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3.4 A FÊNIX RENASCE EM NOVO NINHO

3.4.2 O Parecer 01/99: um Ramo de Sustentação do Ninho

A década de 90 foi marcada por profundas reformas político-sociais que tiveram como características o predomínio de uma economia baseada nos princípios da flexibilidade, da globalização, do uso irrefreável de altas tecnologias de comunicação e pelo uso do conhecimento como potencializador da riqueza. Por isso mesmo, estamos vivendo na “era do conhecimento”. Sendo o conhecimento produto também da educação, esta se tornou preocupação central de muitos governos, cientistas sociais e mesmo das sociedades de todo o planeta.

O Brasil, participando deste cenário, promoveu extensas reformas, dentre elas a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nº 9394/96. Concomitante à discussão para a elaboração da lei, e posteriormente à sua promulgação, travou-se uma discussão em torno da formação dos professores brasileiros, principalmente dos atuantes na educação básica, por compreender-se que estes são os principais responsáveis pela formação dos cidadãos brasileiros.

O Parecer 01/99 (BRASIL, 1999a)35 e a Resolução 02/99 do Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 1999b ), um dos resultantes desse amplo processo de discussão em torno da formação de professores, caracteriza-se, de forma geral, pela flexibilidade, pelo apoio à proposta pedagógica da instituição formadora e por destacar a necessidade de se formar um professor pesquisador, que possa lidar com os diferentes problemas que a realidade educacional apresenta. Assim destaca a questão da profissionalização docente que, segundo Enguita (2004, p. 39) supõe a capacidade de:

a) aplicar certos procedimentos ou rotinas a certas tarefas”; e no caso da docência envolve saber fazer o planejamento, preencher certos formulários, dar pareceres sobre certas situações, enfim, a rotina do docente que caracteriza seu cotidiano;

b) diagnosticar cada caso ou problema para determinar qual é o procedimento ou a rotina adequada”, o que envolve um amplo conhecimento científico e de mundo, uma vez que o diagnóstico de uma dada situação supõe a problematização da mesma, supõe colocar-se criticamente diante da realidade;

35 A partir desse momento, só utilizaremos o número 01/99 para fazer referência ao Parecer do Conselho Federal de 29/01/99 que trata da formação de Professores em Nível Médio na Modalidade Normal. E também utilizaremos a identificação Resolução 02/99 para a Resolução nº 02/99 também editada em 29/01/99 pelo Conselho Nacional de Educação e pela Câmara de Educação Básica do MEC.

c) identificar novos problemas e criar novos procedimentos ou rotinas para estes, ou para a melhor resolução de problemas antigos.

De acordo com o Parecer 01/99 que dá bases para a Resolução 02/99, em seu item “Profissionalização do educador: identidade e formação” (BRASIL, 1999a, p. 3), encontra-se a afirmação de que “a docência supõe a competência para remeter o conhecimento à prática e ao conjunto das situações que enfrenta o profissional da educação no cotidiano escolar”. Veja que o parecer se apóia no conceito de “competência”, o que revela uma visão pragmática e técnica de atuação do professor, calcado em atributos flexíveis, adaptáveis aos “tempos incertos” (ENGUITA, 2004), desconsiderando sua historicidade e a historicidade do conhecimento construído nas áreas específicas dos saberes apreendidos em sua formação, expressos na forma de organização disciplinar do currículo. Descontextualiza- se socialmente o professor na medida em que buscam formar características de personalidade consideradas de valor para o âmbito capitalista em detrimento do conteúdo produzido socialmente e necessário à sua práxis.

Frigotto (2005) critica a noção de competência por colocar que a mesma está associada à noção de capital humano, ou seja, a capacidade humana a serviço do capital em duplo sentido. Num primeiro sentido, com conotação produtiva e técnica de fazer da educação um meio para se participar do mercado de trabalho e, num sentido ideológico, de excluir legitimamente aqueles considerados não-competentes em face dos parâmetros do capitalismo.

Por outro lado, o mesmo documento assinala, em sua introdução, a necessidade de conexão das instituições educacionais com as organizações da sociedade civil e o novo significado social e cultural da escola, devendo a mesma “vincular-se ao mundo do trabalho e da prática social” (BRASIL, 1999a). Tal proposição abre brechas para a instituição e a defesa de um currículo pautado na formação omnilateral do ser humano.

Em relação às bases para a fixação das diretrizes curriculares nacionais para o curso de formação de docente na modalidade normal em nível médio, o Parecer 01/99 afirma que o “curso deve formar professores autônomos e solidários, capazes de investigar os problemas que se colocam no cotidiano escolar”. A questão da autonomia foi analisada por Miranda (2000) e traz uma dupla conotação, podendo ser a autonomia no sentido psicológico, o que encerra uma atitude de iniciativa e ação, partindo de si perante a realidade, ou no

sentido político, como defendem os adeptos do neoliberalismo, a busca por soluções em nível local sem contar com o apoio das instâncias oficiais, engendrando no seio da sociedade civil por meio do voluntariado as soluções dos problemas que a realidade apresenta, principalmente na ordem dos recursos. O documento ressalta a formação de professores “solidários”, mas não deixa explícito qual o sentido da autonomia que se quer expressar.

Gramsci, nas palavras de Machado (1989), analisa que a conquista da autonomia de investigar o mundo e agir sobre ele por parte do indivíduo supõe a fase da racionalidade, maturidade e compreensão crítica da realidade, pressupõe a obtenção de instrumentos culturais e educativos, que não são internalizados sem esforço e disciplina. O conhecimento, segundo o autor, origina-se a partir do ambiente, vinculado às relações sociais de produção: “Assim, para que haja a conquista dos instrumentos necessários à obtenção da autonomia do indivíduo e para que a influência do ambiente possa ser controlada, tendo em vista o seu desenvolvimento moral, físico e intelectual, é preciso superar os mitos que envolvem o conceito de liberdade e livre iniciativa”. (MACHADO,1989, p. 148).

