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3.4 A FÊNIX RENASCE EM NOVO NINHO

3.4.3 A Resolução 02/99: outro Ramo desse Ninho

Para abordar a Resolução do CNE/CEB 02/99, trilharemos um caminho que perpassa a Filosofia em certos momentos. E iniciaremos a trajetória com Kant (apud OZMON ; CRAVER, 2004), para quem a educação é o mais difícil problema ao qual o homem pode se dedicar. Essa adjetivação se explica em função da educação ser uma atividade eminentemente humana. Acontece de forma diferente, em lugares diferentes, de acordo com cada época histórica e voltada para a formação dos mais diferentes tipos humanos. O ensinar é um lado, ou melhor, um aspecto dessa atividade. Nosso recorte nesse momento da pesquisa será em torno do ensino em sua versão escolar.

Morais (1986) afirma que comumente o ensino é confundido com instrução e compara tal concepção ao adestramento de animais, uma vez que o adestramento consiste na

criação de comportamentos úteis, por parte dos animais. Da mesma forma, o ensino, concebido dessa maneira, busca formar comportamentos úteis e imediatistas.

Morais ainda defende que ensinar deve ser um exercício vinculado ao intento de promover as condições necessárias para que, transcendendo o instruir e o adestrar, auxilie o encontro da inteligência do educando com a vida, o encontro de sua sensibilidade com a pluralidade rica do viver em sociedade. Ensinar, portanto, implica criar condições para que o educando use sua inteligência para construir estratégias que lhe permitam lidar com os desafios de sua cultura e de sua existência. Dessa construção, resulta o conhecimento. Daí a função dos professores em nossas vidas, ou seja, possibilitar-nos a busca do que Kant (1973, p. 102) denominou de esclarecimento (Aufklärung). Em suas palavras, este esclarecimento seria:

[...] a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. [...] Tem a coragem de fazer uso de seu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.

Kant, portanto, chama a atenção para a necessidade de um pensar próprio, capaz de guiar as decisões, que em Freire (1997) é tratado como autonomia. Esta autonomia é reforçada na Resolução 02/99 (BRASIL, 1999b, grifo nosso) uma vez que esta apóia as propostas pedagógicas das instituições formadoras. Isto pode ser verificado, por exemplo, no Art. 1º, § 1º que afirma: “o curso, em função de sua natureza profissional, requer ambiente institucional próprio com organização adequada à identidade de sua proposta pedagógica”. Mas, como colocamos anteriormente, o sentido dessa autonomia não está claro em termos de seus reais interesses.

Além de promover e valorizar a autonomia, ensinar, para Freire (1997) também é possibilitar a conscientização da própria condição humana e das relações que os homens tecem entre si. O mesmo Freire acrescenta que não há docência sem discência, e Morais (1986, p. 10) se refere ao mesmo tema afirmando que “a paixão do conhecer é erguida por dois seres que se encontram, para que saibam viver”. E completamos colocando que esta relação é de tal profundidade que deixa marcas na vida de um e de outro. Considerando dessa forma, é importante destacar que, sendo a educação escolar intencional, tais “marcas” devem

ser submetidas à reflexão e ao possível planejamento. Tal reflexão implica reconhecer que, em uma sociedade capitalista, a relação entre ensinante e ensinando é assimétrica, sendo tal assimetria legitimada pela sociedade, o que, muitas vezes, pode conduzir a uma postura ditadora por parte do ensinante.

Tal legitimação se dá em função do uso da instituição escolar como aparelho reprodutor da ideologia dos grupos dominantes da sociedade. Segundo Ricoeur (1977), a ideologia está intimamente ligada ao sistema de autoridade, pois preenche o espaço entre a demanda de legitimação que toda autoridade requer e a crença que a ela responde. Assim, ao professor, em seu papel social de ensinante, é “outorgada” a reprodução de tal relação. E, ao invés de elevar a consciência como uma boa marca de sua ação, passa a deixar profundas marcas históricas de desumanização, por meio do uso do autoritarismo, permitido e valorizado pela classe que se prevalece da opressão. Morais (1986, p. 35) colabora ainda mais com nossa discussão criticando que:

Quando, [...] na escola, o exercício da autoridade cede lugar à prática do autoritarismo, isto significa que um princípio de generosidade cedeu o passo a um princípio de usurpação. Autoritarismo e autoridade são realidades mutuamente excludentes [...], o autoritarismo é repressivo, contrário às espontâneas manifestações de vida e criatividade, é, portanto, necrófilo. Deste não podem resultar marcas boas. [...] Se o autoritarismo é algo que procura se impor, com uso claro ou velado de poder, a autoridade é algo que se propõe à aceitação de pessoas ou grupos e só tem legitimação enquanto dura tal aceitação.

