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2.1. A recusa do Logos como recusa da Verdade

2.1.1. O Iluminismo moderno e o relativismo contemporâneo

2.1.1.1. Dois eclipses inevitáveis

Tendo em conta o quadro iluminista anteriormente descrito, o Papa Ratzinger entende, enfim, que por detrás do optimismo difundido pelo saber científico se estende a sombra de uma crise do pensamento, que levou o homem, deslumbrado pela eficácia técnica, a esquecer-se do horizonte fundamental da exigência de sentido, relegando à irrelevância a dimensão transcendente, cujo resultado consiste na vigente depauperação ética, que ofusca as referências normativas de valor149. Deste modo, verifica-se, na sequência da metafisica

da razão e no direito de considerar tudo o resto um mero estádio ultrapassado da humanidade e que pode ser adequadamente relativizado. Na realidade, isto significa que temos necessidade de raízes para sobreviver, e que não devemos perder Deus de vista se queremos que a dignidade humana não desapareça»; J. RATZINGER, A Igreja e a nova Europa, 70-76.

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Cf. J. RATZINGER, Introdução ao Cristianismo: ontem, hoje e amanhã, 13: «Uma certeza fundamental do homem moderno […] consiste na convicção de que não somos capazes de conhecer mesmo Deus, de que tudo o que se afirma a respeito d’Ele só pode ser simbólico»; BENTO XVI, Luz do Mundo – O Papa, a Igreja e os Sinais dos Tempos. Uma conversa com Peter Seewald (Cascais: Lucerna 2010) 58: «Temos de ter a audácia de dizer: sim, o homem tem de procurar a verdade; ele é capaz da verdade. É evidente que a verdade necessita de critérios de verificação e de falsificação. E deve andar sempre de mãos dadas com a tolerância. Mas a verdade mostra-nos também valores constantes que fizeram grande a humanidade. Por isso devemos reaprender e voltar a praticar a humildade de reconhecer a verdade e deixar que ela nos sirva de bitola»; M. TOSATTI, Dicionário do Papa Ratzinger. Guia para o Pontificado, 104-106; Á. LUNO, Relativismo, Verdad y Fe, in Romana – Boletím de la Prelatura de la Santa Cruz y Opus Dei, 150; M. MONGE, Fe y nueva evangelización (Madrid: BAC 2013) 145-146.

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Cf. BENTO XVI, Sem amor a ciência perde a sua humanidade, 5; J. RATZINGER, Introdução ao Cristianismo: ontem, hoje e amanhã, 11-12: «Quando Deus é posto de lado, inicialmente, tudo parece continuar como dantes. As opções fundamentais arreigadas e as formas básicas de vida continuam em vigor, apesar de terem perdido a sua fundamentação. Mas tudo muda no momento em que a mensagem de que Deus está morto passa a ser realmente percebida […]. Hoje verificamos isso na maneira como a ciência lida com a vida humana, fazendo com que o ser humano se torne automaticamente um objecto da tecnologia, de modo que desaparece cada vez mais como ser humano. Quando são criados embriões nos laboratórios com a finalidade de ter à disposição material de investigação e de constituir bancos de órgãos que possam ser úteis a outros seres humanos, já não se ouve quase nenhum grito de espanto. Afinal, é o progresso que exige tudo isso, e os objectivos são tão nobres: melhorar a qualidade de vida dos seres humanos, ou seja, pelo menos dos que têm condições para aceder a esses serviços. Mas quando o ser humano se torna, para si mesmo, apenas num objecto na sua origem e nas suas raízes, quando é produzido e seleccionado no decurso de um processo segundo desejos e utilidades, o que pode ainda o ser humano pensar acerca do ser humano? Que comportamento deve adoptar em relação a ele? Como há-de o ser humano encarar o ser humano quando não encontra mais nada do mistério divino no outro, mas apenas a sua própria capacidade para fazer? O que aí se manifesta nas altas esferas da ciência encontra o seu reflexo em toda a parte onde se conseguiu, em larga escala, arrancar Deus do coração dos homens»; E. SÁNCHEZ, El ocaso de la teleología en la naturaleza humana: una clave de la crisis bioética

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moderna, que o drama do homem contemporâneo radica no não reconhecimento de uma verdade inscrita no seu coração, isto é, de um fundamento objectivo para o seu pensar e o seu agir, encontrando-se, assim, obscurecido pelo crepúsculo de Deus e de si mesmo150. Tal facto, segundo Bento XVI, consiste na grande problemática da sociedade ocidental, marcada, portanto, por um esquecimento de Deus que se difunde, provocado, por sua vez, pela secularização que assola as culturas com um delineamento do mundo e da humanidade sem referência à transcendência, impregnando todos os aspectos da vida quotidiana e fomentando a sobredita mentalidade em que Deus se tornou total ou parcialmente ausente da existência e da consciência do homem151.

