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1 ARQUEOLOGIA, REMANESCENTES, MANUFATURAS E INDÚSTRIAS

1.1 A RQUEOLOGIA I NDUSTRIAL

A preservação do patrimônio industrial é recente, nasceu nas áreas mais industrializadas da Europa, e deve ser entendida dentro do contexto de ampliação daquilo que é considerado bem cultural. A Grã-Bretanha é pioneira no estudo sistemático dos edifícios resultantes do processo de industrialização, que se consolidou por volta de 1960. A partir de 1970, outros países vêm fazendo o registro, a investigação, o inventário e a proteção dos sítios industriais.

O tema ganhou importância e atenção de um público mais amplo a partir de 1960, quando importantes testemunhos arquitetônicos do processo de industrialização foram demolidos. Entre esses, a pesquisadora Beatriz Mugayar Kühl destaca a demolição da estação ferroviária Euston e do mercado público em ferro Coal Exchange, ambos destruídos em Londres em 1962. (KÜHL, 2008)

Naquele período, na Grã-Bretanha, foram elaboradas as primeiras tentativas de definição do significado e da terminologia adequados à arquitetura do processo de industrialização. Um exemplo pode ser constatado na definição elaborada, em 1962, por um membro da inspetoria dos monumentos antigos do Ministério de Obras: “Um monumento industrial é qualquer edifício ou outra estrutura, em especial do período da Revolução Industrial, que sozinho ou associado a equipamentos, ilustra o início e desenvolvimento de processos industriais e técnicos, incluindo os meios de comunicação.” (KÜHL, 2008)

Essa primeira definição foi contestada por vários autores, que alegavam a existência de atividades industriais anteriores à Revolução Industrial e a dificuldade de precisar o tipo de organização e a escala de produção em que a atividade deixa de ser artesanal e passa a ser industrial. Outro argumento foi o de que os limites

estudo dos resíduos físicos de indústrias e meios de comunicação do passado”. (KÜHL, 2008)

O segundo conceito é o de Angus Buchanan:

[...] arqueologia industrial é um campo de estudo relacionado com a pesquisa, levantamento, registro e, em alguns casos, com a preservação de monumentos industriais. Almeja, além do mais, alcançar a significância desses monumentos no contexto da historia social e da técnica. (KÜHL, 2008, p. 42)

Portanto, para Buchanan, um monumento industrial pode ser qualquer artefato que se tornou obsoleto, desde uma pedreira neolítica até um computador que há pouco passou a ser considerado como ultrapassado. Porém, ele destaca que, na prática, é útil restringir a atenção aos monumentos dos últimos duzentos anos, porque períodos anteriores são tratados por métodos mais convencionais da arqueologia e da história, e também porque há grande quantidade de material do período da Revolução Industrial.

São várias as disciplinas que têm voltado seu instrumental teórico e metodológico para a compreensão do processo de industrialização. Filósofos, economistas, sociólogos, historiadores, arquitetos, entre outros, têm se ocupado de analisar o sistema fabril, dentro do processo desencadeado pela chamada Revolução Industrial.

Gonzáles-Varas (2008) destacou que, ao tratar das construções industriais, é mais adequado denominar este estudo de “arqueologia industrial”, pois a arqueologia trata da cultura de forma bastante ampla, considerando não só a cultura artística. Dessa forma, a utilização destes estudos, que podem contribuir para diversos campos do conhecimento, é potencializada.

A palavra arqueologia deve ser entendida em um sentido amplo, ela refere-se a “fases passadas da cultura humana”, “ciência ou estudo do passado”, e não apenas à forma mais restrita e de utilização limitada e exclusiva dos arqueólogos. (KÜHL, 2008)

No princípio, muitos ataques foram dirigidos ao campo de conhecimento da arqueologia industrial, negando-lhe o caráter arqueológico, em função da pouca

profundidade temporal por ele abarcada e também da metodologia empregada nas pesquisas que, na maioria das vezes, não faz uso de escavações.

