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A Crítica Literária e Social de A Rainha dos Cárceres da Grécia

4. O Papel do Crítico Literário em A Rainha dos Cárceres da Grécia

No final do livro – que o ensaísta chama de “simulacro de um desfecho” (LINS, 1986: 187) – ocorre a fusão entre o ensaísta e o livro que analisara, na conversão daquele em personagem deste. Reside nisso uma questão central relacionada à crítica. Essa questão é a dialética entre sujeito e objeto e a necessidade de sua mediação. O desfecho da obra aponta fundamentalmente para a relação sujeito e objeto em termos de crítica literária, embora, como trataremos no último capítulo, as questões se estendam a várias outras esferas.

Ao final, o ensaísta assume a voz de uma das personagens, passando do registro comedido da crítica à profusão transgressora da linguagem da obra que interpretara. Dentro do enfoque adotado neste capítulo, cabe a pergunta: qual o significado disso dentro das propostas críticas do romance? Certamente, a identidade entre sujeito e objeto no momento em que o ensaísta se reconhece e assume – nutrido de ironia – uma das vozes do livro difere, por exemplo, da cópula entre leitor e obra proposta por Barthes em O prazer do texto (BARTHES, 2002). O que se está propondo em A Rainha dos Cárceres da Grécia não é uma relação sensual e indissociada entre crítico e objeto estético, nem a recriação indiscriminada da obra analisada, o que seria absurdo após o percurso que expusemos neste trabalho.

O que A Rainha dos cárceres da Grécia propõe na fusão entre analista e obra é o compromisso e o empenho do crítico. Isso significa tanto negar a postura estruturalista de sua época – e que ainda sobrevive de outras maneiras –, na qual a isenção do analista deveria resultar em análises assépticas e estéreis ao extremo de se tornarem capazes de corresponder a determinados padrões artificiais de cientificidade e racionalidade, quanto negar uma hipóstase crítica em que a mediação entre sujeito e objeto – ponto central de qualquer discussão crítica – se dissolva em uma reinvenção postiça e estéril, do ponto de vista filosófico e político, do texto original.

A fusão entre crítico e obra aponta para um empenho e compromisso do crítico por meio de indicativos objetivamente determinados pela simbologia que a acompanha. Primeiro, a fusão acontece na incorporação do crítico à obra e não da obra ao crítico, não tanto pela assunção de uma personagem, o Báçira, mas sim pelo seu reconhecimento enquanto personagem do livro do qual fala, reconhecimento do qual o ensaísta é incapaz durante todo o romance – algo que Lins faz questão de ressaltar em várias passagens (LINS, 1986: 147; 155). Ou seja, o crítico, ao final, se reconhece finalmente parte da ficção sobre a qual discursara. Mais do que uma fusão entre sujeito e objeto que cerceasse a dialética, o momento final é um autoreconhecimento enquanto agente e enquanto parte ativa do todo problematizado pelo livro: ganham em sentido, então, as imagens associadas anteriormente à personagem que o crítico assume, deixando clara a problematização de Lins.

O Báçira é uma personagem simbolizada dentro do romance tanto pela imagem de uma demarcação marítima que sinaliza limite, o desconhecido e um perigo para os navegantes (LINS, 1986: 146) quanto, em outra imagem, pelo espantalho, figura que, em sua interpretação eminentemente material, constitui uma presença simulada e simbólica que deve proteger a plantação de predadores (LINS, 1986: 145). As duas imagens, colocadas dentro da obra para representar o crítico, são símbolos elaborados em imagens cuja função material já é simbólica antes mesmo de sua apropiação na obra.

Essa constatação ganha relevo quando se percebe que há uma diferença crucial entre os dois símbolos que a personagem carrega: a imagem do sinal marítimo avisa do perigo em cruzar determinada fronteira desconhecida. É simbolo que representa, em sua associação – ela mesma simbólica, como ressaltamos – com a figura do crítico, a necessidade de uma autoconsciência deste enquanto o único responsável por determinar os limites entre ele e o texto: mais do que simbolizar apenas o cruzamento desses limites, a associação sugere que é o crítico quem deve, em última instância, demarcar e definir o limite. A imagem do espantalho, por sua vez, diferente em alguns aspectos específicos, é símbolo que sinaliza em si a proteção simbólica de determinado território, produção e produto.

