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A reprodução como procedimento de autoria

No documento Autoria sob a materialidade do discurso (páginas 119-125)

Cap 4 – Autoria na cultura digital

4.3 Autoria na cultura digital

4.3.1 A reprodução como procedimento de autoria

Os aplicativos de que dispomos para escrever promoveram mudanças, ainda que sutis, no processo de produção textual.

É freqüente observar que os iniciantes no uso dos processadores de texto são muitas vezes tentados a redigir rascunhos manuscritos para, em seguida, transcrevê-los para o computador. “A idéia de compor usando a máquina (em vez de transcrever para ela) me parecia de algum modo

inautêntica”, relatou Johnson (2001, p. 102) a respeito de seu processo de

adaptação ao novo meio.

Nos primeiros contatos com os processadores de textos, é freqüente observar que os usuários precisam de tempo para pensar antes de escrever e demoram-se na tarefa – quando não desistem. Ocorre que esse era um

procedimento habitual diante da máquina de escrever. O texto só era datilografado depois que as idéias já estivessem no formato desejado: o processo de elaboração era mental ou manuscrito, sob forma de rascunho, uma vez que a revisão do texto datilografado era muito trabalhosa. Nada mais natural, portanto, que diante do novo meio nos comportássemos da mesma maneira. Além do mais, o efeito do texto estampado na tela com seu acabamento gráfico é, de início, um tanto assustador: parece expor a todos o bem mais íntimo daquele que escreve.

Ocorre que, com o uso do computador, desenvolveu-se outro comportamento. A revisão já não é penosa como nos tempos da máquina de datilografia, pois, nos processadores de textos, há muitas facilidades: apagar textos, trocar palavras ou parágrafos de lugar, localizar palavras e substituí- las, recortar e colar textos ou imagens, usar o corretor ortográfico etc. A produção textual não necessita de rascunho, pode-se escrever enquanto se constrói o enunciado43, e a revisão ocorre ao mesmo tempo, paralela ao trabalho de escrita, enquanto se planejam os textos. E a forma do texto acaba sendo modelada, aos poucos.

A autoria, sob essas condições, altera-se devido à aceleração do processo de produção e o usuário de um processador de textos é convidado a todo instante a pensar na estrutura e forma da composição – sintaxe e acabamento gráfico do texto: configurar página, formatar fonte, parágrafo etc.

Eu começara trabalhando com blocos de períodos completos, mas no fim estava pensando em blocos menores, em unidades de expressões discretas. Isso, é claro, teve enorme efeito sobre os tipos de período que eu acabava escrevendo. O procedimento mais antigo impunha uma espécie de limite máximo para a complexidade das frases: era preciso ser capaz de reter toda a seqüência de palavras na cabeça, o que significava que a mente tendia naturalmente para uma sintaxe mais simples, mais direta. Um número excessivo de orações subordinadas, e se perdia o rumo. Mas o processador de textos me permitia focalizar

agrupamentos menores de palavras e construir a partir deles – era sempre possível acrescentar mais um aparte, um ornato mais descritivo, porque a forma geral do período nunca estava em questão. [...] O computador não só tornara o ato de escrever mais fácil para mim; mudara também a própria substância do que estava escrevendo, e, nesse sentido, suspeito, teve enorme impacto também sobre o meu pensamento. (JOHNSON, 2001, p. 106)

É claro que o depoimento de um usuário não pode generalizar o que ocorreu com a maioria. É apenas uma ilustração do modo como a adoção de um novo meio pode gerar novos procedimentos de autoria.

O autor, habituado aos procedimentos de um processador de textos, acaba por exercitar muito fortemente o papel de editor: ele começa a olhar o seu texto não como um todo acabado, mas como uma possibilidade dentre muitas de composição. “Recortar” ou “copiar” e “colar” são procedimentos de edição dentre tantos que os processadores de textos têm.

Ocorre que esse procedimento cria o hábito de tomar daqui e pôr ali, reorganizar seqüências, compor textos como se fossem uma colcha de retalhos. E depois coser os parágrafos de modo a garantir a fluência, as passagens de uma idéia para outra.

É comum observar-se, principalmente entre os estudantes, a extensão dessa prática à Web. É freqüente a reclamação de professores, por exemplo, de que os alunos simplesmente copiam textos, tais como estão na Web, e os apresentam como pesquisa própria.

O que convém analisar, nesse caso, é que o meio disponibiliza esse recurso e incentiva seu uso. Portanto, a busca, seleção, recorte e inclusão de um texto em outro são procedimentos de controle do discurso no meio digital. São recursos que explicitam a natureza dialógica do discurso e, como para a fotografia ou o cinema, a reprodução é um dos princípios de produção na cultura digital.

O que vai definir a coerência de um discurso será fundamentalmente a compreensão de que os procedimentos de um novo meio instauram novos conceitos. Atuar sob o novo meio com pressupostos conceituais advindos de

outra cultura reflete apenas a nossa dificuldade de compreensão da extensão da mudança.

