• Nenhum resultado encontrado

Um Manifesto Literário: A Rainha dos Cárceres da Grécia

4. Literatura e História

Como o veículo ficcional guarda a possibilidade de mostrar, na linguagem da transgressão, o que se esconde no que é tido como irracional? A “verdade sobre o poder” pode estar, por exemplo, na subversão de um princípio básico, tido como indiscutivelmente racional; a causalidade, cuja base, como adiantamos no primeiro capítulo, é a identidade e a síntese. Na Dialética Negativa, Adorno chama a atenção

para as mudanças no uso da palavra razão ao longo da modernidade, sintomas que falam por si mesmos de como razão, causalidade e poder convergem. No uso da palavra razão exemplificado na frase a seguir, “a razão de tal coisa é isto e aquilo”, uso extremamente comum e difundido como natural, transparece – na própria prática lingüística cotidiana – que por “razão” se entende causa, causalidade, e que supostamente as duas coisas deveriam equivaler: “o equívoco da palavra ratio: razão e fundamento” (ADORNO, 2005: 218). O fundamental, em A Rainha dos Cárceres da Grécia, é como a subversão desse princípio, tido como a priori lógico, pode revelar na escrita histórica o que a narrativa dos poderosos obscureceu.

Um dos procedimentos de recriação histórica do livro é o povoamento, no mundo burocrático, de mitos históricos, os ídolos nacionais “consagrados como monumentos e nomes nas vias públicas” (LINS, 1986: 174) que “sempre guardaram distância do povo” e cuja “indiferença pelos humilhados assemelhava-se à dos heróis de hoje – os esportistas e os das telas de TV.” Esses ídolos históricos, canonizados pelos mecanismos oficiais, serão colocados pela romancista fictícia no “limbo do serviço público, mais ou menos como Dante mete inimigos seus no inferno.” As figuras alçadas ao imaginário pela glorificação do Estado são depostas a cargos insignificantes no serviço público, atrás de balcões e fichários tediosos, obrigadas a experimentar o gosto da estrutura que ajudaram a criar.

O que faz Lins é um procedimento objetivo de valorização da história que permeia toda a obra, e que possui características específicas. A recriação de figuras históricas é um procedimento que, como aponta significativamente o próprio ensaísta, é similar ao que faz Dante com as figuras históricas de seu tempo (LINS, 1986: 174). Nos famosos estudos de Auerbach sobre a Divina Comédia de Dante, está a base daquilo que fundamenta sua própria proposta historiográfica (WHITE, 2005). Falemos um pouco dela, tecendo relações com A Rainha dos Cárceres da Grécia.

No estudo sobre a Divina Comédia, resumido também em Mímesis (AUERBACH, 2001), Auerbach percebe nas figuras dispostas no plano do Inferno, Purgatório e Paraíso sua consumação. Existe na obra de Dante, além de personificações abstratas das virtudes, dos vícios e de elementos míticos, pagãos e profanos, personagens históricos com grande fundo realista que, dispostos no plano divino para o pagamento de seus pecados e para a recompensa de suas virtudes, acabam mostrando sua verdadeira face. Em outras palavras, o movimento da figura – de fundo histórico e real – até sua consumação indica, na elaboração de Dante, o caminho da realidade à

elaboração estética, na qual a recriação determina uma recontextualização e reapropiação artística que não diminui, senão realça seu fundo histórico.

Similarmente, o antigo método hermenêutico cristão da figura e consumação propicia a Auerbach a formulação prática de sua proposta historiográfica em Mímesis: cada obra é vista como a consumação de um momento anterior, sendo esta obra consumada aquela que explica a anterior, e não o contrário, invertendo uma mera causalidade vulgar e mecanicista dentro da historiografia literária e permitindo estabelecer conexões de fundo histórico de modo altamente proveitoso, sem a necessidade de uma cronologia engessante. Desse modo, é possível estabelecer comparações e linhas históricas dentro da literatura segundo determinados objetivos específicos a respeito das obras que se recortam; no caso de Auerbach, sua mediação é o conceito de realismo ao longo da história da literatura ocidental, ou melhor, da introjeção na forma literária de movimentos históricos e sociais.

No caso de A Rainha dos Cárceres da Grécia, o procedimento feito com os mitos históricos e literários é apenas metonímia de uma concepção que povoa o livro inteiro, durante o percurso hermenêutico do ensaísta: sua preocupação é sempre encontrar na realidade, no apoio dos estudos histórico-sociológicos e nos recortes de jornal, aquilo que encontra sua consumação dentro do romance sobre o qual se debruça, espaço estético entendido enquanto local de liberdade onde esses elementos da realidade podem ser organizados de modo crítico e potencializado. Sob o mesmo impulso, a preocupação do ensaísta fictício é sempre, também, procurar na historiografia literária brasileira e mundial procedimentos ficcionais anteriores que se reportem ao livro que analisa, como já demonstrado aqui na discussão desenvolvida a respeito dos narradores de Grande Sertão: veredas e São Bernardo. Repetindo, essas conexões, tanto literárias quanto extraliterárias, são feitas não pela mera cronologia, mas justamente por fazerem parte de uma problematização do país que possui uma continuidade e um empenho.