No item VIII (oitavo), há novamente uma referência à ação autônoma e solidária do futuro professor, mas desta vez ressaltam-se estas atitudes no âmbito da gestão democrática, o que corrobora nossa dúvida sobre a concepção dessa solidariedade.

Em outro parágrafo, no item V, ainda sobre as bases das diretrizes curriculares, o Parecer 01/99 sinaliza para a possibilidade de uma formação integrada, uma vez que proclama que “as diretrizes curriculares para o curso Normal em nível médio deverão ser inspiradas nos princípios éticos, políticos e estéticos” e, no item V (quinto) das bases para as diretrizes curriculares, institui-se que “além de contemplar conteúdos e competências de caráter geral, incluirá áreas que integram o currículo destinado à educação infantil e aos anos iniciais do ensino fundamental”. No mesmo item, fortalece-se a idéia de que a formação no curso Normal deverá assegurar o que estabelece o Parecer 15/98 (BRASIL, 1998) que fixa as diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio.

No item VI do Parecer, as ações práticas e reflexivas são consideradas em separado e não como instâncias de uma mesma atividade humana. Veja o que afirma o parecer:

A reflexão sistemática sobre o saber do fazer de cada professor e da escola como um todo é impulsionadora do processo de produção de conhecimento que se instaura como uma atividade crítica desde as origens da formação do

professor. No curso Normal, a reflexão sistemática sobre a prática deve conferir validade aos estudos e às experiências a que são expostos alunos e professores. Ao eleger o fazer como objeto da reflexão, a formação é concebida a partir do envolvimento dos alunos e professores em situações complexas, cuja intervenção exige a explicitação de conhecimentos e valores que referenciam competências afinadas com uma concepção de professor reflexivo, dotado da capacidade intelectual, autonomia e postura ética, indispensáveis ao questionamento das interpretações que apóiam, inclusive, suas intervenções no exercício da atividade profissional. O professor, nesse caso, é sujeito do seu conhecimento e se define como intelectual no âmbito de sua atividade profissional que é „prática e contextualizada‟. (BRASIL, 1999a, grifo dos autores).

Esse trecho apresenta um denso conteúdo ideológico liberal. Há uma separação entre o fazer e o refletir. Essas são instâncias, que, segundo o texto do Parecer, acontecem em momentos distintos, uma vez que se coloca a reflexão sobre a prática. Freire (1997) afirma que a práxis constitui uma abordagem da realidade que supõe a reflexão antes, durante e sobre a prática. Ao destacar o saber fazer do professor e colocar sua atividade como

prática contextualizada, o texto chama a atenção para o objetivo de se formar um professor

atentando-se para os aspectos técnicos dessa formação, ignorando-se a dimensão social e cultural mais ampla a qual esta formação deve privilegiar. No item seguinte, novamente o texto do Parecer faz referência à prática e reafirma a responsabilidade da educação como sendo da família e do Estado. Uma visão liberal-burguesa que exime o conjunto da sociedade de se responsabilizar pela educação e pela formação das novas gerações. Assim, quem não tem filhos na escola, não tem responsabilidades com a educação (COLL, 1999). Ou como afirma Gramsci (apud MACHADO, 1989), nessa perspectiva, a escola se torna interessada, no sentido de “interesseira” e só deve se preocupar com ela quem obterá algum proveito seja para si ou para os filhos. Numa perspectiva politécnica, a escola é “desinteressada” e constitui alvo das preocupações de toda a sociedade.

Ainda resgatando o conceito de práxis, citado no documento por diversas vezes como resultado da associação da teoria à prática, como se fossem em dados momentos coisas separadas e em outros momentos pudessem ser associadas, Kosik (1976, p. 201, grifos do autor) colabora conosco esclarecendo que:

Tampouco se pode conhecer a natureza da práxis partindo da distinção entre o homem da práxis e o homem da teoria, entre a praticidade e a teoricidade, porque essa distinção se baseia em uma determinada forma ou aspecto da

práxis, e, portanto, diz respeito apenas a esta, e não à práxis em geral. No

conceito da práxis a realidade humano-social se desvenda [...] como formadora e ao mesmo tempo forma específica do ser humano.

Se no item V, o Parecer aborda com importância o fato de se vincular e o saber específico, no item IX deixa claro uma segmentação entre o saber escolar e o mundo do trabalho, afirmando que o curso Normal deve estabelecer “o contato dos alunos com o mundo do trabalho e a prática social”. Valoriza a inserção no cotidiano escolar do futuro professor, mas não toma o trabalho como princípio educativo e sim como campo de aplicação dos conceitos estudados na escola de formação. Isso se torna mais evidente ainda quando o documento salienta que o contato do aluno com a prática gerará “conhecimento, valores e uma progressiva segurança dos alunos do curso normal, no domínio de sua profissão”.

De forma geral, o Parecer 01/99 (BRASIL, 1999a) e a Resolução 02/99 (BRASIL, 1999b) entendem a necessidade de uma sólida formação teórica e cultural do professor em formação, mas priorizam a prática em vários momentos e não a práxis como definidora da ação docente, mesmo fazendo referência à necessidade do professor de refletir

sobre sua prática.

O Parecer finaliza colocando a flexibilidade de organização curricular por parte das escolas, mas assegura um mínimo de 3.200 horas que podem ser cursadas em quatro anos ou em três anos em período de freqüência integral. Em seu último parágrafo, volta a fazer referência ao conceito de formar competências.