Por isso, Freire afirma que ensinar supõe a práxis, ou seja, a constante ação- reflexão-ação por parte do educador, como princípio de atuação profissional. O mesmo autor discorre sobre a ideologia, afirmando que o fatalismo, imobilizante, que anima o discurso neoliberal, anda solto no mundo e insiste em nos convencer de que nada podemos contra a realidade. Cabe à educação, segundo esta ideologia, adaptar o educando a essa realidade, que não pode ser mudada (FREIRE, 1997). O professor, diante de tal quadro, deve ter um preparo tal que lhe permita vislumbrar a realidade e consiga analisar as contradições, que a mesma apresenta utilizando, para isso, dos recursos e dos conhecimentos já produzidos pelas ciências da educação. Nesse sentido, o professor coloca-se como alguém que aprende e produz conhecimento.

A Resolução 02/99 (BRASIL, 1999b) traz a necessidade de se formar um professor produtor de conhecimento, mas não destaca tal postura em termos políticos e

ideológicos; a referência recai sobre a prática cotidiana na tarefa de ensinar. Isso se evidencia no Art. 3, § 1º que coloca:

As áreas ou núcleos curriculares são constitutivos de conhecimentos, valores e competências e deverão assegurar a formação básica, geral, comum, a compreensão da gestão pedagógica no âmbito da educação escolar contextualizada e a produção de conhecimento a partir da reflexão

sistemática sobre a prática (grifo nosso).

A capacidade de desvelar as contradições da realidade educacional, ou a capacidade de considerar criticamente a atividade de ensinar é condição essencial ao fazer do professor, para que este não seja instrumento de dominação e sim de transformação. A Resolução 02/99 (BRASIL, 1999b), ao fazer referência à proposta pedagógica das escolas, que formarão os professores em nível médio, mostra uma profunda preocupação com a promoção de uma educação de qualidade. Mas esta qualidade não se mostra comprometida com o ser humano em formação e, sim, com a realidade econômica. Isso fica evidente, por exemplo, no Art. 2º, inciso III ao colocar que estas propostas pedagógicas devem:

[...] desenvolver práticas educativas que contemplem o modo singular de inserção dos alunos, futuros professores, e dos estudantes da escola campo de estudo no mundo social, considerando [...] as especificidades do processo de pensamento, da realidade sócio-econômica, da diversidade cultural, étnica, de religião e de gênero, nas situações de aprendizagem. (grifo nosso).

É fato que a Resolução 02/99 (BRASIL, 1999b) afirma que a formação dos professores se dará inspirada nos “princípios éticos, políticos e estéticos” (Art. 2º). O Parecer do Conselho Nacional de Educação nº 1/99 (BRASIL, 1999a) reforça tais princípios e os explica colocando que:

[...] os educadores são convocados a assumirem um compromisso ético com os alunos e suas diferentes histórias de vida, no contexto do atendimento escolar sob a ótica do direito. A redescoberta do valor da escola, do professor e da participação da sociedade, (...), retira o processo de escolarização do isolamento social e da responsabilidade individual, insistindo na dimensão coletiva do trabalho pedagógico e no caráter democrático de seus propósitos, de sua execução e avaliação (BRASIL, 1999a, p. 6).

Veja que há um importante destaque, nesse trecho do documento, para o caráter coletivo da prática pedagógica. Para se comprometer com a coletividade, é preciso, antes, conhecê-la. E Freire (1997, p. 137) destaca esta postura afirmando que “a formação dos professores e das professoras deveria insistir na constituição deste saber necessário e que me

faz certo desta coisa óbvia, que é a importância inegável que tem sobre nós o contorno ecológico, social e econômico em que vivemos”.

Esta coletividade não pode, no entanto, ser entendida como uma forma de conscientização e mobilização das classes populares em reivindicação de seus direitos. Tomando o neoliberalismo e seu Estado Mínimo como via de regra, a Resolução 02/99 (BRASIL, 1999b) reafirma o compromisso coletivo do professor no sentido da solidariedade. Numa interpretação liberal, quer dizer: promover ações que atendam às necessidades básicas do educando, sem contar com o devido apoio das instâncias governamentais, como já analisamos anteriormente. Um exemplo é o Art. 6º, inciso I que, ao versar sobre a gestão pedagógica da educação escolar, coloca que a prática educativa das escolas (instituições formadoras de professores) deverá propiciar a integração de “múltiplos aspectos constitutivos da identidade dos alunos, que deseja sejam afirmativas, responsáveis e capazes de protagonizar ações autônomas e solidárias no universo de suas relações”. A idéia, ou melhor, a ideologia da solidariedade, numa interpretação à luz da teoria de Ricoeur (1977), vem preencher o espaço entre a demanda do Estado neoliberal pela assunção de suas funções pela sociedade civil e as reivindicações por uma educação de melhor qualidade por parte desta.

A Resolução 2/099 (BRASIL, 1999b) coloca a pesquisa (e não o trabalho) como forma de conhecimento, por parte do aluno, que está sendo formado para o exercício da docência. Isso se evidencia na denominação da escola como “campo de estudo” do professor em formação e destaca a necessária relação entre teoria e prática, mas destaca-as como instâncias separadas, como já discutimos. Tal interpretação se confirma no Art. 2º, Inciso II ao afirmar que o professor deverá ser capaz de “investigar problemas que se colocam no cotidiano escolar e construir soluções criativas mediante reflexão socialmente contextualizada e teoricamente fundada sobre a prática”.