A procura de A Rainha dos Cárceres da Grécia por uma relação intrínseca da literatura com a história enquanto reorganização da realidade inclui ainda um movimento benjaminiano complementar ao sintetizado por Auerbach: Osman Lins quer pensar a literatura como espaço onde a história diz o que poderia ter sido e não foi, desvelando aquilo que a história dos poderosos oprimiu. Esse procedimento é o do próprio livro, o qual é teoria e realização ao mesmo tempo, e se configura no momento em que opta pela organização de seus temas em uma constelação de fragmentos que se

apóiam mutuamente e que podem ser analisados separadamente, bem como junto a ligações e conexões que eventualmente se estabeleçam.

A obra, assim, se torna espaço de recriação da história na confluência de vários momentos históricos. Isso aponta para uma simultaneidade de tempos, para uma imagem dialética benjaminiana na qual o Antigo e o Agora convivem (BUCK-MORSS, 2001). Esse momento de confluência temporal encontra sua expressão principal na retomada da guerra contra a invasão dos holandeses, acontecida por volta de 1630.

A simultaneidade inicia-se no espaço: Recife se torna simulação de si mesma, “estrutura móvel que se desconjunta e sem cessar reordena-se”:

Um Recife que não nega o Recife real e também não se limita ao modelo: enruga-o e encanta-o. É como se a cidade se transformasse no seu próprio mapa, de tal modo flexível que se pudesse dobrar, sem com isso perder o volume: continuasse habitável (LINS, 1986: 109).

Recife e Olinda irão confundir-se durante a narrativa, dando lugar a uma “cidade fantástica”, e preparando a posterior subversão do tempo, objetivo principal do movimento. Aos poucos, soldados, mosquetes e elementos anacrônicos de arquitetura e mobiliário começam a aparecer no livro, sob a descrição pasma do ensaísta: “assim como Olinda penetra no Recife, outro tempo distante, irrevelado ainda, invade o tempo da fábula” (LINS, 1986: 109). Aos poucos, o quadro é delineado e nos inteiramos dos detalhes do procedimento e do modo fantasmático, enquanto passado ainda presente, com que o evento histórico da invasão holandesa é retomado pela narrativa.

O recorte histórico do romance de Julia Enone, com diz o ensaísta, reduz-se às duas semanas que antecedem a rendição aos holandeses; não abarca, portanto, os vinte e quatro anos de ocupação. O romance privilegia não a expulsão, mas sim a invasão: “A Rainha dos Cárceres da Grécia exclui da sua temática o triunfo” (LINS, 1986: 138). A obra quer privilegiar e apontar para as ruínas da história, perguntando: “trouxe algum proveito a Maria de França e a toda a sua classe a derrocada de Holanda?” É o próprio ensaísta que de certo modo responde, com grande lucidez: o privilégio da ocupação é mais significativo para o presente, pois denuncia melhor “a nossa realidade e a realidade de todos os países hoje ocupados – pelas armas, pelo ouro e por instrumentos menos palpáveis”(LINS, 1986: 138).

A menção aos “instrumentos menos palpáveis” com que nosso território é ocupado enseja o momento de apontar para um dos trechos capitais onde a

simultaneidade de tempos acompanha, de resto como em todo o romance, os comentários do ensaísta. Suas observações estão compostas não apenas por dados contemporâneos à sua escrita, como os diversos recortes de jornal e os conflitos internacionais que vê na televisão, mas também por outros que merecem ser lembrados se quisermos captar a história em curso e entender o presente:

Dentro de duas semanas, no dia 6 de agosto, completa trinta anos. (...) quando explodiu, içando uma coluna incandescente, um ser ardente, irado e deslumbrante como jamais se imaginara ou temera, mais alto que a mais alta das montanhas, terra e céu dobraram-se, a água deixou de ser, as labaredas desceram o curso dos rios, 70.000 prédios ruíram e, dentre os 24.000 mortos, se isto na verdade tem o velho nome de morte, houve alguns de que apenas restou, no chão estéril, uma sombra. (...) O nome da cidade (...) começa a esbater-se na consciência do mundo e é preciso escrevê-lo: Hiroxima (LINS, 1986: 160).

O nome de Hiroxima, que “começa a esbater-se na consciência do mundo e que é preciso escrevê-lo” remete a uma ocupação que se dá pelo esquecimento, habitando não apenas nossos territórios nacionais mas também o que Felix Guattari chamou de “territórios existenciais” (GUATARRI, 1990). O combate a essa “colonização pelo esquecimento” irá se tornar preocupação cada vez mais fundamental no fim do romance, remetendo à própria possibilidade ou impossibilidade de narrar. Lins, ciente desse problema, propõe novas formas de relacionar ficção e história. Apenas com a recuperação e a conservação de uma memória que faça jus à coletividade e seu sofrimento é possível constituir narrativas, ou seja, apenas enquanto estejam medidadas por uma negatividade crítica. A Rainha dos Cárceres da Grécia fala não apenas de uma postura de apresentação da história, mas de uma postura histórica da literatura.