Porém, vale ressaltar que, segundo Gonzáles-Varas (2008), a arqueologia não se limita ao estudo das civilizações mais antigas, mas compreende a investigação das diferentes culturas através daquilo que é material. Portanto, o patrimônio arqueológico engloba todos os testemunhos produzidos pelo homem, desde sua origem até a atualidade. De forma ampla, a arqueologia se classifica em pré-histórica e histórica, sendo que a histórica se subdivide em clássica, moderna e industrial. A última se dedica ao estudo dos vestígios materiais da época posterior à Revolução Industrial.

Para Kühl (2008), a arqueologia industrial não possui referenciais que lhe sejam específicos, ou seja, formulações teórico-metodológicas que digam respeito apenas ao legado da indústria. Não se caracteriza como disciplina autônoma. É um vasto tema de estudo, que exige a multidisciplinaridade e a articulação de variados campos do saber.

Apesar de Kühl diferenciar a arqueologia industrial como um processo de estudo e identificação do patrimônio industrial e de a arquitetura industrial referir-se àqueles bens já reconhecidos como patrimônio, esses termos se referem a uma mesma tipologia funcional em arquitetura e, da mesma forma, devem ser preservados (KÜHL, 2008). No presente trabalho, arquitetura industrial, arquitetura agroindustrial e arqueologia industrial serão tratadas como sinônimos.

Com relação ao campo de estudo, a arqueologia industrial conta com um objetivo ou campo de aplicação que lhe é próprio e autônomo, vinculado à história das técnicas, máquinas e procedimentos produtivos; à história dos edifícios que foram construídos para abrigar as máquinas e homens; e também o conjunto das transformações urbanas e territoriais que o desenvolvimento industrial proporcionou. (KÜHL, 2008)

Para Gonzáles-Varas (2008), além dos objetivos principais, pode ser incorporado ao estudo o estabelecimento de instrumentos e programas de conservação do patrimônio arqueológico-industrial, com os métodos próprios da conservação dos bens culturais. É possível estudar a caracterização formal dos edifícios, suas tipologias e também as linguagens arquitetônicas desse patrimônio.

Nas pesquisas sobre o patrimônio industrial, são comuns as questões relativas à simplificação das formas; às suas dimensões inabituais; à existência ou

um campo de estudo amplo e variado.

Para Silva (2010), além da importância do estudo das instalações fabris para a preservação dessa arquitetura, o tema do patrimônio industrial é fundamental por sua relação com o trabalho, pois, através de seu estudo, é possível estabelecer relações entre o tipo de industrialização de um período histórico e o modo de vida da classe trabalhadora correspondente.

O estudo da arqueologia industrial permite conhecer as formas de produção, e se constitui como um método de reconhecimento do patrimônio técnico de uma sociedade ou comunidade e suas formas de transmissão. Assim, remonta à história da tecnologia, de modo que incorpore não apenas o equipamento em si, mas também a proximidade diante do elemento humano, o operário.

Segundo Silva (2010), a relação entre trabalhador e instrumento está cada vez mais diluída. Hoje, em função da automação das fábricas, é difícil afirmar que o homem controla seu trabalho. A relação entre trabalho e trabalhador, mediada pela máquina, está se transformando cada vez mais rapidamente, de forma que, em um curto intervalo de tempo, torna-se obsoleto um determinado meio de produção, no qual as máquinas são substituídas em pouco tempo.

[...] o dinamismo da produção capitalista sempre foi frenético e sempre promoveu mudanças nos instrumentos de trabalho (precisão, tamanho, peso, material, segurança etc.) que afetaram a disposição da força de trabalho em contato com eles [...] daí decorre uma modificação no espaço físico da fábrica [...] nesse sentido acompanhar as mudanças no maquinário, no ambiente físico construído é acompanhar a história da técnica que a insere dentro de uma determinada cultura material. (SILVA, 2010, p. 3)

Assim, a cultura material é frequentemente desprezada pelos próprios agentes que contribuem ou contribuíram para sua produção. O conhecimento das formas de produção do passado não se justifica somente por razões de preservacionismo, mas também porque estes conhecimentos podem ser úteis para resolver problemas do presente.

Segundo Kühl (2008), é notável que, desde as primeiras conceituações, na sua origem, a discussão sobre o patrimônio industrial tenha estado vinculada à arquitetura ferroviária (Estação Euston) e a construções pré-fabricadas (Coal

Exchange). Portanto, o campo da arqueologia industrial trabalha de forma a associar atividades produtivas, meios de transporte, produção de energia e produtos resultantes do processo de industrialização.