A Resolução, foco de nossa reflexão, destaca a formação do professor de forma que o mesmo possa respeitar as diferenças culturais de seus alunos, a fim de promover uma aprendizagem significativa, o que supõe também o respeito ao desenvolvimento dos educandos e o atendimento dos alunos em suas necessidades de aprendizagem. E aqui neste ponto, concentramo-nos para questionar a formação do professor em nível médio que, segundo a própria Resolução citada, está aberta aos concluintes do Ensino Fundamental. Se considerarmos uma jovem, ou um jovem, que não tenha tido nenhum percalço em sua

caminhada no sistema escolar e tenha concluído o Ensino Fundamental com quatorze anos, este ou esta jovem podem iniciar o curso de Magistério na modalidade Normal?

Evidentemente que sim. Seguindo nesse raciocínio, vamos pensar que este jovem ou esta jovem se encontram na fase da adolescência, em processo de formação da identidade social, passando pelas transformações e conflitos típicos dessa etapa da vida. Teria esta pessoa condições de ter uma postura crítica, ativa, autônoma diante da realidade? Teria maturidade para diagnosticar os problemas que a realidade escolar, tão complexa, apresenta? Teria condições para “avaliar a adequação das escolhas feitas no exercício da docência, à luz do processo constitutivo da identidade cidadã de todos os integrantes da comunidade escolar, das diretrizes curriculares nacionais da educação básica e das regras de convivência democrática” (Art. 2º, Inciso IV, da Resolução aqui estudada)? E teria, ainda, condições de dar conta de uma formação para o pleno exercício da cidadania, como prevê o Art. 5º da Resolução em consonância com a Lei de Diretrizes e Bases 9394/96? (BRASIL, 1996).

Daí a necessidade de uma formação pautada no trabalho como princípio educativo não só para os cursos profissionais, mas para o todo da escolarização. Frigotto (2005, p. 57-58), nesse sentido, argumenta:

Trata-se de desenvolver os fundamentos das diferentes ciências que facultem aos jovens a capacidade analítica tanto dos processos técnicos que engendram o sistema produtivo quanto das relações sociais que regulam a quem e a quantos se destina a riqueza produzida. [...] uma formação que permita o domínio das técnicas, as leis científicas e a serviço de quem e de quantos está a ciência e a técnica. Trata-se de uma formação humana que rompe com as dicotomias geral e específico, político e técnico ou educação básica e educação técnica, heranças de uma concepção fragmentária e positivista da realidade humana.

Em outro trecho de sua obra, Frigotto (2005, p. 60) cita Gramsci sobre esta questão da idade do educando e coloca que é fundamental socializar, desde a infância, o princípio de que a atividade de prover a existência e outras esferas da vida pelo trabalho, é comum a todos os seres humanos, evitando-se, assim, indivíduos que exploram o trabalho dos outros ou se submetem passivamente à exploração, sendo os primeiros tomados como

Mamíferos de luxo.

As discussões, em todo o mundo, têm avançado no sentido de reconhecer a necessidade de formar o professor em Nível Superior, em função das possibilidades de experiência junto à pesquisa, ao ensino e à extensão. Essa necessidade é reconhecida na

própria Lei de Diretrizes e Bases 9394/96 (BRASIL, 1996). A possibilidade em se formar professores em Nível Médio ainda perdura no Brasil; o que se questiona, então, é o conteúdo dessa formação e o projeto social imbricado nela.

Morais (1986, p. 33) afirma que ensinar é desencadear conflitos, que o homem é um ser de conflitos, que aprender envolve uma experiência de perplexidade e até de irritação. Ao professor cabe criar de forma consciente este conflito, “desvelar, juntamente com o educando, o embate da vida, sempre com a competência e o cuidado de respeitar os limites emocionais e intelectuais do aluno naquele ponto da sua existência”. Tal colocação expressa a magnitude da prática de ensinar, de ir ao encontro da inteligência do educando e ambos, ensinante e ensinando, com a cultura, a ciência e a tecnologia. Julgamos que a Resolução 02/99 não deu conta de explicitar tamanha responsabilidade humana e social, mesmo afirmando a necessidade do comprometimento do educador com a sociedade. A formação do educador deve deixar claro que a intervenção na realidade do educando deve ir além da sua aprendizagem de conteúdos; deve realmente considerar todas as “marcas” que o processo educativo escolar vai produzir no ser humano aprendente, é possibilitá-lo conhecer as formas como a sociedade foi se transformando ao criar e garantir sua existência e as idéias, as estruturas e as condições sociais que resultaram dessa relação. Agir desse modo é possibilitar ao outro a sua libertação. Isso envolve consciência, maturidade e constante pesquisa.