Neste sentido, compreende-se a intuição do Pontífice segundo a qual a recusa de uma

Razão Criadora torva a visão do homem, não apenas sobre Deus, mas, desde logo, acerca si

mesmo, pelo que, como se indicou no início, alheado relativamente ao sentido da existência e à interrogação pela verdade e por Deus, o homem ignora, também, a sua identidade, e a fonte a partir da qual pode haurir os seus critérios e pautar o seu caminho152. Trata-se, sucintamente, da constatação, de alguma forma já enunciada, de que «se o mundo e o ser humano não provêm de uma Razão Criadora que traz em si a sua medida e a insere no homem, nada mais resta a não ser regras de trânsito para o comportamento humano que devem ser projectadas e justificadas de acordo com a sua utilidade», isto é, em conformidade com «o cômputo dos seus efeitos, aquilo que se entende teleologicamente por ética ou proporcionalismo»153. Isto mesmo expressou o autor na sua referência ao jurista e filósofo positivista Hans Kelsen (1881-1973), presente no texto proferido no Parlamento alemão, por meio da qual sustenta que, tida simplesmente enquanto agregado de dados objectivos, unidos mutuamente como causas e efeitos, não se pode deduzir da natureza qualquer indicação que seja de algum modo de carácter ético, pelo que, o homem necessita de voltar a abrir as janelas do seu

según Ratzinger, 668-676; A. MARTÍNEZ-CARBONELL, Fundamentación teológica y jurídica de la dignidade humana, 186-190.

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Cf. BENTO XVI, Uma maneira nova de ser cristão, 9; C. CANEVA, La sfida del post-umano. Verso nuovi modelli di esistenza?, in Rassegna di Teologia 46 (2005) 269-271, 284-287.

151

Cf. BENTO XVI, A razão da paz vença a irracionalidade da violência!, 7; A secularização na Igreja desnatura a fé e o estilo de vida dos fiéis, 5; J. RATZINGER, A Europa de Bento na crise de culturas, 39: «A tentativa, levada ao extremo, de modelar as coisas humanas prescindindo completamente de Deus conduz-nos cada vez mais para o abismo, para o total esquecimento do homem»; F. COSENTINO, Postmodernità, ateismo e immagini di Dio, in Rassegna di Teologia 51 (2010) 552-556.

152

Cf. BENTO XVI, Procurar Deus e escutá-l’O: fundamento de toda a verdadeira cultura, 5; J. RATZINGER, Fé, Verdade e Cultura. Reflexões a propósito da Encíclica Fides et Ratio, 466.

153

J. RATZINGER, Introdução ao Cristianismo: ontem, hoje e amanhã, 18; cf. A. MARTÍNEZ-CARBONELL, Fundamentación teológica y jurídica de la dignidade humana, 190-194.

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entendimento, percebendo que no seu mundo autoconstruído bebe em segredo nos recursos de Deus, que pertinazmente intenta tornar próprios154.

Das considerações de Ratzinger, segundo as quais, a emancipação da razão em relação à fé depressa se evidenciou a causa do deserto interior hoje percorrido pelo homem, o qual desejando ser o único artífice da sua natureza e do seu destino, se encontra desprovido daquilo que constitui o fundamento de tudo, pelo que, actualmente, se afigura toldado «o que seja justo e possa tornar-se direito vigente relativamente às questões antropológicas fundamentais»155, deverão concluir-se, em suma, dois aspectos. Antes de mais, a clara constatação ratzingeriana de que, subjacente ao aparente humilde realismo moderno, se esconde a ideia do distanciamento de Deus em relação ao mundo, do que resulta, concomitantemente, a partir dos silogismos ditados pela razão pura, a perda da presença de Deus. Em segundo lugar, aufere-se a pragmática inferência de que uma análise restringida ao agregado dos efeitos, obscurece a inviolabilidade da dignidade humana, uma vez que, deste modo, nada pode ser considerado bom ou mau em si mesmo.156 Tais factos subjazem, pois, à profunda crise cultural do continente europeu e do mundo ocidental, doravante abordada.