O processo de industrialização esteve intimamente ligado ao desenvolvimento do transporte ferroviário: a industrialização em larga escala impulsionou as ferrovias, da mesma forma que a implantação do transporte ferroviário definiu a implantação das indústrias e a transformação e o crescimento das cidades.

O interesse pela preservação do patrimônio industrial deve voltar-se ao conjunto de bens que se articulam ao processo de industrialização como um todo. Desse modo, ao abordar os “monumentos da industrialização” devem ser estudadas as edificações ligadas aos processos produtivos, aos meios de transporte e comunicação e à produção de energia; procurando conhecer e tutelar cada um deles.

Kühl (2010) recomenda fazer estudos por tipo de atividade produtiva, por questão de método. A autora enfatiza que os conjuntos industriais tinham em comum o fato de ser estruturados a partir de uma atividade produtiva, enquanto outras construções pré-fabricadas abrangeram tipos bem díspares: mercados públicos, pavilhões de exposição, caixas d’água e viadutos. Contudo, apesar de ser um universo vasto, todos são monumentos históricos decorrentes do processo de industrialização, portanto, patrimônio industrial.

A importância de preservar exemplares da industrialização baseia-se no fato de essas edificações serem caracterizadas por um funcionalismo, que antecede em muito as expressões do modernismo. Assim, o patrimônio industrial apresenta variedade e qualidade formal derivadas de preocupações essencialmente funcionais e utilitárias.

A origem da arqueologia industrial, como foi apontado anteriormente, foi a Inglaterra, por ser lá o berço da Revolução Industrial. O marco inicial foi a Exposição Universal de Londres, em 1851, quando algumas das máquinas da primeira Revolução Industrial foram expostas ao público, dada sua importância para a história da tecnologia. (GONZÁLEZ-VARAS, 2008)

A partir da década de 60 do século XX, foram diversas as instituições que empreenderam iniciativas para conservar monumentos industriais in situ. Na Europa, principalmente na Inglaterra, numerosas têm sido as operações de revalorização e reutilização do patrimônio industrial. Alguns desses espaços vêm

industriais antigas que deixaram de ser utilizadas como tal. A ampliação do reconhecimento desta tipologia de patrimônio aconteceu, principalmente, devido à criação do The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage (TICCIH), em 1978. Essa instituição internacional, vinculada à Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), coordenou os esforços para a proteção e restauração do patrimônio industrial e organizou seminários e congressos de ampla difusão.

A partir da Assembleia Geral do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), realizada durante o Congresso Mundial de Conservação do Patrimônio Monumental, no México, em 1999, o TICCIH e o ICOMOS vêm trabalhando em conjunto, objetivando a preservação do patrimônio industrial. Da mesma forma, a UNESCO criou grupos específicos, com a participação de membros do TICCIH, para a definição de critérios e elaboração de estudos para a inclusão do legado da industrialização na lista do Patrimônio Mundial (JOKILEHTO, 1999).

Um maior impulso com relação à preservação deste patrimônio foi a elaboração e aprovação da carta de Nizhny Tagil, durante o congresso internacional realizado em 2003 pelo TICCIH, na Rússia, que trouxe grandes contribuições para evidenciar a importância da herança da industrialização. A carta esclarece os critérios e definições sobre o tema, amplamente discutido e estabelecido nas últimas décadas:

O patrimônio industrial deve ser considerado como uma parte integrante do patrimônio cultural em geral. Contudo, a sua proteção legal deve ter em consideração a sua natureza específica. Ela deve ser capaz de proteger as fábricas e as suas máquinas, os seus elementos subterrâneos e as suas estruturas no solo, os complexos e os conjuntos de edifícios, assim como as paisagens industriais. As áreas de resíduos industriais, assim como as ruínas, devem ser protegidas, tanto pelo seu potencial arqueológico como pelo seu valor ecológico. (TICCIH, 2003, p.3)

Com relação à preservação dos monumentos da industrialização no Brasil, muito raramente o patrimônio industrial é reconhecido.