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2.1. A recusa do Logos como recusa da Verdade

2.1.1. O Iluminismo moderno e o relativismo contemporâneo

2.1.1.2. Uma profunda crise cultural

A análise em curso sobre o pensamento do Papa bávaro permitiu já tecer o grave corolário de que a contemporânea cultura positivista que relega para o âmbito subjectivo, como não científica, a pergunta acerca de Deus, causa a capitulação da razão, numa renúncia das suas possibilidades mais elevadas e, consequentemente, o descalabro do humanismo. Assim, uma certa tensão que, por vezes, assume proporções de acérrimo conflito, entre o presente e a tradição, é por antonomásia o reflexo da referida realidade que, numa

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Cf. BENTO XVI, Uma política ao serviço do direito e da justiça, 5; J. CORRAL, El declive del aprecio por la vida humana: claves culturales, 108-109; R. GARCÍA, Conciencia, Naturaleza y Derechos: discurso en el Bundestag, 189-191; E. SÁNCHEZ, Fundamentación ético-antropológica, 167-169.

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BENTO XVI, Uma política ao serviço do direito e da justiça, 5; cf. Carta Apostólica Ubicumque et semper, 20; E. SÁNCHEZ, El ocaso de la teleología en la naturaleza humana: una clave de la crisis bioética según Ratzinger, 676-680 e 685-688; R. GARCÍA, Conciencia, Naturaleza y Derechos: discurso en el Bundestag, 175-181.

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Cf. BENTO XVI, Fé, razão e universidade. Recordações e reflexões, 9; J. RATZINGER, Introdução ao Cristianismo: ontem, hoje e amanhã, 18-19; J. CORRAL, El declive del aprecio por la vida humana: claves culturales, 92-96; A. MARTÍNEZ-CARBONELL, Fundamentación teológica y jurídica de la dignidade humana, 194-199.

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absolutização do presente, isolado do património cultural do passado, não intenta traçar um futuro157.

Segundo o Pontífice esta situação de secularismo caracteriza sobretudo as sociedades de antiga tradição cristã e corrói aquele tecido cultural que era uma referência unificadora, capaz de abraçar a existência humana no seu todo e de cadenciar os seus momentos mais significativos, desde o nascimento até à morte. Por este motivo, como se constatou anteriormente, o autor considera que o património espiritual e moral em que o Ocidente afunda as suas raízes e que constitui a sua linfa vital deixou de ser compreendido e aceite no seu valor profundo, razão pela qual o homem de hoje não reconhece uma instância de verdade e, simultaneamente, de maneira confusa, exprime uma acutilante exigência de espiritualidade e de sobrenatural, reveladora, por isso, da desconcertação e da inquietação experimentadas por um coração fechado à sublimidade de Deus158.

Atentos os pontos acima desenvolvidos, elucidativos quanto ao facto do poder das capacidades humanas ser actualmente considerado a medida do agir, separado de qualquer norma moral, contexto este em que, como se atestou, o próprio homem sofre uma redução, deduz-se, do pensamento ratzingeriano, que a profunda crise cultural molestadora do momento histórico presente, radica, em larga escala, nas patologias da razão e da religião159. Tal expressão – patologias –, recorrentemente tomada por Ratzinger, concerne ao referido reducionismo da razão que, como o Pontífice explanou na Aula Magna de Regensburg, «necessariamente eclode quando a razão fica a tal ponto limitada que as questões da religião e do ethos deixam de lhe dizer respeito»160, bem como, às ambiguidades ideológico-religiosas, ulteriormente dissecadas, por Bento XVI, no Parlamento londrino161.

Posto isto, verifica-se que a vigente crise cultural resulta do hodierno conflituoso intercâmbio entre o mundo da secularidade racional e o mundo do credo religioso, pelo que o autor adverte que a sanação das supracitadas patologias somente poderá dar-se quando a

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Cf. BENTO XVI, Procurar Deus e escutá-l’O: fundamento de toda a verdadeira cultura, 5; É hora de indicar novos mundos ao mundo, 5; F. COSENTINO, Postmodernità, ateismo e immagini di Dio, in Rassegna di Teologia 51 (2010) 556-559.

