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2.1. A recusa do Logos como recusa da Verdade

2.1.2. Etsi Deus daretur: indo contracorrente

2.1.2.1. A proposta de um Iluminismo pós-moderno

Apesar de Bento XVI não empregar expressamente em nenhum dos doze discursos estudados as fórmulas latinas acima dissecadas, verifica-se, de facto, que subjazem aos mesmos o seu significado e sentido, porquanto, em uníssono, como já se sustentou, estes constituem-se uma eloquente admoestação referente à cegueira da razão auto-suficiente e à consequente necessidade de restaurar a capacidade de ver Deus e o homem, aquilo que é bom e o que é verdadeiro, encerrando tal problemática, decididamente, o futuro da humanidade174.

caso contrário o mundo não funciona»; P. BLANCO, Razón, Cristianismo y Modernidad: ecos de Ratisbona, 128-133; A. FERRERAS, Fe cristiana y Nueva Evangelización, 352-357.

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Cf. J. RATZINGER, Dogma e Anúncio, 386: «Dietrich Bonhoeffer observou numa ocasião que o cristão deve viver quasi Deus non daretur, como se Deus não existisse. Que devia deixar Deus de fora dos enredos de cada dia, estruturando a sua vida terrena inteiramente por sua própria responsabilidade. Eu, em oposição a isso, preferiria formular precisamente em sentido inverso: hoje também aquele para o qual a existência de Deus, o mundo da fé se tornou escuro, praticamente deveria viver, quasi Deus esset, como se Deus realmente existisse. Viver sob a realidade da verdade que não é nosso produto mas nossa soberana. Viver sob a direcção da justiça que não só pensamos, mas que é poder e nos determina a nós mesmos. Viver sob a responsabilidade do amor que espera por nós e nos ama. Viver sob a exigência da eternidade […]. E quem, embora no início de modo talvez indeciso, se confiar a este como-se trabalhoso e contudo inevitável […] notará sempre mais que o mesmo é a verdadeira realidade».

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Cf. J. RATZINGER, Europa. Os seus fundamentos hoje e amanhã, 105: «Se o Iluminismo foi à procura dos fundamentos morais válidos etsi Deus non daretur, hoje devemos convidar os nossos amigos agnósticos a abrir- se a uma moral si Deus daretur»; A Europa de Bento na crise de culturas, 40: «Devemos inverter o axioma dos iluministas e dizer: mesmo aqueles que não conseguem encontrar o caminho da aceitação de Deus deveriam procurar viver e orientar a sua vida veluti si Deus daretur, como se Deus existisse. É este o conselho que já Pascal dava aos amigos não crentes; é o conselho que gostaríamos de dar também hoje aos nossos amigos que não acreditam. Assim ninguém fica limitado na sua liberdade, mas todas as nossas coisas encontram o apoio e o critério de que têm urgente necessidade»; M. PERA, Por qué debemos considerarnos cristianos. Un alegato liberal, 69-73.

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Neste sentido, desde logo, algumas das epígrafes dos referidos escritos – Fazer ciência

no horizonte de uma racionalidade aberta ao transcendente, a Deus; Não venho impor a fé, mas solicitar a coragem pela verdade; A verdade encarna-se na fé e a razão faz-se verdadeiramente humana; Procurar Deus e escutá-l’O: fundamento de toda a verdadeira cultura; É hora de indicar novos mundos ao mundo; Razão e fé precisam uma da outra; A razão que segue a fé responde à sua vocação; Sem amor a ciência perde a sua humanidade

– revelam-se, particularmente, elucidativas quanto à proposição do Pontífice acerca de um

Iluminismo pós-moderno, âmbito no qual a razão possa dilatar-se à grandeza inefável da Verdade175.

Como o Papa alemão indicou na lectio de Ratisbona, assim como em demais circunstâncias, e tal como se mencionou anteriormente, a sua crítica da razão moderna «não inclui de forma alguma a opinião de que se deva voltar atrás, para antes do Iluminismo, rejeitando as convicções da Idade Moderna», tratando-se, inversamente, da enunciada asserção «de um alargamento do conceito moderno de razão e do seu uso»176. Com efeito, a proposta do Papa Ratzinger não consta de uma declaração anti-moderna, mas, pelo contrário, portanto, de uma posição verdadeiramente pós-moderna, determinada a não incorrer nos erros iluministas, conceptualmente consubstanciados nas supracitadas patologias da razão e da religião, e empenhada no alcance de uma nova simbiose entre pós-modernidade e Cristianismo, da qual resulte, por seu turno, uma nova cultura e uma nova sociedade, norteadas, pois, por uma razão ampliada à incomensurabilidade da verdade, do transcendente e da fé, ao mundo da ética e das intuições humanas, da arte e da beleza177.

