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Autoria na cultura oral

No documento Autoria sob a materialidade do discurso (páginas 62-65)

Cap 3 – Meios, culturas e procedimentos de autoria

3.1 Autoria na cultura oral

3.1.1 Cultura oral

Numa cultura oral primária15, o recurso de armazenagem de informação como forma de preservar cultura e disseminar conhecimentos adquiridos é a memória. Uma questão que se coloca aos indivíduos que vivem em tal cultura diz respeito ao processo de memorização. Como formular o pensamento para que ele possa ser memorizado pelo ouvinte e ser reproduzido posteriormente?

Pensar pensamentos memoráveis exige a adoção de padrões mnemônicos para produção do discurso. Segundo Ong,

O pensamento deve surgir em padrões fortemente rítmicos, equilibrados, em repetições ou antíteses, em aliterações e assonâncias, em expressões epitéticas ou outras expressões formulares, em conjuntos temáticos padronizados (a assembléia, a refeição, o duelo, o “ajudante” do herói e assim por diante), em provérbios que são constantemente ouvidos por todos de forma a vir prontamente ao espírito, e que são eles próprios modelados para a retenção e a rápida recordação – ou em outra forma mnemônica. As reflexões e os métodos de memorização estão entrelaçados. A mnemônica deve determinar até mesmo a sintaxe.

(ONG, 1998, p. 45).

No mesmo sentido nos fala Havelock (1996, p. 53-78, 145), referindo- se à técnica oral da comunicação conservada que possivelmente deu origem à inteligência helênica que, assim, esteve nas mãos dos verbalmente mais dotados.

Desse modo, as fórmulas funcionam como apoio para a memória, como expressões fixas que auxiliam a manter a lembrança do que se diz. Toda

15 Referimo-nos aqui à oralidade primária, tal como compreendida por Ong: “(...) designo como

elocução que se faça fora desses padrões perde-se no vento, dado o caráter evanescente da oralidade.

Numa cultura oral, refletir atentamente sobre algo em termos não formulares, não-padronizados, não mnemônicos, ainda que isso fosse possível, seria uma perda de tempo, pois esse pensamento, uma vez terminado nunca poderia ser recuperado com alguma eficácia, tal como o seria com o auxílio da escrita.

(ONG, 1998, p.46).

Devido a essa necessidade de memorização, a sintaxe da oralidade tende a se organizar mais através das coordenações aditivas do que das subordinações e o pensamento tende a ser menos fragmentado, ou seja, menos analítico, e mais sintético.

Além disso, a oralidade supõe um interlocutor que atua durante a construção da elocução, que reage e assim interage e interfere no enunciado que ouve através de suas reações (gestos, expressões faciais e sonoras). O ouvinte mantém com o locutor uma forte relação, um vínculo, uma interação. Ocupa um lugar previsto para si no discurso, tomando o que ouviu e recolocando num contexto próprio, porque nós só nos apropriamos do que nos faz sentido e o sentido se faz quando finalmente conciliamos a fala do outro no universo de nossas representações de mundo e formulamos para essa fala um sujeito cujo lugar podemos ocupar.

3.1.2 Autoria na cultura oral

Uma vez que o discurso se encontra delimitado pelas fórmulas e expressões fixas, as marcas das singularidades de estilo pessoal encontram- se restritas à administração dos esquemas e padrões mnemônicos. O autor atualiza o conteúdo de sua elocução, mas mantém a fórmula que lhe dá forma.

A memória viva conserva o que é necessário à vida presente. Descarta gradativamente o que se tornou inteiramente irrelevante. Todavia, prefere remodelar a descartar. Informações e experiências novas são continuamente inscritas segundo os modelos herdados. (HAVELOCK, 1996, p. 140).

Devido à necessidade de conservar a forma já conhecida, as marcas que preservam a memória, a autoria nas culturas orais apresenta-se como um forte procedimento de controle interno do discurso, aliado à disciplina, a Retórica, que dita as regras de formalização da elocução.

Ao mesmo tempo, a autoria acaba por se configurar, também, em um mecanismo de controle social do discurso, pois ao poeta, particularmente o épico, cabia a divulgação da cultura e sua literatura constituía uma referência e um padrão de linguagem para os membros de sua comunidade, uma vez que a poesia era parte do seu cotidiano (HAVELOCK, 1996, p. 159).

Ao discurso compete a preservação de uma identidade cultural e histórica e, nesse sentido, Havelock descreve os propósitos da educação grega:

O sistema educacional grego, se me permitem usar o termo, era colocado inteiramente a serviço dessa tarefa de conservação oral. Ele realmente conservaria e transmitiria os mores apenas se o aluno fosse treinado para uma identificação psicológica com a poesia que ouvia. O conteúdo do enunciado poético devia ser expresso de modo a permitir essa identificação. Isso significava que ele só podia versar sobre ações e eventos envolvendo pessoas. (HAVELOCK, 1996, p. 249).

Por outro lado, pelo fato da produção do discurso estar assim fortemente ajustada a formas fixas, a locução, enquanto evento, é uma performance de autoria, pois é nesse momento que as singularidades e o estilo pessoal do autor se revelam, através da entonação, dos gestos e das expressões.

A autoria numa cultura oral desenha um sujeito do discurso hábil o suficiente para dispor o conteúdo a ser comunicado nas formas pré-

conhecidas. Essa versatilidade exigida daquele que fala se deve à fragilidade do meio de que se dispunha para armazenagem de informação. A emersão do sujeito que fala esse discurso acaba circunscrita à habilidade daquele que ocupa o seu lugar de impressionar os ouvintes, dar sentido ao texto que fala e facilitar a memorização do que diz.

Portanto, talvez se possa afirmar que, nas culturas orais primárias, a autoria, além de fundada na reprodução de padrões estéticos com função mnemônica, manifesta-se também através da performance do sujeito no momento da elocução, pois dessa condição de produção também depende a constituição do sentido do discurso. São seus gestos, expressões, entonações e modulações de voz responsáveis, em certa medida, pela evocação do sentido que se pode atribuir ao discurso que se ouve.

No documento Autoria sob a materialidade do discurso (páginas 62-65)