A duplicidade que a imagem do Báçira recebe deflagra, portanto, uma tensão fundamental à prática crítica. Ao reconhecer essas duas funções simbólicas que acompanham a assunção da figura do Báçira, a distância do crítico em relação ao texto – e como dissemos, o crítico é aqui justamente aquele que demarca a distância – aparece

tanto em sua expressão necessária, ou seja, 1) o aviso de um perigo real em excluir totalmente o distanciamento dentro da crítica, como também 2) enquanto possível defesa simbólica de determinada propriedade, produção e produto. Essa tensão, como fica claro, determina justamente a problemática do crítico empenhado. Este deve saber que a distância em relação ao texto é importante para o estudo apurado, mas ao mesmo tempo o crítico deve ver sua própria função, no resguardo dessa distância, como algo que não pode servir ao papel de espantalho, isto é, aquele que resguarda determinada área de investigação apenas devido a um recalque hermenêutico, a uma manutenção do inconsciente político do texto, ou seja, a uma proteção daquela interpretação que está além, no negativo, perigosa, mas que precisa ser alcançada: ainda que exija cruzar determinado limite próprio à imanência imediata do texto ou inerente à percepção individual e social do analista.

O crítico empenhado é aquele que não deseja mascarar sua enunciação, prática que percebe o ensaista de Lins nas tendências de sua época: “todo ensaio literário, obediente a uma convenção que firmou autoridade, evoca o narrador oculto. Inviável (...) o discurso chamado pessoal – que precisa as circunstâncias da enunciação” (LINS, 1986: 7). Precisar as circunstâncias da enunciação crítica, que o ensaísta de Lins demanda e aplica a seu estudo, significa uma postura que historiciza seu lugar de fala, bem como o surgimento de seu objeto estético – além de considerar as implicações para o momento presente das questões levantadas pela obra. O ensaísta de Lins abdica da confortável “imunidade ao tempo” da maior parte da crítica; recusa-se a assumir a postura do crítico que nunca se dirige a nós “em um tempo e um lugar definidos” e que, “intemporal e como abstrato, só nos revela de si, mediante o ardil de um texto que de certo modo o oculta e portanto nos ilude, suas leituras (sempre estimáveis) e seus conceitos (jamais inconclusos)”(LINS, 1986: 80).

Acima de tudo, é determinante a pergunta que se faz o narrador: “o conceito de obra literária simplesmente evolui, depura-se, ou acaso penetra-o, insinuante, algum sopro emanado de poder?”(LINS, 1986: 57). Descobrir esse “sopro emanado de poder” é chegar ao âmago da obra, ao mesmo tempo em que define a responsabilidade da prática crítica: analisar uma obra significa incidir sobre ela um inevitável “sopro emanado de poder” que acompanha uma determinada concepção de literatura e sua legitimação enquanto tal. A institucionalização é o outro da literatura, assim como a literatura é o outro da sociedade, como coloca H. J. Bastos (1999).

A Rainha dos Cárceres da Grécia expõe o dilema formulado por Roberto Schwarz em Sete fôlegos de um livro: a formação da literatura se completou, mas não a formação do país (SCHWARZ, 1999: 56). Esse impasse encontra expressão privilegiada na obra pelo ponto de vista da crítica, assumida por Lins, que funciona como mediação entre as duas esferas, a literatura e o país. Seu romance é um intento vigoroso, extremamente seguro e bem delineado, de propor que a literatura e o sistema literário brasileiro sejam um elemento antibarbárie, como sugere Schwarz em seu artigo, dentre outras alternativas menos otimistas; mas esse intento, perfeitamente consciente do percurso literário nacional onde se integra, sabe que o sistema literário brasileiro só se manterá como elemento antibarbárie se a crítica literária participar ativamente desse processo.

A Rainha dos Cárceres da Grécia une, indissociavelmente, Crítica Social e Crítica Literária, mostrando que “crítica da sociedade é crítica do conhecimento, e vice- versa” (ADORNO, 1995: 189).

Capítulo

4