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Cf. BENTO XVI, A Igreja é uma imensa força renovadora, 6; Carta Apostólica Ubicumque et semper, 20-21; Recomecemos a partir de Deus, 10; J. RATZINGER, A Igreja e a nova Europa, 66-70; R. CANTALAMESSA, Horizontes para uma Nova Evangelização, 97-104; J. BURGGRAF, ¿Qué Europa queremos? ¿Una sociedade postmoderna, multicultural o fiel a sus raíces?, 843-844; F. COSENTINO, Postmodernità, ateismo e immagini di Dio, in Rassegna di Teologia 51 (2010) 556-559.

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Cf. J. RATZINGER, A Igreja e a nova Europa, 23-26 e 84-87; P. BLANCO, Modernidad y posmodernidad, 8-10; G. PICCOLO, Gli argomenti dei nuovi atei, in Rassegna di Teologia 53 (2012) 133.

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BENTO XVI, Fé, razão e universidade. Recordações e reflexões, 9; cf. P. BLANCO, Fe, Razón y Amor. Los discursos de Ratisbona, 775-778.

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razão admitir que a fé purifique e lance luz sobre a sua aplicação na descoberta dos princípios morais objectivos, correcção esta impeditiva, portanto, da sua manipulação por parte de ideologias e do seu emprego parcial, no qual a dignidade da pessoa humana não é plenamente considerada, e, do mesmo modo, quando a religião prestar a atenção suficiente ao papel purificador e estruturador da razão, no seu interior, a qual, com efeito, não compactua com o sectarismo, nem com o fundamentalismo, constitutivos de distorcidas formas religiosas responsáveis por sérios problemas sociais162. Neste sentido, visto que razão e fé encerram uma implicação mútua, o Pontífice afirma que o sobredito restabelecimento a efectivar consta de «um processo que funciona em duplo sentido»163.

Das supracitadas patologias infere-se, pois, segundo o autor, a transferência das questões da religião e do ethos do espaço da razão comum para o foro subjectivo, numa circunscrição das mesmas à discricionariedade pessoal, âmbito no qual o sujeito decide o que lhe parece religiosamente sustentável, apenas baseado nas suas experiências e na sua consciência subjectiva, tida como única instância ética164. Deste modo, Ratzinger entende ainda que a presente crise cultural resulta também da já enunciada noção iluminista de liberdade, compreendida como emancipação das normas tradicionais, em que a racionalidade surge, por sua vez, como auto-decisão que se ordena a dissolver a hétero-decisão emanada pela autoridade. Isto mesmo permite o Pontífice concluir que, paradoxalmente, o movimento das luzes não pretendia, na verdade, que a liberdade de todo o vínculo ocupasse o lugar deste, mas que se sacudisse o vínculo exterior, aquele que é imposto pelo outro, e fosse substituído pelo racional, ou seja, pelo que procede da inteligência. Todavia, como se constatou, atenta a referida concepção moderna, a consideração da dimensão social da liberdade levanta, por seu turno, diversas dificuldades, desde logo, provocadas pela mencionada empresa do Iluminismo concernente à substituição dos fundamentos sociais herdados pela busca de um sentido exclusivamente orientado pela razão, cuja consequência consiste, segundo o Papa Ratzinger, na profunda crise cultural em vigor165.

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Cf. BENTO XVI, Razão e fé precisam uma da outra, 6 163

BENTO XVI, Razão e fé precisam uma da outra, 6; cf. M. MONGE, Fe y nueva evangelización, 147-150. 164

Cf. BENTO XVI, Fé, razão e universidade. Recordações e reflexões, 9. 165

Cf. J. RATZINGER, Iglesia, ecumenismo y política, 201-202: «O Iluminismo pretende ser uma história totalmente particular de liberdade. Apenas agora, com a emancipação das amarras da natureza e da superstição, poderia o homem começar a ser ele mesmo o sujeito da história. Apenas agora poderia o homem manejar a história, que havia deixado de ser para ele um destino inexorável, poderia conduzir o seu próprio destino e transformá-lo num processo de libertação […]. [No entanto], as dificuldades começam quando se apresenta a dimensão social de liberdade e se pretende compreende-la. Porque as tradições, das quais a razão se tinha emancipado, haviam sido também ordens e regras arraigadas na comunidade dos homens; a harmónica relação dos indivíduos no corpo social fundava-se sobre a observação das mesmas. Estas prescreviam as funções em que a existência humana podia explicar-se e viver. A este respeito, a ideia iluminista era muito simples. Em lugar das

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