Segundo o autor, um Iluminismo pós-moderno respeita, por isso, à consciência de que a fé deve ser contemporaneamente tomada como objecto do pensamento e, por conseguinte, que a razão deve abarcar as questões da humanidade concernentes ao sentido do existir, sem deixar que as mesmas sejam relegadas à irracionalidade. Tal intuição, como se vislumbrou noutros momentos, radica na constatação de que ambas, fé e razão, procedem e remetem-se,

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Cf. J. RATZINGER, La fe como camino. Contribuición del ethos cristiano en el momento actual, 24-27; U. CASALE, La teología de Ratzinger, 112-116; J. RUIZ-ALDAZ, ¿Es cristiano deshelenizar el cristianismo?, in Scripta Theologica 39/3 (2007) 818-828.

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Cf. BENTO XVI, Fé, razão e universidade. Recordações e reflexões, 9: «Tudo o que é válido no desenvolvimento moderno do espírito, há-de ser reconhecido sem reservas: todos nos sentimos agradecidos pelas grandiosas possibilidades que isso abriu ao homem e pelos progressos que nos foram proporcionados no campo humano. Aliás, o ethos da cientificidade […] é vontade de obediência à verdade e, consequentemente, expressão duma atitude que faz parte das decisões essenciais do espírito cristão. Portanto, a intenção não é retracção, nem crítica negativa […]»; Não venho impor a fé, mas solicitar a coragem pela verdade, 7; Razão e fé precisam uma da outra, 6; A razão que segue a fé responde à sua vocação, 7; Sem amor a ciência perde a sua humanidade, 5; P. O’CALLAGHAN, La relación entre modernidade y evangelización, in Scripta Theologica 45 (2013) 49-50. 177

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em última instância, ao Logos primordial, pelo que, como Bento XVI argumentou em 2012, na celebração do cinquentenário da fundação da faculdade de medicina e cirurgia da policlínica Agostino Gemelli, «ciência e fé têm uma reciprocidade fecunda, quase uma exigência complementar da compreensão do real»178, inferindo-se, desta forma, que a síntese ratzingeriana intenta, efectivamente, o restabelecimento da coesão entre duas realidades que, separadas por diversas correntes filosóficas, atestam, todavia, uma correspondência intrínseca e indefectível179.

Levado a cabo no contexto da supramencionada crise ético-cultural hodierna, da qual surgem as interrogações fundamentais quanto à luz que possa iluminar o conhecimento do homem não apenas com ideias gerais, mas com imperativos concretos, bem como, sobre o sustentáculo que sublime e ordene a vontade humana à demanda e à prática do bem, o empreendimento do Papa Ratzinger não pretende meramente lograr o reconhecimento da fé cristã por parte da razão positivista, dita livre e emancipada, mas, como se procurou demonstrar até agora, audaciosamente anela a libertação da própria razão, obstruída pela ingenuidade e pelo orgulho iluministas. De tal facto, deduz-se que o pensamento do teólogo e Papa bávaro, simultaneamente, consiste numa defesa da fé e da razão, atenta a clarificação acerca da supracitada inter-relação vigente entre as mesmas180.

O Iluminismo pós-moderno proposto por Bento XVI, contrariamente ao movimento das luzes, traduz-se outrossim, no respeito pela intangibilidade da dignidade humana, neste quadro constituída dado fulcral dos ordenamentos ético-jurídicos, e pela fé em Deus Criador enquanto seu garante mais viável. A partir destes elementos concernentes à restauração do

ethos e ao fomento de uma ecologia humana, seguidamente abordadas, o Pontífice articula o

seu entendimento referente ao que denomina por laicidade positiva, segundo a qual, mediante a justa distinção entre Estado e Igreja, as realidades temporais, regidas por normas político-económicas específicas, devem salvaguardar sempre as orientações éticas que encontram o seu fundamento na própria essência do homem e que remetem, em última análise, para Deus Criador. Tal perspectiva, segundo o autor, não consiste, de todo, num atentado contra a laicidade, reflectindo antes o contributo católico para a garantia e para a promoção da dignidade da pessoa e do bem comum da sociedade, o qual recorda o valor

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BENTO XVI, Sem amor a ciência perde a sua humanidade, 5; cf. S. BONGIOVANNI, Umanizzare la Ragione. Il particolare e l’universale in una razionalità condivisa, in Rassegna di Teologia 51 (2010) 381-387. 179

Cf. BENTO XVI, A razão que segue a fé responde à sua vocação, 7 e 11; P. BLANCO, Fe, Razón y Amor. Los discursos de Ratisbona, 771-772 e 776-777.

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Cf. BENTO XVI, Uma maneira nova de ser cristão, 8; E. ESLAVA, La razón mutilada. Ciencia, razón y fe en el pensamiento de Joseph Ratzinger, 842.

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elementar que têm, para a vida privada e sobretudo pública, os princípios éticos fundamentais, presentes na fundação cristã da Europa181.