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2.1. A recusa do Logos como recusa da Verdade

2.1.2. Etsi Deus daretur: indo contracorrente

2.1.2.2. A restauração do ethos e o fomento de uma ecologia humana

A par e decorrente do Iluminismo pós-moderno, âmbito em que a razão pode reencontrar a sua vastidão sem escorregar no irracional, o Papa Ratzinger, cônscio, por sua vez, relativamente à carência da natureza aparecer novamente na sua verdadeira profundidade, nas suas exigências e com as suas indicações, adverte ainda para a necessidade de uma restauração do ethos e do fomento de uma ecologia do homem182. Efectivamente, ciente de que a época actual considera a natureza como puramente mecânica, desprovida em si mesma de qualquer imperativo moral, o Pontífice entende como fundamental voltar a encontrar um conceito verdadeiro de natureza, como criação de Deus que fala ao homem e lhe indica os valores autênticos, isto é, uma noção segundo a qual do próprio ser promana uma orientação exacta para o homem183.

Segundo o autor, como se indicou, tal problemática adquire ainda maior premência no contexto relativista contemporâneo, pelo que se revela imperativo clarificar o fundamento racional objectivo dos direitos humanos, comum a todos os povos, e desenvolver a sua validade universal, assim como a inviolabilidade, inalienabilidade e indivisibilidade dos

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Cf. BENTO XVI, Ajudemos os nossos irmãos a progredir pelos caminhos da vida e da liberdade autêntica - Discurso na Assembleia Geral da Conferência Episcopal Italiana (18 de Maio de 2006), in L’Osservatore Romano 37/21 (2006) 4; E. ESLAVA, E., La razón mutilada. Ciencia, razón y fe en el pensamiento de Joseph Ratzinger, 848; P. BLANCO, Modernidad y posmodernidad, 22-24.

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Cf. BENTO XVI, Uma política ao serviço do direito e da justiça, 5. 183

Cf. BENTO XVI, Uma crise não só económica, mas também cultural e espiritual - Discurso na Assembleia Geral da Conferência Episcopal Italiana (27 de Maio de 2010), in L’Osservatore Romano 41/23 (2010) 3; A escuta da linguagem da criação salva o homem da destruição, 7; Carta Encíclica Caritas in Veritate, 48: «Quando a natureza, a começar pelo ser humano, é considerada como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo, a noção de responsabilidade debilita-se nas consciências […]. A natureza é expressão de um desígnio de amor e de verdade. Precede-nos, tendo-nos sido dada por Deus como ambiente de vida […]. A natureza está à nossa disposição […] como um dom do Criador que traçou os seus ordenamentos intrínsecos dos quais o homem há-de tirar as devidas orientações para a guardar e cultivar (Gn 2, 15) […]. Obra admirável do Criador, a natureza contém nela uma gramática que indica finalidades e critérios para uma utilização sapiente, não instrumental nem arbitrária. Advêm, hoje, muitos danos ao desenvolvimento precisamente destas concepções deformadas. Reduzir completamente a natureza a um conjunto de simples dados reais acaba por ser fonte de violência contra o ambiente e até por motivar acções desrespeitadoras da própria natureza do homem. Esta, constituída não só de matéria mas também de espírito e, como tal, rica de significados e de fins transcendentes a alcançar, tem um carácter normativo também para a cultura. O homem interpreta e modela o ambiente natural através da cultura, a qual, por sua vez, [deve ser] orientada por meio da liberdade responsável, atenta aos ditames da lei moral».

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mesmos, sendo que, como assevera o Pontífice, tais direitos, bem como os restantes valores e deveres éticos elementares, encontram-se arraigados na dignidade natural de cada pessoa, dado acessível à razão humana, e independente de qualquer configuração religiosa184.

A estes aspectos, Bento XVI reúne ainda a inferência de que o homem hodierno contesta o facto de possuir uma natureza pré-constituída pela sua corporeidade, não se inibindo, inclusivamente, de a negar com a afirmação oposta de que esta não lhe é dada como um facto pré-definido, julgando-se, com efeito, no direito de criar a sua própria natureza. Assim, tido somente como espírito e vontade, este é reconhecido apenas em abstracto, escolhendo para si, de forma autónoma, o que adopta como sua natureza. Em tal circunstância, onde impera a comummente nomeada ideologia do género e seus derivados185, o Pontífice verifica que «a liberdade do fazer se torna liberdade de fazer-se por si mesmo», numa consequente recusa do Criador e do próprio homem enquanto criatura e imagem de

Deus 186 . Tudo isto resulta, segundo o autor, das modernas revoluções filosófico-antropológicas e científicas, anteriormente analisadas, geradoras, pois, de uma

civilização olvidada acerca de Deus e do que seja ser homem, a qual, só se conhecendo a si mesma e apenas reconhecendo o seu critério de medição, vive contra a verdade, não aceitando o homem como criatura, no qual está inscrita uma mensagem que não significa contradição com a sua liberdade, sendo antes sua vital condição187.