No caso de alunos que copiam conteúdos da internet para apresentar ao professor como texto seu, resultante de pesquisa, o que parece equivocada é a concepção que o aluno tem de pesquisa. Ele faz na internet o que também faz com os livros: copia, reproduz ipsis litteris o que lê. Na cultura impressa, que reverencia o autor, a cópia, na maioria dos casos, é uma interdição.

Na cultura digital, por outro lado, podemos copiar, colar, falar anonimamente com outras pessoas, abreviar palavras, usar símbolos, produzir em grupo, ver e mostrar o que se queira... Enfim, procedimentos não aceitos na cultura impressa são praticados e admitidos na cultura digital, não, porém, sem restrições – justificadas, evidentemente, pelo viés de interpretação da cultura impressa.

A possibilidade de reprodução de informação interfere profundamente nas condições de produção discursiva. O autor que tem à sua disposição grande quantidade de informação se move entre muitas possibilidades de construção do discurso. Como, na cultura digital, ele pode reproduzir mais facilmente a informação que lhe interessa, sua preocupação se desloca: da produção da informação ela passa à análise e síntese daquela de que dispõe. Ainda que se possa simplesmente reproduzir uma informação, sem nenhuma intervenção no todo ou nas partes, o que está mesmo em jogo, nessa prática, é a capacidade do indivíduo se mover entre grandes quantidades de informação, saber selecionar e reconhecer formações discursivas. O sujeito desse novo discurso deve se posicionar entre essas tantas possibilidades, muito mais do que estava habituado na cultura impressa, até porque as autorias e as formações discursivas não estão tão claras. Tudo parece coexistir num mesmo plano, no amontoado de

informações que circulam pela internet. Discernir entre a informação que interessa ou que se alia à formação discursiva desejada é uma tarefa agora mais complexa.

Isso traz implicações importantes para a sala de aula porque também o conhecimento se desloca. Além de ensinar o aluno a selecionar e reconhecer a informação pertinente a cada caso, o professor vai lidar com as questões que a reprodução traz com relação à elaboração escrita: como lidar com os efeitos do “copiar” e “colar”?

Ao utilizar esse procedimento de reprodução, o aluno deixa de redigir “com suas próprias palavras” e acaba por produzir questionamento sobre a autoria: é possível reconhecer a autoria de um texto e atribuí-la a um autor? Quais seriam as marcas que permitem esse reconhecimento?

No primeiro capítulo desta dissertação, vimos como os enunciados estão sempre impregnados pela palavra do outro. Bakhtin discorre sobre como a nossa experiência verbal se desenvolve sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro (BAKHTIN, 1997, p. 313-314). Para Foucault, um enunciado tem sempre as margens povoadas de outros enunciados (FOUCAULT, 2002, p. 112) e, por isso, todo discurso é composto por enunciados que se apóiam sob uma mesma formação discursiva. Segundo Pêcheux o sentido de um discurso não existe em si mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas em jogo sob as condições sócio-históricas de produção do discurso (PÊCHEUX, 1995, p. 160).

Nessa interação interdiscursiva, as palavras de um autor se encontram entre as palavras do outro. Nem sempre é possível discernir a fronteira entre elas. Pêcheux assinalou essa dificuldade como um “esquecimento”, o efeito

de desvanecimento do interdiscurso para o sujeito falante, operação responsável pela ilusão do sujeito como fonte de sentido44.

A questão com a qual o professor se defronta sob a cultura digital não é nova, mas adquire um novo estatuto. Se nossas palavras estão sempre impregnadas do discurso do outro, o que a cultura digital faz é evidenciar e ampliar esse pressuposto. No mundo digital, essa interação pode ser entendida literal e materialmente. E, admitido o procedimento de reprodução como procedimento de autoria, cabe ao professor ensinar o aluno a conciliar, na arquitetura do seu discurso, os resíduos de tantas outras autorias, assim como fez Picasso, ao ler e reproduzir Velásquez45.

Referindo-se à autoria docente em uma ambiência46 de formação docente, Belintane considera que:

“[...] uma autoria de qualidade é aquela que gera uma significância tal que põe o interlocutor em estado de co-autoria, predisposto a cotejar as armações teórico-práticas de seu co-autor à sua regionalidade, ao seu contexto de sala de aula”.

(BELINTANE, 2002, p. 187).

Essa talvez seja a prática a ser instaurada. Ensinar o aluno a se colocar em posição de autor significa ensinar a compartilhar a autoria alheia, saber redefinir o discurso do outro sob a ótica da singularidade das suas condições de produção discursiva.

A autoria, assim compreendida, não se concentra na originalidade do dito, mas naquela do arranjo ou da arquitetura do discurso, no ato de trazer para si e seu contexto de produção o discurso alheio.

44

Cf. Capítulo 1, seção 1.3.1.

45 Cf. seção 4.1.

46 O termo “ambiência” refere-se à possibilidade de construção de um modelo de formação contínua

que leve em conta as tecnologias contemporâneas e as novas perspectivas de autoria em rede e que procura integrar o conjunto das interações presenciais ao das possibilidades virtuais. “Uma ‘ambiência de formação’ é o complexo enredamento subjetivo que se dinamiza a partir das diversas possibilidades

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