 2002), intensificado a partir do Iluminismo, subjaz a exclusão de tudo aquilo que não se ajusta a ela, prostituindo a racionalidade em favor da barbárie e do processo de reificação da arte, que passa a ser algo distante, sujeito à contemplação e não à produção e à participação coletiva.

Enquanto possibilidade de transgressão da linguagem, enquanto meio em potencial para dar a ver o que o instituído esconde, a literatura pode ser capaz de questionar tal processo. Esse é um tema que abrange todos aqueles já tratados até aqui, e é parte fundamental do manifesto literário implícito em A Rainha dos Cárceres da Grécia. Como disse Adorno:

A dialética não pode deter-se em face dos conceitos de são e enfermo, e também não diante do irracional e do racional irmanados com os primeiros. Se reconheceu como doentes o universal dominante e suas proporções – e, em sentido literal, os identificou com a paranóia, com a “projeção pática” – então aquilo que conforme à medida da ordem surge como doente, desviado, paranóide, e até “deslocado”, converte-se no único germe de cura, e tão certo é hoje como na Idade Média que só os loucos dizem a verdade diante do poder. Sob esse aspecto o dever do dialético seria levar essa verdade do louco à consciência da sua própria razão; sem tal consciência, ela afundar-se-ia no abismo daquela enfermidade que o sadio senso comum dita, sem misericórdia, aos outros (ADORNO, 2001a: 71).

A ligação entre literatura e loucura encontra-se simbolizada explicitamente no romance de Lins no momento em que escritores consagrados, como Machado de Assis e Guimarães Rosa aparecem no hospício onde está Maria de França (LINS, 1986: 180). O episódio ressalta o lugar em que a razão instrumental coloca a literatura, alijada da sociedade, como algo em que não há razão, nem há conhecimento. Algo excêntrico, longe do centro social: a literatura aparece assim não como o “outro” da sociedade (BASTOS, 1999), mas apenas o que deve ser mantido apartado, distante, perigoso. Importa, portanto, perguntar por que ela é perigosa: por que motivo é desinteressante aos mecanismos de dominação?