Por estas razões, como se enunciou noutro momento, na reflexão esplanada na sede da ONU, o Pontífice alertou para «a clara violação da ordem da criação» hoje realizada em tantas instâncias, «até ao ponto em que não só é contrastado o carácter sagrado da vida, mas a própria pessoa humana e a família são privadas da sua identidade natural», referindo também, o autor, que «a acção internacional destinada a preservar o ambiente e a proteger as várias formas de vida sobre a terra não deve garantir apenas um uso racional da tecnologia e da ciência, mas, do mesmo modo, deve procurar redescobrir a imagem autêntica da criação», sustendo, em suma, que para tal não basta equacionar «uma opção a ser feita entre ciência e

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Cf. BENTO XVI, A dignidade natural de cada pessoa: raiz da inviolabilidade dos direitos humanos, 14. 185

Cf. BENTO XVI, Quem defende Deus defende o homem, 9: «Hoje, sob o vocábulo gender - género, apresenta-se uma nova filosofia da sexualidade. De acordo com tal filosofia, o sexo já não é um dado originário da natureza que o homem deve aceitar e preencher pessoalmente de significado, mas uma função social que cada qual decide autonomamente, enquanto até agora era a sociedade quem a decidia. Salta aos olhos a profunda falsidade desta teoria e da revolução antropológica que lhe está subjacente»; A escuta da linguagem da criação salva o homem da destruição, 7: «O que com frequência é expresso e entendido com a palavra gender, resolve- se em definitiva na auto-emancipação do homem da criação e do Criador. O homem pretende fazer-se sozinho e dispor sempre e exclusivamente sozinho o que lhe diz respeito».

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Cf. BENTO XVI, Quem defende Deus defende o homem, 9. 187

Cf. BENTO XVI, A escuta da linguagem da criação salva o homem da destruição, 7; E. SÁNCHEZ, Fundamentación ético-antropológica, 160-172; J. CORRAL, El declive del aprecio por la vida humana: claves culturales, 101-109.

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ética», exigindo-se antes «um método científico que seja verdadeiramente respeitador dos imperativos morais» e, por conseguinte, como fundamento para o efeito, capaz de reconhecer no direito natural «uma lei inscrita no coração do homem e presente nas diversas culturas e civilizações». De igual modo, convicto de que, quer os direitos humanos quer sobremaneira a pessoa humana, sujeito destes mesmos direitos, comportam um valor universal, as intervenções de Bento XVI nos Parlamentos de Londres e de Berlim, ao indagarem pelo fundamento ético do direito e da justiça, reiteram o entendimento de que o respeito pela referida lei natural se revela essencial para que a natureza e a razão humanas sejam justamente tomadas como verdadeiras fontes do direito188.

Atentos estes pressupostos, conclui-se, portanto, segundo o pensamento ratzingeriano, que «a importância da ecologia é agora indiscutível», pelo que o homem «deve ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente». Este repto, expresso na Câmara Alta do Reichstag, como se demonstrou anteriormente, intentou despertar a consciência pública para o facto de que, a par da ecologia ambiental, «existe também uma ecologia do homem», segundo a qual este «deve respeitar e não pode manipular a sua natureza como lhe apetece». Neste sentido, também na referida ocasião o Pontífice voltou a expor a sua perspectiva segundo a qual «o homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria», e que, sendo espírito e vontade, «é também natureza, e a sua vontade é justa quando a respeita e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo», pelo que, segundo o Papa Ratzinger, «só assim se realiza a verdadeira liberdade humana»189.

188

Cf. BENTO XVI, Os direitos humanos radicados na justiça, 8; Razão e fé precisam uma da outra, 6; Uma política ao serviço do direito e da justiça, 4.

189

BENTO XVI, Uma política ao serviço do direito e da justiça, 5; cf. Carta Encíclica Caritas in Veritate, 51: «Requer-se uma espécie de ecologia do homem, entendida no justo sentido. De facto, a degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana: quando a ecologia humana é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental. Tal como as virtudes humanas são intercomunicantes, de modo que o enfraquecimento de uma põe em risco também as outras, assim também o sistema ecológico se rege sobre o respeito de um projecto que se refere tanto à sã convivência em sociedade como ao bom relacionamento com a natureza. Para preservar a natureza não basta intervir com incentivos ou penalizações económicas, nem é suficiente uma instrução adequada. Trata-se de instrumentos importantes, mas o problema decisivo é a solidez moral da sociedade em geral. Se não é respeitado o direito à vida e à morte natural, se se tornam artificiais a concepção, a gestação e o nascimento do homem, se são sacrificados embriões humanos na pesquisa, a consciência comum acaba por perder o conceito de ecologia humana e, com ele, o de ecologia ambiental. É uma contradição pedir às novas gerações o respeito do ambiente natural, quando a educação e as leis não as ajudam a respeitar-se a si mesmas. O livro da natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a vertente da vida, da sexualidade, do matrimónio, da família, das relações sociais, numa palavra, do desenvolvimento humano integral. Os deveres que temos para com o ambiente estão ligados com os deveres que temos para com a pessoa considerada em si mesma e em relação com os outros. Não se podem exigir uns e espezinhar os outros. Esta é uma grave antinomia da mentalidade e do costume actual, que avilta a pessoa, transtorna o ambiente e prejudica a sociedade»; J. RATZINGER, No Princípio Deus criou o Céu e a Terra, 81-83; E. SÁNCHEZ, Fundamentación ético-antropológica, 172-176.

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Um modo de vida etsi Deus daretur, ou seja «firmemente ancorado na dimensão religiosa do homem» revela-se, enfim, a melhor forma de restauração do ethos e do fomento da ecologia humana, visto que, o reconhecimento do valor transcendente de cada homem e mulher favorece a conversão do coração e leva a um compromisso pela construção de uma ordem social respeitadora da dignidade e dos direitos da pessoa190.